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segunda-feira, 11 de julho de 2016

Sobre a batalha entre criação e evolução nas salas de aula (Pequeno guia das grandes falácias - 28º tomo: as traves móveis - moving the goalposts)


Meninos e meninas, pensem bem certinho quando lhes vierem com aquela velha conversa de que “no meu tempo é que as coisas eram boas”. Não eram, não. Ou melhor, algumas coisas podiam até ser consideradas melhores, mas, no todo, o tempo passa e as coisas evoluem. Como já tive a oportunidade de escrever neste espaço (aqui), o argumento dos bons tempos está ligado à perspectiva pessoal de um indivíduo que envelheceu, e aí sim: as perdas de vigor e as saudades daqueles que foram os grandes anos da vida levam ao convencimento de que tudo é pior.

Mas há alguns exemplos banais que nos provam do contrário – pesquisas, rotas, pagamentos e um prosaico chamar de táxi, tudo com um simples deslizar de dedo no celular, mostram a revolução das comunicações. Salicilatos, pirazolonas e aminofenóis mitigam dores que só eram resolvidas à base de mezinhas e paciência. Asfalto, luz, telefone, água encanada e esgoto substituíram macadame, vela, carta, poço e fossa. E até mesmo algo em que poucas vezes pensamos: é cada vez mais raro pagar por algo que não compramos.

Sim, é verdade. Balanças viciadas e metros de 95 centímetros eram coisas irritantemente comuns, seja nas feiras livres, nos mercadinhos, nos empórios, nas tecelagens ou nos armarinhos. Lembro-me que uma das práticas mais recorrentes era colocar um ímã na lateral do ponteiro das antigas balanças analógicas. Na medida em que o leve ponteiro metálico se aproximava do fim da escala do mostrador, o ímã punha em prática sua estranha e fascinante propriedade magnética e fazia o traquinas comerciante se locupletar em alguns preciosos gramas, para prejuízo do incauto adquirente.

Pode-se dizer que hoje em dia o laço afetivo entre as pessoas é mais propenso a se desfazer, e que não há tranquilidade no mero vagar e divagar pelas ruas de nossa urbe, mas é inegável que o aperto na legislação e a aferição dos instrumentos pelos órgãos públicos nos trouxeram um pouco mais de segurança de que meu quilo de batatas pesa mesmo um quilo.

Essa propensão em ocasionar desvios em pesos e medidas pode ser aplicada a argumentos? Pode, e como... Há duas maneiras de fazê-lo – aproximar o foco a nosso favor ou deslocar a meta contrária a nós. Vamos tratar hoje deste segundo aspecto, que pode ser sentido intensamente no furibundo debate entre partidários do criacionismo e do evolucionismo. Para tanto, vamos fazer uma rápida definição de cada uma dessas correntes, mas antes vamos falar da escola que estava em voga antes de Lamarck.

Quando a humanidade ainda não contava com um aporte muito significativo de conhecimentos científicos, a sua curiosidade não era menor que a de hoje, bem como sua tendência a tentar adivinhar as coisas. Para fazê-lo, o homem juntava os elementos que tinha à sua disposição. No caso das espécies, podia observar que de homens surgiam homens, de cavalos surgiam cavalos, de pulgas surgiam pulgas e de agriões surgiam agriões, incessante e invariavelmente. Alguém poderá dizer que existia uma tese de que seres podiam surgir de outras matérias (hipótese abiogenética), mas não vou descer a esse nível de detalhe no momento – até porque os elementos que surgiam eram iguais a outros preexistentes, o que mantém o raciocínio no mesmo lugar. Mas o entendimento obtido através dessas observações era o de que as espécies eram prontas e acabadas.

A hipótese fixista elabora que todas as espécies surgiram tais e quais são hoje. Pode parecer estranho, mas cientistas e filósofos de respeito eram partidários desta ideia, que, de resto, descomplica muito a vida de quem quer entender as origens das diferentes espécies. Gente do porte de Carlos Linneu, que é o cientista que inventou o método para denominar as espécies – homo sapiens para o homem, equus caballus para os cavalos, pulex irritans para as pulgas, nasturtium officinale para o agrião e demais que-tais. Outro exemplo é Georges Cuvier, criador da anatomia comparada. Ou seja, o fixismo era o conhecimento consagrado até então e tinha grande aceitação.

O fixismo é aderente a ideias de que há uma inteligência por trás da formação das espécies. E, com isso, nasce o termo criacionismo. Os criacionistas não são obrigatoriamente fixistas. Por exemplo, a doutrina do Vaticano tende a reconhecer plenamente os mecanismos da evolução, sendo que Deus seria uma espécie de arquiteto da ação que a natureza produz. Mas, como eu disse, o fixismo acomoda-se perfeitamente bem a um dogma de criação, onde um Deus plenipotente tem um ato de vontade própria e forma as criaturas do jeito que bem entender. Claro que temos a tendência em pensar no Cristianismo, formador de nossa cultura, mas, basicamente, todas as religiões explicam o surgimento do mundo, animais e plantas inclusos, através de uma manifestação divina. Mas, por outro lado, o eixo do fixismo também prescinde de uma criação divina – as espécies poderiam se originar de outros planetas, do oco da Terra, de uma materialização de estados etéreos e etc. Passons.

Só que o conhecimento evoluiu, vitaminado por quantidades cada vez maiores de observações de que, seja por qual motivo for, as espécies não permaneciam sempre iguais, mas evoluíam. A descoberta dos fósseis, por exemplo, levou à compreensão de que muitas formas de vida desconhecidas já não caminhavam sobre a Terra. E isso fez nascer o conceito de adaptação ao meio. A princípio, surgiu Lamarck, de quem já falei aqui (e por isso mesmo não vou me aprofundar), que imaginava o surgimento e desaparecimento de características de acordo com sua utilização. Um belo exemplo vem dos órgãos vestigiais, como é o caso do apêndice intestinal humano, uma tripinha perdida nos emaranhados do intestino, que só lembramos que existe quando inflama – a malfazeja apendicite. Observando a proposta de Lamarck, diríamos que nossa alimentação se tornou mais branda, em especial pela descoberta do cozimento, e o intestino já não precisaria mais ser tão longo. O apêndice seria o vestígio de um órgão em pleno desaparecimento. Já temos aqui a ideia de evolução baseada na regra de uso e desuso.

Mas outras evidências fizeram com que a investigação sobre a origem das espécies tomasse ainda outro rumo. Como podemos observar nos estudos embriológicos, existe uma diferenciação muito menor entre os fetos de baleias, cães, cangurus, tamanduás e homens do que os indivíduos já plenamente formados podem fazer supor. Isso conduz à ideia basilar do evolucionismo darwiniano: somos originários de um ancestral comum, e as diferenciações ocorrem principalmente pela seleção natural. Esta evidência se torna mais robusta na medida em que comparamos as diferentes estruturas corpóreas de espécies semelhantes e observamos como cada uma delas se adapta a diversas condições ambientais. Os que mais bem se adaptam são aqueles que permanecem. Bem resumidamente, é a seleção natural (mais detalhada aqui).

Acontece que as ideias que persistem por séculos, como é o caso das doutrinas fixistas, não se rendem sem resistência, ainda mais quando oriundas de um componente cultural muito forte, como é o caso da Religião. A Religião não vive apenas de normatizar a ligação com a transcendência, mas de explicar o universo que nos rodeia, coisa que é o mesmíssimo objeto de estudo da Ciência, e as colisões são inevitáveis.

E com isso chegamos ao atual debate entre evolucionismo e criacionismo, problema muito evidente nos EUA e que tem crescido significativamente no Brasil. A questão toda reside na exclusão da hipótese criacionista nas aulas de Ciências, o que, para os adeptos desta corrente, tolhe dos estudantes a oportunidade de se confrontar teorias distintas. Os evolucionistas se contrapõem, informando que a Ciência tem um método a ser seguido e que a Religião não o faz. A hipótese de criação se baseia em fé, e não em provas que possam ser refutadas. Em síntese, é isso.

Tem mais detalhes. Da afirmação que fiz há pouco, de que a cúpula católica não vê problemas significativos na evolução, vocês poderiam perguntar porque o problema tem recrudescido. São duas as respostas. Em primeiro lugar, nos EUA temos uma maioria de cristãos de origem protestante, que, em geral, seguem a doutrina da sola scriptura. Isso significa que apenas a Bíblia pode ser encarada como fonte válida para a interpretação dos dogmas. E lá está escrito que Deus fez o céu, a Terra, os homens e demais espécies. Isso não é um problema para católicos e ortodoxos, que estatuem também a tradição e o magistério como fontes lícitas de embasamento teológico. Desta forma, se do Vaticano emana um entendimento magisterial de que a evolução não pode ser descartada, punto e basta. Mas é diferente com as doutrinas protestantes, muito mais literalistas. Com o crescimento contínuo das Ciências e da tecnologia que a suporta, cada vez mais difícil fica de dar sustentação a teses extraídas ipsis litteris de algum livro sagrado. E para que isso seja amenizado, servem-se da proposta de confrontar seu pensamento diretamente em sala de aula, na disciplina de Ciências. Vejam a série de vídeos que eu recomendo abaixo, com toda a paciência do mundo, e vocês compreenderão bem o modus operandi desta corrente criacionista, inclusive a insólita estratégia da cunha.

O segundo ponto diz respeito ao Brasil, país de maioria católica pouco praticante, e que vem assistindo a um crescimento exponencial de sua camada evangélica. Deste segundo ponto, derivo outros dois: 2a – os evangélicos conseguiram constituir uma bancada muito sólida no Congresso, organizados e pragmáticos que são. 2b – nós sabemos muito bem como são as coisas no Brasil. Diferentemente dos EUA, onde a 1ª Emenda de sua Constituição estabelece o estado laico e é defendida com unhas e dentes pelo seu judiciário, aqui a solidez das instituições tem a consistência de uma maria-mole. E num descuido qualquer pode ser enfiada goela abaixo da classe docente a obrigatoriedade do ensino de criacionismo em aulas de Ciências.

Pois bem. Religião e Ciências talvez não sejam irreconciliáveis, mas costumam quebrar a cara mutuamente quando uma tenta penetrar no terreno da outra, ou seja, quando a Ciência tenta refutar a fé e a Religião busca refutar as evidências. Já tratei de uma certa arrogância dos cientistas em texto passado, e agora vou cuidar do inverso. Vamos lá.

Na minha opinião e em primeiro lugar, está errado o entendimento de que Religião deve ser ensinada apenas nas igrejas, e deixá-la fora das escolas. Até mesmo porque a religiosidade se exerce mesmo sem que haja vínculo com uma religião instituída. E não é possível compreender a formação das diversas sociedades e a escrita da História sem reunir todos os elementos que compõem o seu patrimônio cultural, sendo a Religião indissociável da cultura. Havendo a disciplina, no entanto, é preciso cuidar para que ela seja o menos enviesada ideologicamente possível, sempre lembrando que componentes culturais que nos atinjam tenderão a receber alguma ênfase em relação a outros que nos são completamente estranhos. Aulas de Religião deveriam explicar o surgimento deste fenômeno, como influenciaram a história da humanidade, os conceitos de imanência e transcendência, os seus propósitos epistemológicos e éticos, e descrever, em linhas gerais, o funcionamento de cada uma delas, pelo menos as principais, demonstrando como as mesmas articulam com o mecanismo social. Esse é o espaço adequado a teses criacionistas de origem religiosa.

Mas o criacionismo não pode ser ensinado em aulas de Ciências, pelo fato mais simples de todos: não é científico.

Imagine, por exemplo, que seu professor de Português invalide uma redação sua porque há um erro em uma afirmação histórica, por exemplo. Seu texto é escorreito, fluente, bem referenciado, coeso, corretamente pontuado e acentuado e, ainda por cima, criativo. É correta a atitude do professor? Pode até valer a observação do erro histórico, já que estamos falando de ensino, mas a análise deve ser enfatizada nos aspectos redacionais, e não históricos. Ou pensemos em algo mais direto: imaginemos que de fato haja aulas de Religião em escolas laicas. Faria cabimento uma lei que obrigasse a inserção do evolucionismo na grade desta disciplina?

O criacionismo não se prova cientificamente, e isso basta para que a confusão que mencionei se estabeleça. Criacionismo é artigo de fé, não tem como se comprovar – premissa fundamental das Ciências. Quando um cientista especula, já corre para tentar encontrar um método de obter evidências, por que é isso que caracteriza a matéria-prima do seu trabalho. O religioso só tem um livro e sua crença para lhe dar amparo. Percebam – não quero discutir o que é mais válido, mas sim dar a César o que é de César, e à Ciência o que é da Ciência: o espaço da prova, da evidência e do indício que busca comprovação.

Só que a batalha continua e, para fazer frente à Ciência, os criacionistas buscam incessantemente falhas na teoria evolucionista. E, talvez por isso mesmo, o criacionismo tenha cuidado de parecer científico, através, basicamente, da refutação às teorias evolucionistas. E aqui chegamos a quê? Sim, a ele mesmo, o magnânimo Pequeno Guia das Grandes Falácias.

Vejam só. A tática criacionista consiste em desmerecer as linhas mestras da pesquisa evolucionista. Quando se correlaciona uma espécie existente ao fóssil de outra espécie extinta, afirmam que ambas estão distantes demais para que tal ligação seja válida. Quando um surge um fóssil de transição, que seria um elo para suprir essa insuficiência, uma nova lacuna é aberta, sob a alegação de que ainda não se está próximo satisfatoriamente. O exemplo mais clássico é o do surgimento de asas. Entre os fósseis de espécies mais antigas e os de aves primordiais, faltaria o que os criacionistas fixistas chamam de “meia-asa”. Se esta for encontrada, repete-se o argumento e faltará o “quarto-de-asa”; uma vez achado, onde estará o “oitavo-de-asa”? E assim se repetirá ad nauseam, 1/16 de asa, 1/32 de asa... porque é a salvaguarda de um argumento que se constrói pelo desvio da meta a ser atingida.

Para quem gosta de futebol, o termo “meta” vem do linguajar tucano para designar o bom e velho gol. Chamamos de gol tanto o ato quanto o aparato, e este último é composto, como se bem sabe, de uma armação de traves e rede. Para convalidar o ato, é necessário que a bola atravesse completamente o aparato, ou seja, a linha demarcada de cal que preenche o espaço entre as traves laterais, e que corre paralelamente ao travessão superior no sentido horizontal. Em miúdos, o gol ocorre quando a bola penetra totalmente no retângulo formado por todos esses elementos. Para evitar licitamente que o gol ocorra, temos um goleiro que é destinado a agarrar as bolas, único jogador que pode tocá-la com as mãos. Mas este personagem também pode fazê-lo deslocando levemente a meta. É o que fazem marotamente alguns guarda-metas, que puxam um pouco a trave para dentro do campo quando o adversário se prepara para bater um escanteio. Essa atitude faz com que o ângulo fique mais fechado, dificultando a conclusão do lance. O deslocamento deve ser evidentemente pequeno, mas nessas coisas de futebol sabemos que a diferença entre a bola dentro e a bola fora é medida na casa dos milímetros.

E aí vem o ponto de contato do futebol com a falácia em testilha: da mesma forma que o goleiro move o arco para evitar o tento, o argumentador move o tema para evitar a conclusão lógica indesejada. Por isso, essa falácia é chamada de traves móveis, apesar de ser mais conhecida pelo termo em inglês moving the goalposts.

Uma mexidinha na trave já é suficiente para atrapalhar o atacante

Ao clamar pela meia-asa, o criacionista radical nada mais faz do que mover a trave. Usa uma falácia de dispersão, que busca desqualificar um argumento decretando sua insuficiência insistentemente. A complexidade irredutível, tese defendida pelos criacionistas que afirma existirem estruturas tão complexas em si próprias que fica inexplicável sua construção sem a intervenção de um artífice, é a expressão mais bem moldada e bem acabada deste estratagema. O exemplo mais usado é o do olho humano (desprezando o fato de que há animais com visão muito mais sofisticada), mas inúmeros outros podem ser aventados.

É um argumento que se vale muito da incapacidade humana de compreender a totalidade das transformações que ocorrem em dimensões inalcançáveis por seus sentidos, que acabam por acorrentar seus balizamentos mentais: é a tal da mente descontínua, que já tive a oportunidade de discutir aqui.

É claro que exigir evidências convincentes não é um mal em si mesmo, muito pelo contrário. Até mesmo porque provas ínfimas ou claudicantes constituem outras falácias, a evidência anedótica e a amostra não significativa, que tratarei oportunamente. O problema acontece quando uma posição é defendida com pura e simples intenção de desmerecer as provas oferecidas em posição contrária; seja pela quantidade, ao afirmar serem poucas as evidências apresentadas; seja pela qualidade, respondendo que as evidências são pobres. 

Resumidamente: em geral, esta falácia dispersa a própria falta de consistência do argumento que defende, apontando defeitos no argumento dos outros e criando novos empecilhos a cada meta atingida, ou seja, puxando mais e mais as traves para longe do lugar em que elas permitem ao adversário marcar um gol. Só que há uma armadilha: quando o deslocamento é grande demais, o juiz poderá percebê-lo, e mandar o velhaco goleiro mais cedo para o chuveiro. Ou o INMETRO pode confiscar a balança metida a favorecer o danadinho do comerciante.

Recomendação de vídeos:

A série de vídeos abaixo, evidentemente feita sob o ângulo do cientista, dá um painel completo do embate entre a criação e a evolução. Recomendo assistir aos poucos, mas quem tiver tempo pode assistir em uma sentada só.

Canal do Pirulla:
https://www.youtube.com/playlist?list=PLet1ZJ4fv0cpIz9c29WIU3MUyTr5DwixR

Não sejam preguiçosos e assistam também os vários vídeos de refutação feitos à lista acima. Não encontrei nenhum que me convencesse, mas, se houver algum bom, deixe nos comentários. Caso seja realmente significativo, faço questão de acrescentá-los a estas recomendações.

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