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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Sobre a despolitização de nossa juventude (Parte I – As flores feias da terra adubada com ódio)

São noites de silêncio
Vozes que clamam num espaço infinito
Um silêncio do homem e um silêncio de Deus
(Frei Tito)

Olá!

Estão chegando as eleições municipais deste ano, e creio que o tema é bastante pertinente neste momento.

Como já havia dito no post anterior, tenho percebido um índice de politização muito baixo na população brasileira como um todo, sendo este fenômeno especialmente preocupante entre as camadas mais jovens. É uma situação gravíssima, porque reflete o quanto as gerações futuras terão de dificuldade em fazer valer seus direitos e exercer seus deveres, além de demonstrar, por extensão, o quanto nós, adultos de hoje, também não somos capacitados para o relacionamento com o poder. Por que tudo isso acontece?


Bom, em primeiríssimo lugar é preciso compreender o que aconteceu com essa geração perdida, e isso significa pensar em como se deu a formação da faixa de população que vai dos 35 aos 60 anos, ou seja, a porção de gente que deveria estar em pleno exercício da guia dos rumos do país, e que, não por coincidência, tiveram sua infância e juventude vividas durante o período de ditadura militar no Brasil. A geração anterior teve a seu dispor uma metodologia de ensino baseada em princípios humanistas, de origem predominantemente européia. De forma mais ou menos aperfeiçoada, procurava-se transmitir o conhecimento de maneira holística. É bem verdade que existia a chamada “prova de admissão”, mecanismo destinado a filtrar a evolução dos alunos, e proporcionar às elites um acesso mais garantido à escola pública de boa qualidade, e que tolhia das classes menos abastadas a possibilidade de prosseguir seus estudos. Mas de qualquer forma existia a preocupação em se constituir um ser pensante.

Veio o período militar e a conseqüente mudança da forma com a qual o governo lidava com sua relação com a sociedade. Toda a estrutura então vigente foi sacudida, e a orientação educacional não podia fica de lado. Um belo dia disseram: a sociedade não nasceu para pensar, mas para produzir. Não é pensando, mas produzindo, que será garantido o futuro da nação. E a escola foi transformada em fábrica, como diz o belo (e correto) pensamento da filósofa Viviane Mosé. Todo o conhecimento passou a ser transmitido de forma fragmentada, sem vínculo entre si, exatamente como em uma linha de produção, onde o operário realiza suas funções sem necessidade de saber como a peça chegou e o que será feito dela após seu trabalho. Os horários são marcados rigorosamente, sem interpenetração entre o que acabou de ser exposto e o que será tratado a seguir.

Tudo o que representasse algum tipo de atividade contrária ao ditame oficial era atenuado ou extinto. As fanfarras passaram unicamente a existir como participantes de desfiles militares. O ensino de certas disciplinas de extrato intelectual, como a filosofia e a sociologia, foram retiradas do currículo. Os centros cívicos (para quem não sabe, são – ou eram - órgãos compostos de alunos eleitos com o objetivo de intermediar os anseios do corpo discente junto à direção da escola) foram desencorajados. Conto uma história: na escola em que eu estudava, lá pelo final da década de 70, houve uma ocasião em que um determinado “partido” trazia uma proposta insólita e simples – toda a verba do CC seria destinada à compra de livros para enriquecer nossa claudicante biblioteca. Sob o argumento que a decisão pela aquisição de livros pertencia à Secretaria de Educação, o grupo candidato foi extinto e seus membros tiveram seus nomes anotados no tenebroso “livro negro”. Pois é, estes centros serviam unicamente para tarefas bem mais “dignas”, como organizar excursões, torneios, festivais e eventos juninos, e não para dar voz às reivindicações dos alunos. Subversivos malditos de esquerda! Como assim, ousar pensar? Não é de se admirar que não tenham mais surgido nomes significativos a partir do movimento estudantil.

Como obter prazer em estudar num ambiente destes? A escola alijou-se da sociedade, as crianças tinham-na mais como castigo do que como obrigação. Os métodos aplicados são contrários ao raciocínio, porque se estabeleceu o reinado da decoreba. O esquema texto-questionário, texto-questionário, texto-questionário nada mais é do que a projeção do que virão a ser as instruções de trabalho.

Tem mais: a comunidade não se integrava mais à escola, já que nada era realizado em benefício de habitantes não matriculados, e mesmo aos estudantes não eram propiciadas atividades lúdicas fora do “expediente” – mais uma remissão à fábrica.

A lição cartesiana é feita apenas pela metade: você subdivide o problema, mas nunca o reagrupa. Com isso, uma geração sem visão de contexto foi sendo lentamente criada. Esta é sempre parcial e reduzida. A criança e o jovem foram sendo treinados para o trabalho sem contestação e, principalmente, para não se imiscuir em assuntos políticos. Um anestésico cultural, uma lobotomia virtual.

Mas não foi só o sistema educacional que foi afetado. Também tivemos reflexos na legislação trabalhista, nos programas de saúde, na política de transportes. Mesmo o conceito de segurança foi destruído no período ditatorial. A polícia e as forças armadas deixarem de ser as garantidoras da manutenção da lei para ser o braço armado do Estado. Dizem os defensores da exceção que a polícia tinha que ser dura porque a oposição era feita à base de terror, em afronta à legislação. Ok, pode ser verdade. Mas é preciso compreender, por isso mesmo, que se uma instituição tem o papel de defender a lei, não pode ela mesma transgredi-la. Estes órgãos tinham tanta consciência de sua inversão de propósitos que produziu inúmeros enterros clandestinos, forja de suicídios, falsificação de documentos e atestados médicos. E mortes, e torturas, e exílio, e censura... O resultado é que qualquer um tinha medo da repressão, e não apenas quem tivesse alguma sujeira em cima.
O legado foi uma autêntica herança maldita. O país foi entregue aos civis, não por uma vitória da democracia, mas porque estava quebrado após anos e mais anos de projetos mirabolantes e desnecessários, com fartos convites aos desvios de verba. Gastaram-se os tubos para abrir uma picada no meio do mato chamada Transamazônica, para fazer uma perigosa usina nuclear (que não dá conta nem de 2% da energia elétrica do país) em um lugar paradisíaco como é Angra dos Reis, para constituir uma empresa que explorar (o que nunca aconteceu) petróleo do lado oposto àquele em que ele verdadeiramente está, para adquirir uma empresa de energia elétrica que seria devolvida ao país pelo término de sua concessão. Os defensores da ditadura alegam que os presidentes militares não enriqueceram em seus governos, mas admitiram escândalos em quantidades industriais, como o Coroa-Brastel, Haspa, Atalla, Grupo Delfin, Capemi, Lutfalla, Banco Halles, Vitória-Minas e tantos outros, estes os que chegaram ao nosso conhecimento. O resultado foi a produção de uma dívida externa que até pouco tempo atrás imaginávamos que seria impagável, com farto pagamento de juros aos credores internacionais. Para governos que se diziam tão nacionalistas, parece um pouco contraditória essa subordinação aos ditames da comunidade financeira estrangeira. Ou seja, os militares eram nacionalistas de fachada, na medida em que desnacionalizaram a economia. As paradas militares e os hinos cantados nas escolas passaram a significar uma falsificação de um sentimento cívico que já não existia. Acho quase engraçado quando alguém diz que esses tempos é que eram bons, que não existia violência, que os professores eram respeitados. Cegos, isso é o que são. O fruto podre que colhemos hoje se originou da semente plantada com ódio nessa época. Trazer a ditadura de volta não fará com que Adriano Fonseca Filho, Alexandre Vannuchi Leme, Alfeu de Alcântara Monteiro, Ana Maria Corrêa, André e Maurício Grabois, Ângelo Arroyo, Antonio Benetazzo, Antonio Carlos Lana, Antonio dos Três Reis, Aurora Furtado, Bergson Farias, Carlos Lamarca, Carlos Marighella, Ciro Flávio, Dinalva Teixeira, Bacuri, Francisco José de Oliveira, Francisco Tenório Jr., Honestino Guimarães, Iara Iavelberg, Jana Moroni Barroso, Padre Burnier, João Carlos Haas, Joaquim Câmara Ferreira, José Guimarães, Zé Carlos Machado, José Manuel da Silva, José Maximino de Andrade, José Porfírio de Souza, Ligia Salgado, Luis Tejera Lisboa, Manuel Fiel Filho, Lyda Monteiro da Silva, Margarida Maria Alves, Maria Auxiliadora Barcelos, Maria Lucia Petit, Maria Regina Lobo Figueiredo, Onofre Pinto, Osvaldo Orlando da Costa, Paulo Stuart Wright, Pedro Inácio de Araujo, Raimundo Ferreira Lima, Pedro Pomar, Raimundo Gonçalves Figueiredo, Santo Dias da Silva, Soledad Barret Viedma, Stuart Angel Jones, sua mãe Zuzu Angel e sua esposa Sônia de Moraes Angel, Frei Tito (o da epígrafe), Vladimir Herzog, Walter de Souza Ribeiro, Yoshitane Fujimori e tantos outros revivam para contar as suas versões, mas vai impossibilitar que possamos optar, que exerçamos nossas opções.

Todo esse desmonte gerou uma tal aversão à atividade política que hoje praticamente não conseguimos mais encontrar um jovem que realmente se interesse por ela. O problema é que ela continua existindo e influenciando o destino das pessoas, e achar alguém que fuja do senso comum é uma tremenda raridade, porque ser politizado traz um estatuto indesejável: o de cara “chato”. E hoje ninguém quer ser chato. Nem ao menos se pensa se isso é ruim ou se pode ser bom.

Continuarei o tema no próximo post, desta vez tentando pensar no que é possível ser feito para resgatar nosso espírito crítico.


Recomendações:

Para quem quiser conhecer (ou rever) os impactos que a perseguição política causava nas famílias brasileiras, recomendo demais o filme abaixo. Trata-se de um filme simples, muitíssimo bem feito e que tem a sensibilidade de tratar de um assunto tão difícil com delicadeza e bom gosto. O cinema brasileiro não se parece com o estadunidense (graças a Deus). Não esperem aventuras mirabolantes, mas um relato de um artista que consegue adotar uma ótica infantil sem a idiotização típica de nossos irmãos da América do Norte.

HAMBURGER, Cao. O ano em que meus pais saíram de férias. Filme. Brasil, 2006. 110 min.


O livro que recomendo abaixo foi fruto de um projeto desenvolvido pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor Jaime Wright, da igreja presbiteriana. É um relato cru das práticas de tortura praticada por militares durante o período da ditadura, obtidos de maneira muito inteligente: todos os processos corriam em segredo de justiça, porém, ainda que clandestinamente, os advogados que tinham acesso a esses processos forma extraindo, a cada oportunidade, informações dos documentos neles contidos. A descrição dos métodos de tortura é de dar inveja ao mais criativo cineasta de filmes de terror. Indicado a todos que querem conhecer o período mais triste de nossa história, e vital para aqueles que tem saudades dessa época.

ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. Um relato para a história. Petrópolis: Vozes, 1996.

Este livro está disponível abertamente em:
http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=\\Acervo01\drive_n\Trbs\Shad_BibliotBNM\BibliotBNM.DocPro

2 comentários:

  1. Fomos docilizados para a produção, para o trabalho mecanizado. Veja o nosso poder judiciário: juízes são cobrados por performance, advogados não fundamentam mais nada... Tudo se transformou em produção, em Copy+paste, em padrão do padrão. Somos engrenagens das colônias transnacionais. E estamos de mãos atadas.
    Acham que um só partido é responsável por toda a corrupção do país, que precisamos fazer justiça com as próprias mãos, que precisamos copiar os EUA. Não adianta falar, ninguém escuta. Acham que Bolsonaro é o salvador, e quem diz isso são pessoas de ensino superior, empregados de grandes empresas transnacionais.
    A verdade é que me sinto desesperado. Agora, até ter um filho por aqui está 'mais' arriscado por conta do tal do Zica Vírus...
    Obrigado pelo seu texto. Vejo que a única forma de militância possível hoje é a da escrita "humilde", como a sua: apenas escrever, lançar ao vento, sem esperar muita coisa. Se lerem, ótimo. Se entenderem melhor. Se praticarem, maravilhoso!
    Sei que ser professor de filosofia não é fácil. Parabéns, Décio. Você me representa.

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  2. Agradeço demais suas palavras, é o típico retorno que me estimula. Tenho um medo lascado do que possa vir ainda mais para frente, porque alguns políticos como Bolsonaro e Feliciano tem sua popularidade baseada em um messianismo. Mesmo que estes nomes não emplaquem (porque, no final das contas, são caricatos, são espantalhos prontos), o simples fato de serem ouvidos e muitíssimo bem votados comprovam o viés conservador que o brasileiro tem, no pior sentido da palavra.

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