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terça-feira, 15 de agosto de 2017

Efemérides e as duzentas vezes em que estive aqui - quem influencia meu "traço"

Olá!

Nunca consegui formar uma compreensão muito clara sobre os motivos que levam as pessoas a se preocupar com efemérides. Para quem não sabe, este termo significa algo breve, e há até mesmo um inseto que leva esse nome por viver parcas 12 horas em seu estágio adulto. Para o presente assunto, interessa saber que, tempos atrás, havia uma pequena sessão nos jornais destinadas a dar breves notas sobre aniversários e outras datas importantes, semelhantemente ao que o Facebook faz com seus amigos hoje em dia. Aqueles que ganhavam um pouco mais de relevo eram os aniversários “redondos”: 100 anos de fundação da Gazeta de Piraputanga, 50 anos do casamento de seo Ernesto e dona Etelvina, 300 anos da Revolução das Mexericas e coisa que o valha. Os preferidos são os centenários e derivados, por conta do duplo zero. Além disso, outras “redondezas” também chamam a atenção, como o milésimo gol de um determinado craque, o centésimo número de uma revista, as cidades com mais de cem mil habitantes e assim por diante.

Por que a diferença? Daqui a pouco completarei 50 anos e será um dia como outro qualquer, talvez chuvoso, talvez haja uma greve, uma consulta no otorrino, talvez haja uma vitória do meu time, talvez não. E, mesmo no meu caso particular, não existiria meus 50 anos se não houvessem os 49, os 48, os 47 e cosi via. As efemérides são assim: vazias de significado, e que só ganham vida por conta da nossa habitualidade de reparar em coisas inúteis.

Tanto é verdade que estou aqui, comemorando meu ducentésimo post. Por 200 vezes sentei na frente de meu computador para digitar um texto redigido em lugares tão diversos quanto uma mesa de café, um sofá de consultório e mesmo no apoio de um carrinho de compras. Minha mulher já me disse mais de uma vez que eu deveria escrever um livro. Se eu levar em conta que minhas linhas tortas preenchem em média quatro laudas, meu blog inteiro daria umas oitocentas páginas, o que já poderia ser qualificado de calhamaço. Só que com um defeito irremediável: dada sua fragmentação, não seria uma obra que primaria pela uniformidade e lógica encadeada, como ocorre com os grandes tratados; por outro lado, são textos longos demais para serem reduzidos à forma de aforismos, que possuem um poder de síntese formidável, a exemplo de Nietzsche e Bacon. Sendo assim, mantenho o formato blog e pronto. Se alguém achar justo e resolver um dia coligi-lo em livro, fique a vontade, sempre lembrando dos créditos autorais e bancários, por gentileza.



Já registrei, na forma de postagem, duas outras efemérides neste espaço: o centésimo texto, a quem chamei de metapost, e o quinto aniversário das Aporias Plurais. Em ambos, tratei da Metafilosofia, o ramo da Filosofia que trata a si própria como objeto de estudo, ou seja, se existe uma Filosofia para tratar da Ciência, da Educação, da Religião, da Mente, do Conhecimento, do Tempo e de outras áreas, existe também uma Filosofia da Filosofia, que cuida de compreender o que há por trás do pensamento filosófico, incluindo métodos de trabalho e caminhos a seguir. Resolvi, já que tenho feito isso despropositadamente, dar a minha própria metafilosofia sempre que ocorrer uma efeméride, retratando algum aspecto das reduções de minhas ideias a escritos.

Desta vez, vou falar do aspecto literário com que escrevo. Por “literário”, não entendam aqui nenhuma arrogância, nem pretensão a artista. Boa ou má, uma escrita é literatura – percebam que o termo vem do latim litteris, que significa, mui meramente, letras. Sendo assim, vamos ao que interessa.

Quem influencia minha escrita? Não se trata de um exercício fácil. Em primeiro lugar, temos a vaidade de querermos ser originais, e nem sempre conseguimos admitir que há uma espécie de “mão invisível” que guia nossos mal traçados caracteres. Às vezes, a miscelânea é tão grande que se gera um estilo novo, por vezes muito bom, por vezes nem tanto. Já falei em algum canto sobre a oposição entre músicos e escritores no reconhecimento de influências. Os primeiros alardeiam pelos quatro cantos que “pegaram um ritmo afro e aplicaram-no em melodias de vertente arábica, com instrumentação típica das culturas aborígines canadenses e densidade nipônica”. Além disso, declaram publicamente que um determinado fraseado de guitarra é inspirado em tal músico, e que baixo-bateria seguram a peteca como faz tal banda. Músicos dão nomes aos bois.

Escritores detestam fazer isso, não sei bem por quê. Por mais que existam escolas literárias mais ou menos uniformes, como Romantismo e Realismo, é raro (eu nunca vi) alguém dizer que, por admirar o “traço” do outro, faça uso de técnicas semelhantes. A mim, parece que a músicos a originalidade está na mescla bem sacada, enquanto que a escritores está na inovação propriamente dita, na peculiaridade do estilo.

Como não sou nem músico profissional, nem escritor da mesma estirpe, posso me dar ao luxo e à liberdade de tentar reconhecer o que influencia minha escrita. Só que há armadilhas.

Um ponto a ser observado é não confundir escritores que gostamos com escritores que guiam nossa mão. Para dar um exemplo, posso dizer que adoro Gabriel Garcia Marquez ou Clarice Lispector, mas, se eu colocar um texto de ambos ao lado do meu, não há nenhum ponto de contato. Enfim, não há sinonímia entre apreciar e influenciar, ao menos em questão de estilo.

Mais um aspecto é a diferença entre dar modelo a escrita ou ao pensamento. Alguns literatos escrevem muito bem, sem que eu concorde com uma única letra que o gajo escreve. O vice-versa também vale: há conceitos magníficos, que podem estar extremamente enredados em uma malha de frases construídas com complexidade hermética, ou estar pura e simplesmente mal redigidos. Uma coisa não tem a ver com outra necessariamente. Há a questão da forma e da substância, coisas distintas.

Outra coisa é que temos fases. Não escrevemos da mesma forma a vida inteira, e nem sobre os mesmos temas. Uma influência pode ser mais facilmente reconhecível quando se trata de um determinado assunto que outro, especialmente quando seja mais correlato à área de atuação do influenciador, ou pode ser reconhecível na juventude, mas não na maturidade. A vida é um labirinto.

Dito tudo isso, consegui detectar três influências constantes e duas mais pontuais. Influências difusas são irreconhecíveis, lamento muito. E, claro, filtrei rigorosamente a questão com a concordância das ideias. Portanto, as influências que trato aqui são formais, e não ideológicas. Aliás, os autores que citarei estão em polos ideológicos opostos, diga-se de passagem. Repetirei essa cantilena algumas vezes no correr da pena, porque, nessas coisas de política, as pessoas andam mais intransigentes que em matéria de futebol, e não reconhecem mais um bom texto que lhes oponha à sua própria cabeça.

O primeiro deles é o jornalista Flávio Gomes. É, para mim, o definidor do formato blog que adotei. Dele, trago a linguagem que trafega do técnico para o coloquial, variando no que entendo ser o momento exato. E dele também percebi a oralidade tão necessária para esse modelo de comunicação, onde se busca estabelecer uma espécie de quase-interlocução com seu público. Isso é feito utilizando-se a linguagem como ferramenta de expressão intensa das ideias, incluindo onomatopeias e palavrões, que carregam algo como uma fala embutida, e não como acontecem com os manuais e artigos em geral, frios, técnicos.

É óbvio que os blogs em geral adotam essa mesma estratégia, mas Flávio Gomes escreve MUITO bem, na minha modesta. Em uma determinada ocasião, enquanto ocorria o despejo do bairro do Pinheirinho, em São José dos Campos, pediram-me que escrevesse a respeito. Já estava com a tarefa em andamento, mas quando li o que nosso escriba teceu, joguei meus rabiscos fora e limitei-me a recomendar sua fala. Não tinha absolutamente nada que eu pudesse acrescentar de bom ou útil. O mesmo se aplica a este texto sobre a relação entre Rubinho Barrichello e a rede Globo, irrepreensível. Reitero: ele tem uma posição política muito bem marcada, e não é isso que discuto nesse momento. Estou me atendo ao aspecto técnico. E digo mais: o mote principal do seu blog é esporte a motor, não esperem encontrar comentários políticos em profusão.

A segunda influência que tenho a observar vem da Itália. É o escritor Giovanni Guareschi, a quem li com abundância quando tentava aprender italiano. Ora, direis, com Petrarca, Alighieri, Maquiavel, Pirandello, Moravia, Calvino, Fo, Gadda e Tabucchi à disposição, você foi se agarrar a um escrevinhador secundário como Guareschi? Não é um pouco de falta de ambição?

Não, não é. Reconheço que Guareschi não praticou alta literatura nem fundou escolas, mas ninguém como ele retratou os conflitos do pós-guerra na Itália pelo ponto de vista de quem mais foi impactado – o povo. E o fez pela melhor chave possível, a do humor. Trouxe-me tanta informação que eu não conhecia que meu TCC foi exatamente sobre sua ótica nos conflitos entre religião e política daquela época. Dele, além de algumas expressões e barbarismos que eu ouvia da boca de meus avós, vem um gosto por certos detalhamentos que, se por um lado causam uma quebra no fluxo da leitura, por outro trazem mais clareza a quem lê, sempre pensando que o leitor não é, obrigatoriamente, um conhecedor do cenário que se busca retratar. Além disso, mesmo tendo uma posição política bem delineada, Guareschi não costuma evitar críticas a nenhum dos lados, o que, quando estabeleço uma dialética, tento também fazer, vide meus textos que contrapõe Ciência e Religião.

O terceiro é o cronista carioca Sérgio Porto, o mesmíssimo Stanislaw Ponte Preta que nos deu a tia Zulmira, o primo Altamirando, Rosamundo e outros personagens que davam suporte às suas bem-humoradas crônicas. Um observador da minúcia carioca e um comentarista mordaz do lado patético da ditadura, em uma época em que não era muito saudável fazê-lo. Trouxe para mim duas coisas: a utilização profícua de eufemismos e a introdução de termos castiços em falas mais voltadas para o informal, produzindo uma certa sensação de necessidade de um dicionário matreiro pelas imediações, além da legitimação do uso do denotativo no coloquial  e do conotativo no formal.

Outro que me influencia é Fernando Pessoa. Mas quem não foi influenciado por ele e seus heterônimos? O poeta português dispensa grandes detalhamentos, mas preciso explicar porque ele está aqui. Pessoa transita melhor do que ninguém entre o físico e o metafísico, entre o raciocínio e o enlevo, entre a concretude e o devaneio. O melhor exemplo está no poema “Tabacaria”, recomendado abaixo. Para mim, o supra-sumo da poesia. Transpareço essa mesma sensação de mundo caindo sobre minha cabeça pontualmente, como, por exemplo, neste texto. É a marcação de duas coisas: a dificuldade de distinguir real de onírico e o rompimento repentino deste mesmo laço.

Por fim, outra influência pontual: Anton Tchekhov. Este escritor russo tem como característica um pinçar de situações em que não há muita importância onde as mesmas começam ou terminam, fixando seu foco apenas onde lhe importa. Sinto que eventualmente acabo fazendo isso também, embora de maneira menos abrupta. Essa técnica me favorece pelo seguinte: muitas vezes extraio Filosofia do dia-a-dia, mas há momentos em que faço o movimento contrário – de uma ideia ou corrente filosófica, caço uma situação quotidiana (talvez fale melhor sobre isso na próxima efeméride). Se atar todos os nós que “convergiram para” ou “derivaram de”, o texto vira novela e o efeito é escapar do que interessa. Por isso, apesar das pontas soltas, algumas vezes deixo de lado grandes introduções e epílogos para me centrar em um instante específico, no que o literato russo é mestre. Exemplos aqui e aqui.

Bom, essas são as influências que consegui detectar. É óbvio que há muitas outras, e, quanto menos conscientes, mais complicado de reconhecer. No entanto, é uma experiência interessante tentar entender onde há alguns paradigmas para nossa escrita sem que isso represente uma pura e simples comparação. Mais uma vez, vejam que não me detive em influências ideológicas. Eu as tenho, mas não é sobre isso que falo agora. Percebam como aproveito, sem servidão, de estilos de escribas que se declaram socialistas, como Gomes, e democratas-cristãos (de origem monarquista) como Guareschi. Meu intento, repito uma vez mais, é meramente apontar tendências formais.

E, para finalizar, volto atrás na minha questão do vazio da efeméride. Utilizamos estes mecanismos porque sempre estamos à busca de referências. Para que saibamos se algo existe a muito ou pouco tempo, é necessário que exista um referencial. Coisas como “novo” ou “velho”, o são em relação a alguma coisa. Um cachorro de 20 anos é um ancião, praticamente uma múmia; já um homem, é um recém adulto. Idem a um conceito de “alto” ou “baixo” – uma mulher de 1,80 é alta, um homem da mesma medida é mediano. Muitos outros exemplos seriam possíveis. E porque nossas referências se traduzem em números “redondos”? Porque estamos viciados na base 10, o sistema derivado dos dez dedos, tanto que a palavra dígito vem do latim digitus, que significa dedo (ora vejam). Se nossa base de contagem não fosse essa, tão intuitiva, nossas efemérides provavelmente seriam outras. Fosse hexadecimal, provavelmente contaríamos a repetição de caracteres. Olhem que bacana: “A cidade de Pororó da Serra está em festa! Comemora-se FF anos de sua fundação!”.

FF em hexadecimal representa o número 255 em nosso consuetudinário sistema decimal. Nada redondo, por conseguinte.

Recomendações de leitura:

Vamos lá que são várias. O melhor que tenho a indicar do jornalista Flavio Gomes é seu blog. O carro-chefe é automobilismo, mas há muitas seções fixas com referências a suas preferências, como os carros da antiga Europa Oriental, os postos de combustíveis incomuns, as velhas Kombis e outras coisas mais. Também escreveu um livro chamado “O Boto do Reno”, mas eu não o li ainda.

http://flaviogomes.grandepremio.uol.com.br/


Giovanni Guareschi, como eu disse, é um escritor e jornalista que teve seu auge no imediato pós-guerra. Seu personagem mais clássico é Dom Camillo, um padre que tem mais ocupação com a política do que com seu rebanho. Como já recomendei sua principal obra por aqui, vou me ater ao seu livro de despedida, em um formato até então inédito para ele, com histórias mais longas e coesas entre si. O nome adotado no Brasil é horroroso. No original, significa Dom Camillo e os Jovens de Hoje.

GUARESCHI, Giovanni. Dom Camilo e os Cabeludos. Rio de Janeiro: Record, 1978.


Sérgio Porto é cronista muito conhecido no Brasil, muito dedicado à análise de costumes, mas com boa preocupação política, tanto que lançou dois volumes de Febeapá’s, os Festivais de Besteiras que Assolam o País, onde traz incontáveis burrices cometidas por nossos já infames governantes.

PONTE PRETA, Stanislaw. Febeapá 1. 1º Festival de Besteiras que Assola o País. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.


Fernando Pessoa... Não preciso ficar falando de Fernando Pessoa. Segue o link de A Tabacaria...


... e um dos livros onde a mesma pode ser encontrada:

PESSOA, Fernando. Tabacaria. The Tobacco Shop. Ed. Bilíngue. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2015.


Finalmente Tchekhov, de quem também não há muito o que falar. Um rei do conto. Segue um bom livro deles.

TCHEKHOV, Anton. A dama do cachorrinho e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2009.

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