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segunda-feira, 28 de março de 2016

Sobre luzes de Natal e crise da meia-idade: até onde nossas angústias fazem viradas para a depressão

“Um terremoto sempre tem fim; o que não tem fim é a existência de terremotos” - Eu

Olá!

Um pouco antes do último Natal, tentei reunir minha patota para celebrar a vida, conforme era hábito nosso até bem pouco tempo atrás. A ideia era comer churros espanhóis* com coberturas diversas e chás variados, daqueles que admitem composição com frutas, especiarias e licores para transmitir certo exotismo.

Era um domingo. À hora marcada, desabou um temporal daqueles dignos de causar susto a Noé. Não havia chegado ninguém ainda, e nenhum dos meus filhos estava em casa. Estava muito escuro por causa do mau tempo, e por isso liguei as luzes do pisca-pisca da árvore de Natal. Sem ter nada para fazer, ficamos eu e a patroa sentados, olhando-a, iluminados intermitentemente pelas luzes coloridas. O silêncio era rompido constantemente pelos trovões, já que barulho de chuva não é barulho – é sonífero. Mas, a parte disso, só havia contemplação. De repente, a Mimi diz: “Daqui a pouco, nossa vida vai ser assim, só nós dois”. Senti um frio na espinha e respondi apenas com um muxoxo. Há nada de tempo, em um notório episódio onde arrebentou o vidro do meu aquário, despejando em poucos segundos os 82 litros que demoraram um tempão para preenchê-lo, estavam em casa a Jéssica, a Deborah, a Renata, a Natália, o Bruno, o Lucas (maior vítima do rompimento), a Bia Bar, o Santiago, o João Paulo, o Danillo, a Marley, a Bia Silva, a Luana, a Ana Bia, a Sabrina, a Bia Araújo, acho que a Larissa e a Raisa, não me lembro se algum dos meninos da Riachuelo... Salvar os peixes e secar a sala de 15 m² foi mais complexo com tanta gente.

Hoje estávamos só nós dois, esperando a chegada de alguém. Depois de mais uns minutinhos, levantei e fui dar uma olhada pela nesga da janela, passando ao lado da estante de livros, onde se encontram os escritos utilizados para a minha faculdade. Entre eles, uma apostila sobre Psicologia da Educação, onde despontam com vigor as teses de Piaget, Vigotski, Dewey, Bandura. Em algumas notas de rodapé, lembro-me das menções a Melanie Klein.


Lembro como aprendi, por conta própria, interessado pelo pouco citado, como essa psicanalista alemã adaptou as teses freudianas às crianças. Como se bem sabe, a linguagem não funciona nas crianças da mesma forma que em adultos, por um motivo muito simples: ela ainda não é completa. Como seria possível medir a psique infantil e verificar o quanto se assemelha à adulta?

Pois muito bem. Nossa heroína fez o que deveria ser feito: meteu a bunda no chão e passou a se sentar junto das crianças, brincando com elas e participando de seus jogos. Analisou suas fantasias com o mesmo propósito que os demais psicanalistas analisavam as associações livres dos adultos. E suas descobertas foram surpreendentes.

O fato de que a linguagem verbalizada da criança não seja completa não impede que a mesma se expresse. Até mesmo antes de produzir seus primeiros vagidos, a criança já está em plena atividade psíquica, adquirindo conhecimento em quantidades industriais, como jamais voltará a fazer em toda a sua vida. Mas o quintal onde esse conhecimento todo é recolhido passa por uma porteira praticamente instintiva, quase sem instâncias conscientes. A absorção da experiência é essencialmente dicotômica: ou é boa, ou é ruim. Traduzindo em sentimentos, a criança basicamente sente amor ou ódio.

Acontece que, como é bem fácil de prever, a cognição da criança é confusa, e, na medida em que esse processo vai se refinando, toda a sua personalidade vai sofrendo influências, para o bem e para o mal. O cerne da psique infantil é naturalmente egoísta, de forma que tudo o que não pertence ao ego (ao self, diriam os mais moderninhos) é um objeto, incluindo aí outros sujeitos. E este ego é a si mesmo uma fonte de prazer; tudo o que é de ruim vem de fora, vem dos objetos, que podem ser, inclusive, sua própria mãe. Melanie Klein usava o exemplo do seio, principal ligação entre mãe e filho no pós-nascimento, para ilustrar os paradoxos das primeiras percepções infantis com relação ao mundo que a cerca.

Funciona assim: a criança recebe leite de um seio, e isso traz a ela satisfação – sacia sua fome, dá-lhe sensação de prazer, traz-lhe felicidade. Isso faz com que a criança ame o seio que a alimente; ela ama o seio bom. Mas também há um seio que ela odeia – é aquele que lhe recusa o leite, aquele que sai da sua boca quando ela deseja ser saciada, aquele que não lhe propicia nenhum tipo de prazer e que a mantém em seu estado de desconforto, que a deixa com fome.

O que a criança não se dá conta, mas que será significativo na construção de sua maneira de ver o mundo, é o fato de que o seio bom e o seio mau são a mesmíssima coisa. O seio farto, que lhe traz satisfação, também é o seio escasso, que não supre suas carências. Quando a criança se apercebe de que isso ocorre (sempre a nível inconsciente), é colocada diante de si a angústia de que, sendo o seio bom e o seio mau a mesma coisa, seu impulso agressivo pode trazer a destruição indesejada daquilo que ela ama. A criança começa a compreender que os seus objetos não dependem somente dela, e isso lhe traz um gigantesco sentimento de culpa. Esse é o nascedouro da angústia.

Bem... Depois de tudo isso, eu me lembro de como fiz comparações das teses de Melanie Klein com o meu aprendizado, e percebi que ela aborda de modo clínico o mesmo tema com o qual os existencialistas faziam com um approach filosófico. O cerne de ambos está na angústia. A angústia se instala em nossa psique desde que nascemos, e nos acompanha por todo o sempre. E isso tem tudo a ver com os momentos de crise que passamos no decorrer de nossa existência.

Trabalhamos com processos de idealização. Idealizar significa pensar tudo perfeito. Ninguém planeja uma festa ou uma viagem para ter problemas. Claro, sempre levamos em conta alguns riscos, e nos prevenimos, mas temos a tendência de imaginar que tudo vai ser bom. E no final das contas as coisas acabam sempre ficando aquém do que idealizamos. Não veio todo mundo que a gente esperava, a cerveja não estava bem gelada, as paisagens não eram tão maravilhosas quanto mostravam os folders das empresas de viagem. Talvez seja por isso que as coisas que acontecem de improviso são tão legais – como não há a expectativa da idealização, é mais fácil fruir o momento. É como quando você vai tomar um café com os amigos e na volta decidem ir ao bar, tomar uma meia dúzia de chopps com bolinhos de abóbora e carne seca. Ou quando vai viajar com destino incerto, e descobre lugares incríveis, que não constam dos roteiros de viagem. A felicidade é simples, como um café qualquer num alpendre qualquer da casa de uma dona Maria qualquer.

Idealizamos desde crianças. E a idealização foge da realidade. Isso não é mau por definição, e é perfeitamente normal que nos frustremos quando o ideal não encaixe ao real. Só que, como já discuti neste e neste texto, a idealização vai se transformando em algo menos significativo na medida em que o tempo passa, porque o mundo que nos era importante, que nos identificou e tornou como somos vai cada vez mais distante. É a crise da meia-idade.

Há um paradoxo irresolvível na chegada da idade. Nós pensamos nas crianças como seres limitados e dependentes. Não há criança no mundo que não sonhe em chegar à maioridade, para dar rumo à sua própria vida, para sair da tutela dos adultos. Mas é como crianças que gozamos da maior liberdade possível, justamente porque não precisamos escolher. Sonhamos qualquer bobagem e não temos vergonha disso. Iludimo-nos como os maiores e melhores, e gostamos de pensar em um futuro bonito. Há poucas culpas a carregar e pouca gente a quem dar satisfação. E acontece o fenômeno que se repete em quase todos: gostaríamos de voltar a ser crianças. Isso corrobora, de certa forma, o pensamento de Klein, que diz ser a angústia nossa eterna companheira.

Quanto mais velhos, mais aprisionados somos. O trabalho começa pouco a pouco a não ser mais uma opção. De tudo o que queríamos ter realizado, pouco aconteceu. A história de que o aposentado goza de liberdade é uma triste ilusão. Os rendimentos caem, a saúde declina. No exato instante em que não conseguimos mais atravessar a rua correndo (sem pelo menos ter a sensação de que vamos cuspir o pulmão pela boca) percebemos que o tempo está encurtando, ainda que não o admitamos. Eu queria ter gravado todas as músicas que compus; hoje me limito a cantarolá-las ao andar em uma rua pouco movimentada, lembrando-me cada vez menos de suas letras e melodias. Eu queria ter escrito livros sobre o universo e os homens, e me contento agora com este pequeno espaço, em que sintetizo ideias esparsas para quem quiser lê-las. Eu queria ter mantido vínculos com amigos de infância, puberdade e juventude; agradeço aos céus por ainda ter meus parentes mais diretos e alguns afilhados, e pelo fato de poder mandar um salve via Facebook no dia do aniversário de alguém.

É que a crise da meia idade carrega consigo a angústia dupla – junto das irresoluções da vida, que não cessam até seu fim, há o temor de não existir tempo de voltar atrás. Se é fato que, ao escolher um determinado caminho, deixamos todos os outros para trás, enquanto temos vigor temos a esperança de voltar atrás e mudar a trilha. Agora não. Temos mais consciência da perda; as luzes que piscam diante de mim são um mero lenitivo da perda concreta – se a minha casa estivesse cheia como outrora, provavelmente eu nem me lembraria de ligá-las.

O que é muito importante separar aqui é que crise de meia-idade é uma crise como outras, como as indecisões da juventude, da qual já extraí um texto, que os convido a ler. Crises não são depressão, é bom não confundir. Mas podem conduzir a ela. A vida nos dá muitos golpes, pequenos e grandes. Os grandes são bem sabidos: as mortes das pessoas que amamos, e as grandes limitações físicas e psíquicas que a idade nos impõe. Uma pessoa que se vai nunca mais volta, e a diabetes, artrose e cardiopatia para sempre nos imporão um regramento, seja alimentar, seja farmacêutico, seja degenerativo do organismo. 

Mas os pequenos golpes são muito cruéis também. E com duas imensas desvantagens: são difusos e alimentadores da angústia. Lembro e repito a lição de Klein: desde que nascemos, ao identificar o seio bom com o seio ruim, vivemos em permanente angústia. Quando minha mãe ficou doente, principalmente na fase terminal, eu não conseguia mais dormir direito – havia sempre a expectativa da ligação fatal. Todos os irmãos da minha mãe morreram de madrugada, e o toque do telefone tinha o mesmo efeito da trombeta do arauto que vem anunciar o apocalipse – a desgraça chegou. Acabou que minha mãe morreu de dia; fiquei sabendo ao chegar do serviço.

E vejam só. Minha mãe morreu, e isso me trouxe uma imensa tristeza, que carregarei para sempre. Mas a sua morte levou embora a angústia. Já não tenho sustos de ouvir o telefone de madrugada. Já sei que não serão tentados tratamentos dolorosos, que não há mais risco de se perder a consciência, tudo isso acabou. O mesmo se aplica a tantas outras coisas, que quando chegam podem trazer problemas, mas que trazem também a resolução da angústia. O medo já se concretizou, não há mais o que temer.

Já nas coisas menores, é mais difícil espaventar a angústia, olhem que coisa curiosa. É que o medo da perda por vezes é muito maior que a própria perda. Imaginem um exemplo banal, como uma casa da qual gostávamos muito, mas que precisávamos abandonar. Enquanto ela existir, temos uma esperança, ainda que distante, ainda que inconsciente, de voltar a morar nela. Na medida em que essa possibilidade se distancia, aumenta nossa nostalgia, só que sem liquidar a esperança. A coisa pode ser resolvida de duas formas: ou readquirimos a casa (final feliz), ou seu atual proprietário a destrói. Em ambas temos a cessação da angústia, que pode ter se mantido por anos a fio.

Portanto, não são as perdas em si, agravadas com a chegada da idade, que são molas propulsoras de uma possível depressão, mas o estado de permanente angústia, mesmo que não se trate de uma condição inevitável. Como já escrevi aqui, a depressão é informe e espraiada, na medida em que é muito difícil compreender uma causa direta e única para a perda de identidade que a caracteriza, mas a cada vez que uma das pequenas derrotas da crise da meia-idade se instaura na vida de alguém, mais um pouco a pessoa perde de si mesma. E, sim, isso inclui coisas aparentemente pequenas, como a conclusão de que pequenas luzes natalinas iluminam a sua solidão.

Isso tudo aconteceu como num flash, em uma experiência curiosa e melancólica. Depois disso, o pessoal começou a chegar e eu fui fritar os churros.

Recomendação de leitura:

A maneira como Melanie Klein tratou de observar as fantasias inconscientes das crianças, respeitando o que elas mesmas tinham a dizer, e a sua teoria do seio são algumas das coisas mais belas que observei em psicologia, lembrando que a mesma era uma cientista leiga e autodidata. Recomendo que todos os que se interessam por educação conheçam um pouco de suas teses.

KLEIN, Melanie. Psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1997.


* Churros espanhóis, para quem não sabe, não têm recheio. A regra geral diz para polvilhar apenas açúcar e canela, mas é perfeitamente possível utilizar qualquer creme para incrementá-los.

Agradeço à Mimi e à Ná pela composição da foto que ilustra este post.

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