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sábado, 7 de novembro de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 19º tomo: o apelo à emoção (argumentum ad passiones) e algo sobre a fosfoetanolamina

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Já dizia nosso bom e velho (põe velho nisso!) Platão: se a cópia já é ruim, a cópia da cópia é pior ainda. Como é triste quando alguém tenta imitar o outro naquilo que ele tem de pior... Não me refiro aqui à arte, para quem Platão reservava a crítica de ser uma exacerbação da imperfeição. Explico: o nosso amigo acreditava que existia um lugar onde tudo era perfeito - um lugar onde havia os modelos de tudo o que existe: os seres, as coisas, seus atributos e qualidades. Esse lugar era chamado de eidos, o mundo das Ideias, predecessor de tudo o que existe fisicamente. Também era chamado de Hiperurânio, aquilo que está acima dos céus. É o lugar da essência, aquilo que faz alguma coisa ser exatamente o que é, e, portanto, só pode ser percebido pelo intelecto puro, pelo puro pensamento, apenas e tão-somente.


A emoção é muito mais eficiente que a razão...

Mas como surge o mundo concreto, o mundo que percebemos através dos sentidos? Segundo Platão, há um Demiurgo, um Deus que é expressão de uma vontade de plasmar no mundo concreto cópias dos modelos essenciais do eidos. Mas, ao contrário do que se poderia pensar com base na teologia ocidental e na tradição judaico-cristã, o Demiurgo não reproduz cópias perfeitas. Cada espécime tem características próprias, como os homens, que não são iguais uns aos outros. Cada homem do mundo sensível é uma reprodução do homem ideal.

Pois então. O que é a arte para Platão? Quando um artista produz sua obra, o faz com base em sua sensibilidade, de sua observação do mundo que o rodeia. Este mundo está crivado de objetos que nada mais são do que reproduções dos objetos perfeitos do Hiperurânio. Quando a obra de arte é executada, o artista nada mais faz do que assumir o papel de Demiurgo, sendo ele o artífice de um novo objeto extraído de um modelo. Com um pequeno detalhe: seu paradigma é imperfeito. Ele mesmo, o modelo, já é uma cópia. A arte é cópia da cópia, e só pode ser mais imperfeita ainda. Por isso, Platão não costumava levar a arte muito a sério.

Não me referia à arte, como disse, mas a algo análogo. E fiz esse périplo todo para dar base filosófica ao seguinte acontecimento recente: se alguém passa vergonha tentando se fiar na TV Globo como fonte de informações, que dizer daquele que busca apoio na TV Record, seu pastiche, sua cópia da cópia? Já falei sobre isso em outro texto, mas insisto na tese porque há corroborações abundantes. O caso mais recente é a polêmica gerada em torno de uma pretensa substância que teria propriedade de curar câncer, a fosfoetanolamina.
O imbróglio é gigantesco e tentarei ser o mais sucinto possível. Há mais de 20 anos, uma linha de pesquisa química da USP descobriu uma maneira de sintetizar a fosfoetanolamina, um composto produzido pelo próprio organismo humano. Essa substância parece agir positivamente sobre um melanoma específico em ratos, o que é altamente promissor. Até aqui, nada demais. O problema é que tal substância começou a ser distribuída gratuitamente para pacientes de câncer, com o intuito de realizar-se uma pesquisa informal. Há dois imensos erros aqui. O primeiro torna a experiência perigosa – era instruído aos pacientes que cessassem outros tratamentos, como quimioterapia, imunoterapia e radioterapia. O segundo faz a experiência inútil: não há registro de resultados. Só há depoimentos, só existem evidências anedóticas, episódicas. A distribuição era feita na base do vai-que-é-mole. Não há um cadastro e rastreamento dos casos. E dessa forma, só restam as alegações, mais nada. Não se sabe quem tomou a substância e

  1. Mesmo assim morreu;
  2. Fez extração dos tumores;
  3. Cujo tumor tenha estacionado;
  4. Retomou outros tratamentos;
  5. Teve efeitos colaterais ou reações adversas*.
Não se sabe nada. Só se sabe que há depoimentos de pessoas que se sentiram melhor após seu uso.
Gente, isso é bom, é promissor. É altamente estimulante para que sejam expandidas rapidamente as pesquisas necessárias. Qual o grande problema? A maneira como o tema foi abordado. Desta vez – DESTA VEZ – a Globo fez a lição de casa direitinho. Convocou de seu quadro o melhor representante possível para tratar do assunto, o Dr. Drauzio Varella. Tem muita gente que não gosta dele, que é mais popstar do que cientista, mas isso não arranca seu diploma da parede, e por isso discordo da posição. A Globo deu voz a todas as partes envolvidas: à USP, à Anvisa, à Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, ao químico da fosfoetanolamina, Dr. Gilberto Chierice. Mostrou os trâmites legais e judiciais. Consultou também um dos principais oncologistas da atualidade no Brasil, o Dr. Antonio Carlos Buzaid, e trouxe uma advertência clara e séria: cuidado com as especulações sem base. Elas podem ser perigosas. Não há ainda nenhuma base científica para conferir o estatuto de medicamento a tal substância, especialmente estudos clínicos que lhe verificariam segurança na administração. Para mim, praticamente perfeito.

Aí vem a Record. E produz uma reportagem que contém, basicamente, o depoimento apaixonado de uma mulher em tratamento de câncer, que declara melhoras significativas em seu organismo após o uso do produto. Mostra a batalha de seus filhos para obter a substância, e busca as mesmas opiniões da Anvisa e da SBOC, mas, se você contar os minutos expostos, dá uma conta de 4 contra 1 a favor dos defensores da fosfo. Fala-se em doação, em sonho, em esperança, em valer a pena tentar. Repetiu a dose no dia 04/11, trazendo um caso pessoal de uma analista de sistemas, falando em luta e em dignidade. Desta vez, mais ninguém é ouvido além da depoente. Nenhum médico, nenhum psicólogo, nenhum farmacêutico, nenhum laboratorista. Não há nem ao menos um examezinho para mostrar a evolução do quadro. Só o depoimento.
Eu não sei o que a Record quer com isso. Aliás, sei sim. Quer audiência. Polemizar sobre um determinado assunto que afeta tanta gente gera televisores ligados e polpudas verbas publicitárias. Mas é um caminho perigosíssimo. Basta ver a quantidade de mensagens revoltadas nos vídeos disponíveis na internet. Todo mundo que fala com a razão sobre o caso é colocado na conta dos malvadinhos, de arautos de um governo que não pensa na saúde pública, em sabotagens da indústria farmacêutica, em médicos egoístas.

Pura teoria da conspiração. No meu texto sobre as vacinas, já tentei dar uma clareada no processo de pesquisa científica. Não é nada simples, é custoso e moroso. Mas qualquer cientista que conseguisse, de fato, criar um remédio que curasse alguns (não todos, só alguns) tipos de câncer entre as centenas que existem, estaria condenado a ganhar o prêmio Nobel por aclamação, principalmente com a rapidez e ausência de efeitos colaterais dos casos que vêm sendo veiculados. Isso significa renome e muito dinheiro. O prêmio representa 8 milhões de coroas suecas, que, em dinheiros ianques, representam cerca de US$ 1.300.000,00. Nada mal. Outra coisa: imagine quanto não lucraria uma indústria farmacêutica que tivesse a patente desse medicamento na mão. E, mesmo que com um preço caro, duvido que o governo não economizaria muito com os tratamentos da doença. Por isso tudo, dizer que há um conluio universal contra a descoberta de um remédio para o câncer é rematada parlapatice.
Luta, sonho, esperança, a batalha pela vida: emoções. A abordagem é muito antiga: é a falácia do apelo à emoção, ou argumentum ad passiones, provavelmente uma das mais poderosas falácias informais de dispersão e relevância que temos em nossa linguagem. É basicamente produzido através da manipulação das emoções, que se contrapõe claramente ao uso da razão. É exatamente o caso que temos em tela. Toda a racionalidade buscará compreender os motivos pelos quais uma substância tão promissora não é logo liberada para utilização em doentes de câncer, doença terrível. E a resposta é simples: a Ciência PRECISA atuar de forma desapaixonada. Não foi um nem dois medicamentos que produziram efeitos colaterais inesperados, alguns deles devastadores. O caso da talidomida é o mais emblemático de todos. A história é conhecida e ajudou a construir a pesquisa farmacêutica da forma que ela está estabelecida hoje, pelo seu pior caminho: ao gerar um número enorme de vítimas. Um depoimento emocionado não significa nada para a pesquisa. O médico não vai perguntar se você está mais feliz, mais esperançoso ou mais confiante ao tomar um remédio; ele perguntará se você se sente melhor. Reações como euforia ou depressão serão registradas como efeitos do tratamento, não como justificativas clínicas.

... e mais perigosa também

A Ciência é fria porque é preciso ser fria. Não pode buscar seus resultados desesperadamente. Se os benefícios da fosfoetanolamina não puderem ser aproveitados pela atual geração, que não sejam, paciência; que sejam pelas próximas. Se as pesquisas mostrarem que não é adequada como remédio, que seja descartada, ou que sejam pensadas modificações para aperfeiçoá-la. O apelo à emoção, pelo contrário, é vivaz. Apela para aquela parte da nossa mente que reage de imediato, que atende necessidades prementes; que é instintiva, não racional. É tudo o que a pesquisa científica não necessita.
Muita gente pensará neste momento: “Você não sabe o que é ter uma pessoa que você ama sofrendo de uma doença incurável”. Engano. Sei muito bem. Dois dos meus avós morreram de câncer, e minha mãe também. Meu avô materno morava na mesma casa que eu. Teve um câncer exposto, que se espalhou da garganta para o rosto e para a cabeça. Demorou um ano e meio sangrando e se sufocando, até ser submetido a uma traqueostomia. Depois desse dia, nunca mais o vi. Era criança, e na década de 80 era proibido entrarmos no Hospital do Câncer. Depois minha avó paterna teve câncer no pâncreas. O médico insistia em dizer que sua dor abdominal era oriunda de formação de gases. Só descobriu a doença quando já não havia nada a fazer. Quando estava a poucas semanas de sua morte, já não reconhecia mais ninguém, perdeu suas referências. Em um de seus poucos últimos momentos de lucidez, disse para mim: “Que castigo, meu filho. Ninguém merece isso”. Já minha mãe teve câncer na bexiga. Tentou se tratar durante três longos anos, com poucos resultados práticos, até ser vitimada por uma infecção generalizada. Contei a história neste texto.

Eu teria tudo para odiar as pessoas e as instituições que nos proíbem de tentar qualquer coisa para tentar salvar suas vidas, mas não podemos mover-nos com base em emoção, em especial no momento em que falamos de populações amplas, de benefícios que precisam sê-los de fato. Por isso, resigno-me à minha dor particular. Torço para que nenhum dos meus tenha que passar por isso, e, se acontecer, que o sofrimento seja mais curto, apoiado inclusive por uma fosfoetanolamina agora devidamente aprovada e beneficiando muita gente (olha um apelo aí se formando).
Duas coisas: não retiro o direito de pessoas tentarem se salvar com tratamentos que não possuem comprovação de segurança, desde que devidamente informadas dos riscos. Em um paciente terminal, não há nada mais natural do que arriscar qualquer coisa para se curar ou, ao menos, mitigar sua dor. Pode-se tentar babosa com whisky, sangue de carpa, casca de caranguejo, cartilagem de tubarão, garrafadas, mezinhas, fórmulas de rezas, fluído de freio, merda, extrato mole de frango da Malásia, qualquer coisa se justifica. Certa vez, em uma crise de dor de dente, recomendaram a mim que espetasse um cravo-da-índia na cárie, que bochechasse um conhaque e que mastigasse tabaco, o que fiz desmanchando um cigarro. As poções mágicas só serviram para me deixar com um mau hálito do caralho. O que resolveu meu problema de fato foi um anti-inflamatório e uma visita ao dentista, mas na hora do desespero você dá ouvidos a qualquer pessoa que relata um tratamento de sucesso.

Por outro lado, o tipo de informação manipulada como a da Record deveria ser punida de alguma forma. Em uma população que conhecesse minimamente o processo científico, a punição viria do controle remoto. Mas seria o mundo ideal, e não o temos. Seria muito interessante que as emissoras de televisão produzissem um bom material sobre o funcionamento da pesquisa e o disponibilizassem em suas páginas da internet, indicando-os quando necessário. Poderiam, aliás, fazê-lo com relação a vários assuntos polêmicos que precisassem de um conhecimento mínimo, em qualquer área. Acho que fumei um e nem lembro.
(Na edição final deste texto, antes de clicar no botão “Publicar”, lembrei que a TV Cultura utiliza um esquema chamado “Segunda Tela”, em que são fornecidas várias informações relativas aos programas que vão sendo exibidos. Por isso entendo que é uma emissora diferenciada, conforme já havia dito neste texto, já um bocado antigo).

Há apelo à emoção não falacioso? Como é a oposta dialética da razão, é muito raro que um discurso emotivo também respeite as normas da lógica, mas não é impossível de acontecer, principalmente porque podemos falar racionalmente das próprias emoções. Quando dizemos que as emoções são fonte de inspiração artística, por exemplo, não há nada de errado nisso.
E também é preciso notar que a eficiência de um discurso emotivo é bem maior e desejável que em um raciocínio complexamente construído. Imagine a seguinte situação: um jogador de futebol está deixando frequentemente sua retaguarda descoberta, o que é um convite para os contra-ataques do adversário. No momento dos treinamentos, o técnico pode lhe explicar paternalmente que ele deve ter cuidado, ficar atento aos lançamentos no espaço vazio que ele proporciona, sob pena de periclitar o restante da peça defensiva da equipe e levá-la à derrota. Poderá desenhar os esquemas do erro e das possíveis alternativas para sua correção. Poderá exibir videoteipes e colher o depoimento dos companheiros de time e da crítica desportiva. Mas, na hora do jogo, o técnico simplesmente grita: “CORRE, F... DA P...!”.

O técnico apela para o brio do jogador, para a necessidade imediata que tem em evitar uma situação de perigo para sua equipe. A retórica emotiva é a única aplicável nessas condições.
Mas é preciso um cuidado canino com essa falácia, já que é a ferramenta que existe quando não é possível usar o argumento racional. E é com ele que nascem as publicidades dos tomadores de empréstimos sorridentes nos bancos, a beleza a qualquer preço, a indução do consumo ao álcool, o incentivo à guerra, o discurso do ódio.

Recomendação de leitura:
Segue o livro em que Platão discute a questão da arte:

PLATÃO. Timeu – Crítias. Coimbra: CECH, 2011.
Também linko alguns vídeos de pessoas que estão habituadas ao processo de pesquisa científica:

Canal do Pirulla: https://www.youtube.com/watch?v=L51NrrK1APQ

Primata Falante: https://www.youtube.com/watch?v=nXN3KG_AIR8

Eu, Ciência: https://www.youtube.com/watch?v=eY9OEBCv9ds

*Há gente que diz que a fosfoetanolamina não tem efeitos colaterais porque é produzida pelo próprio organismo. Sugiro a estas pessoas que tomem uma injeçãozinha de adrenalina ou um copinho de ácido clorídrico. Também são produzidos pelo corpo e não farão mal algum.

2 comentários:

  1. Texto maravilhoso, meus parabéns. Também vejo a TV Cultura como diferenciada, principalmente depois que fui convidado para assistir o programa Roda Viva no estúdio: bastou fazer o pedido pelo Twitter. Além de coerente, a TV Cultura é democrática.

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  2. Seja muito bem vindo a este espaço!!! É pena que existam tão poucos praticantes da regra da TV Cultura em outros meios de comunicação... Mas seu depoimento serve como dica. Muito obrigado.

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