Uma circunstância muito bacana na minha vida é a
possibilidade de conviver com muitos jovens e crianças, pois deles temos uma
visão de mundo que guarda ainda algo da pureza de sentimentos impossível de ver
nos adultos. Em geral, são muito alegres e descontraídos, muito “de bem com a
vida”, mas em minhas experiências extraídas deste convívio, tenho percebido que
essa não é uma verdade absoluta, e observar um adolescente angustiado é muito
mais doloroso do que fazê-lo com meus coetâneos, mais experientes e menos vulneráveis.
A juventude é retratada muitas vezes como uma fase áurea de
nossas vidas, e é mesmo. Temos vigor, temos vontade, temos planos, temos
projetos, acreditamos em valores que vão declinar no futuro, como o
companheirismo, a confiança no grupo e que-tais. No entanto, e até mesmo pela
quantidade tão significativa e profunda de inflexões, a juventude tem
inevitavelmente esse viés de angústia e da incerteza que a gera. Um belíssimo
retrato desta situação nos é dado na obra-prima de Jérome Salinger, O Apanhador no Campo de Centeio (tristemente
célebre por conta do assassinato de John Lennon). Neste livro, o protagonista
Holden Caulfield se vê diante dos impasses e traumas mal resolvidos da lenta transição
da infância para a adolescência e de sua aproximação ao mundo adulto.
Estranhamente, um de seus principais pontos de apoio não vem de algum mentor
experiente ou de algum grande amigo, mas de sua irmã menor, Phoebe. Queria
saber ler em inglês, dizem que há todo um lirismo na escrita que torna a
leitura do livro ainda mais sedutora. Não vou ficar falando muito sobre a obra.
Procurem e leiam, vale a pena (veja a citação mais abaixo).
Ok. Os conflitos nem sempre são visíveis a um primeiro
olhar, mas é preciso ter consciência de que nós, como pais, devemos mais
procurar evitá-los, pura e simplesmente, ou eles são inevitáveis? Quem sabe até
mesmo desejáveis? Vamos tomar um exemplo prático.
Em tempos pretéritos, um jovem tinha um destino meio que
traçado: seguir o ofício do pai, se menino. Ou ser dona de casa, quando menina.
Isso tinha razões práticas. O descendente aproveitaria seu espaço e seu
ferramental, herdaria seus conhecimentos e freguesia, perenizaria o nome e a
fama da família, dando continuidade à sua obra. Quanto às meninas, estas eram
preparadas para o casamento. Se isso era bom, não vem ao caso neste momento.
Mas é inegável que a incerteza (fato gerador de angústia) era menos impactante.
Veio a modernidade, fornecendo maior liberdade de escolha, com uma maior
possibilidade de erro. A carreira do pai já não possui o mesmo significado. A
manufatura foi substituída por processos industriais cada vez mais
automatizados. O trabalho passa a ser mais intelectual que braçal. Isso permite
às jovens mocinhas ingressar em um número cada vez maior na força de trabalho.
O modelo familiar também sofre modificações. O papel da mulher na sociedade tem
uma reviravolta radical, ela não fica mais em casa cuidando de seus afazeres e
de seus filhos. Procuram por universidades cada vez mais diversificadas e
especializadas. As crianças são colocadas cada vez mais novas na escola,
modificando o conceito de transmissão do conhecimento, que fica atribuído a
terceiros.
Só que esse novo molde cobra seu preço. Como já pude comentar
neste post, apesar de fazê-lo sob outro prisma, há um estreitamento na
faixa etária daquilo que podemos chamar de juventude. Por força de lei, o jovem
só pode começar a trabalhar a partir dos 16 anos, fazendo com que sua coleta de
informações sobre o mundo das relações trabalhistas seja feita mais
tardiamente. Por outro lado, o trabalhador com mais de 40 anos é considerado
velho, em especial por conta da desenfreada necessidade de atualização exigida
pelos ofícios modernos.
Essa condensação do tempo estabelecido socialmente (a
infância estendida e a velhice antecipada) acaba por formar uma consequência
cruel: colocamo-nos diante do dragão com uma única bala na agulha. Que dragão é
esse, meu São Jorge? A incerteza da escolha, reforçada pela consciência de que
poucas chances teremos de ter uma segunda oportunidade. Pensemos: conhecemos
várias pessoas que cursaram uma segunda ou terceira faculdade. Fazem-nas para
complementar conhecimentos necessários à sua atividade ou mesmo por puro
prazer. Eu, pessoalmente, conheço poucos que o fizeram para dar uma guinada
radical. Por isso mesmo, a pressão se torna muito maior.
As consequências óbvias são aquelas que já conhecemos. O
jovem se vê deparado com uma enorme quantidade de opções disponíveis nas
universidades para fazer suas escolhas, ao mesmo tempo em que possui ao seu
alcance a gigantesca massa de informações fornecida pela internet e outras
mídias. O jovem do passado ficava naquela alternativa: “só tem tu, vai tu
mesmo”. Mas agora a chance de erro é muito maior. Repito: isso não é ruim. Mas
o adolescente de hoje começa tarde a desvendar seus talentos, e sabe que uma
carreira mal escolhida pode atar grilhões muito pesados em suas pernas,
especialmente no campo da satisfação pessoal.
Os pais vêm de um mundo que trabalhava com outras
engrenagens. Pertencemos a uma geração que teve seus filhos mais tarde (o que
não é meu caso), já não temos oficinas para deixar de herança. Há uma tendência
em fazer acelerar o ritmo da escolha dos filhos, já que há pouco a oferecer em
apoio. Acham, em geral, que a indecisão é um malefício do mundo moderno, o que
não deixa de ser verdade, mas o fazem por uma ótica que foi recebida por
gerações anteriores, que é a imperiosidade de ajudar em casa a qualquer preço.
Nossos pais eram operários, construtores, ferroviários, motoristas, batiam
cartão, operavam com o corpo, viram-se diante de uma cidade em formação.
Queriam para seus filhos oportunidades melhores, menos pesadas. Mas o mundo de
hoje é outro.
Dessa forma, temos dois ângulos que enxergam a mesma
questão: os pais, que exercem a pressão baseados na suposta desídia (que de
fato ocorre às vezes; poucas, é verdade) e os filhos, que se angustiam diante
da possibilidade de uma escolha mal feita.
De fato, como já disse, o interesse dos pais no futuro dos
filhos é absolutamente legítimo. Será que há algo de errado em desejar sucesso
à prole? Acontece que é preciso fazê-lo de maneira parcimoniosa. Essa pressão
pode levar o jovem a fazer escolhas equivocadas só para que a veja diminuída, o
que não é bom.
Só que os filhos também não devem deitar em berço
esplêndido. Em última instância, é o seu interesse que está em jogo. É preciso
que eles mesmos procurem detectar suas ambições, suas adequações e seus dons. O
que é um fato preciso e bem acabado é que o modelo social é este mesmo, e os pais nada mais são que seus representantes. Não que
devamos nos conformar pacificamente, e que não procuremos transformar a
realidade ao nosso redor, mas não sabemos quanto tempo a roda levará para
girar, e, para o bem e para o mal, a vida seguirá assim, é preciso encará-la.
Mas há algo que é absolutamente primordial nesta escolha. É
preciso esquecer-se o fator monetário, tão considerado nos dias de hoje. Não é
verdade que as pessoas que prosperam em determinada atividade amam-na por causa
do dinheiro que a mesma proporciona. Antes disso, trabalham com afinco e fazem
tudo bem feito porque gostam do que fazem, e isso acaba por lhes render
qualidade na sua produção e consequente retorno financeiro. Também não é
verdade que existam atividades em que há impossibilidade de boa remuneração.
Vejam um exemplo: para que serve uma faculdade de Filosofia? Para dar aulas, na
maioria das vezes. E sabemos que os professores são mal remunerados no Brasil.
Será mesmo? Perguntem aos filósofos brasileiros popstars,
como Viviane Mosé, Luiz Felipe Pondé, Márcia Tiburi, Renato Janine, Marilena
Chauí, Paulo Ghiraldelli, Mario Cortela, Denis Rosenfield e outros se estão
passando por necessidades. Não há nenhuma conotação pejorativa em chamá-los de
popstars. São professores que alcançaram sucesso em suas carreiras, fama,
escreveram livros, artigos de jornais e revistas, cobram caro por suas
palestras, tudo isso por uma razão simples e eficaz: amam o que fazem.
E é aí que a ajuda dos pais vale ouro: na detecção do
talento dos filhos. Em maior ou menor medida, os pais convivem e prestam muita atenção nos filhos.
Conhecem-nos até pelo andar. Sabem do que eles gostam, do que fazem melhor, do
que mais lhe chamam a atenção. Sabem o quanto são questionadores, se gostam e o
que gostam de ler, se tem propensões artísticas ou esportivas, se são
comunicativos, se são contestadores; conhecem, enfim, suas habilidades, a não
ser que uma crise de relacionamento muito profunda os impeçam de possuir uma
visão minimamente saudável. Opiniões dadas com sinceridade e bom senso podem ser reconhecidas pelo jovem como um corrimão seguro na escada que necessita subir.
No entanto, os pais devem se lembrar que são adultos e fazer
uso de sua razão. É preciso que tenham cuidado para não projetar suas
frustrações nos filhos. Nem adianta ficar vendo em seus filhos eternas crianças. É
preciso deixar isso no nível do sentimento. Houve, na época da última
olimpíada, uma belíssima propaganda de banco que mostrava crianças competindo
nas diversas modalidades enquanto seus pais as observavam das arquibancadas. As crianças representavam os atletas, já adultos; apenas os pais ainda os enxergavam como guris eternos. Na
verdade, essa visão é linda como poesia, mas se você não consegue se desprender
dela, não conseguirá exercer juízo crítico de modo a colaborar com as escolhas
de seus filhos, e é melhor procurar ajuda com os professores do jovem, e mesmo
seus amigos podem ser boa fonte de informação.
Insisto mais uma vez: não se foquem no dinheiro, que virá
naturalmente se a escolha for acertada. Que os pais não se apeguem ao sucesso
imediato proporcionado por profissões do momento, e que os filhos não
subestimem suas capacidades de serem felizes, ainda que o status de sua
carreira não seja algo que, a primeira vista, das mais atraentes.
Por fim, é preciso lembrar que, apesar de desagradável, toda
essa incerteza permeada de um sentimento que flutua entre a afobação, o medo e a
tristeza, não deixa de ser um aprendizado. É sempre necessário lembrarmo-nos
que, a cada vez que nos aproximamos mais e mais da velhice (sim, velhice;
“melhor idade” é um termo tão mequetrefe e falsificado quanto o “politicamente
correto”), maiores serão nossas angústias (lembram deste post?). É um
momento em que guardamos uma reserva de experiência para quando nossas
possibilidades não estiverem mais limitadas pela pressão das escolhas, mas pelo
pouco tempo que nos resta, e pelas provações de ordem natural. Sob este sentido,
a escolha difícil é propedêutica: não adianta vivermos um sonho dourado,
onde nossos caminhos nunca encontrarão encruzilhadas ou abismos.
Recomendação de leitura:
SALINGER, Jerome. O apanhador no campo de centeio. Rio de
Janeiro: Editora do Autor, 1999.
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