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segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Sobre a despolitização de nossa juventude (Parte II – os caminhos invisíveis para uma nova educação)

"O ato de ler e escrever deve começar a partir de uma compreensão muito abrangente do ato de ler o mundo, coisa que os seres humanos fazem antes de ler a palavra. Até mesmo historicamente, os seres humanos primeiro mudaram o mundo, depois revelaram o mundo e a seguir escreveram as palavras.” – Paulo Freire

Olá!

Pois então. No post passado, fiz várias considerações sobre a maneira com a qual foi plantada a erva daninha que estragou o sistema de ensino público no Brasil (entre outras maldades). Os políticos de então entendiam que era mais importante tornar os cidadãos aptos para a produção do que para a cultura global, como se apenas o trabalho justificasse nosso mundo. A escola se afastou dos anseios de crianças e jovens.


E hoje em dia, o que temos? Um discurso fabricado, que diz que apenas o investimento em educação pode reparar todos estes estragos. É fato que educação de qualidade pressupõe investimentos pesados, é preciso construir e reformar prédios, renovar o conhecimento dos professores, proporcionar acesso aos alunos e et cetera. Acontece que se fala muito em despejar bilhões na educação, porque esse é um discurso fácil, que parece muito bonito. Será que esse é o verdadeiro problema? Essa montanha de dinheiro acaba se tornando um inominável desperdício se for aplicada em um método falido, ineficaz.

Essa história parece aquela do lavradorzinho que encontrou uma maravilhosa espiga de milho, digna de um artista plástico, e a partir dela sonhou em lotar seu campo. Para tanto, não mediu nenhum tipo de esforço: comprou tratores, colheitadeiras, arados mecânicos, semeadeiras, irrigadores, roçadeiras, caminhões para trazer e para levar. Adquiriu insumos, ferramentas, fertilizantes e defensivos. Contratou agrônomos, bioquímicos, meteorologistas, operadores de máquinas, bóias-frias, capatazes. Fez controle de pragas, adubação, correção de acidez, correção de alcalinidade, correção de oxidação, correção de salinidade. Cuidou das cercas, das valas, do desvio de águas, da obtenção de eletricidade. Acertou documentos, atualizou escrituras, fez registros em cartório, subornou fiscais, bancou agrimensores. Construiu silos, tulhas, paióis, depósitos, estufas. Gastou suas reservas, levantou financiamentos, ofereceu hipoteca, antecipou a venda da safra, penhorou mãe, mulher e filhos, vendeu a alma, as botas e as cuecas. Consultou as fases da lua, a tábua das mares e a direção dos ventos. Chamou o padre, chamou o pastor, chamou o pai de santo, chamou o médium, chamou o pajé, chamou o xamã, chamou a rezadeira. O padre benzeu, o pastor abençoou, o pai de santo fez trabalho, o médium fluidificou, o pajé limpou a energia ruim, o xamã incensou, a rezadeira... bem, a rezadeira rezou. E, no final das contas, nada adiantou: a espiga era realmente digna de um artista plástico, porque era justamente feita de plástico. É a velhíssima vela boa que se gasta em defunto ruim.

Outra baboseira tremendamente comum: socar o pau livremente em tentativas que não deram certo, sem nenhum tipo de critério. O exemplo mais gritante é com relação à progressão continuada. Cheguei a ver um idiota de um candidato (infelizmente – ou graças a Deus – não lembro o nome do precitado) que se derreteu em loas intermináveis ao mestre Paulo Freire, terminando seu discurso com a estapafúrdia proposta de acabar com a progressão continuada. Ora, meu Deus... Mas se foi o próprio Paulo Freire que implantou este conceito! Será que o candidato em questão é burro? Não, não é. Ele joga com dois lados da moeda, apostando na falta de conhecimento do eleitor: um educador respeitado e um conceito implementado equivocadamente. A progressão continuada, filosoficamente falando, não é ruim, mas demanda um grande esforço para funcione, algo que nem sempre está na pauta das políticas educacionais. Lidar com a questão da forma como faz este cidadão já comprova a desonestidade de suas propostas.

É... Perdemos a visão do todo. Não aprendemos a lição do tão inutilmente festejado Paulo Freire, que, como descrito na epígrafe, ensina-nos a precedência da leitura do mundo sobre a palavra, para que depois essa seja agente transformadora de nossa história. Mundo e palavra têm uma relação dialética e complementar.

Não vou aqui descrever as idéias freirianas. Deixo este encargo para os ótimos textos contido no blog dos Pedros (Uma casca de noz – Um, dois, três, quatro, cinco e seis). Quero me centrar um pouco no filósofo da educação Edgar Morin, o pai da Teoria da Complexidade.

Morin é dono de um pensamento sedutor. Ele diz que os modelos educacionais adotados até hoje não dão conta de espelhar a visão humana dentro da escola. Isso porque o ensino é ministrado aos alunos de maneira pulverizada, sem nenhum cuidado em recompor os laços do saber, o que ocasiona uma tremenda dificuldade em estruturar o pensamento global. De fato, estes saberes são demonstrados como se nada tivessem a ver uns com os outros, o que prejudica sobejamente a absorção de seu sentido. O ensino passa a ser meramente funcional, seus inter-relacionamentos com o mundo vivido não são importantes. O produto final é um mundo em que pouco se mede das conseqüências das intervenções de atitudes individuais em escala planetária. Esquece-se dos contextos e circunstâncias da mesma forma que uma luz acesa é esquecida no banheiro.

Um ótimo exemplo vem da ecologia, novíssima ciência que ganhou relevo unicamente nos fins do século passado. É uma ciência centralizadora de saberes. Envolve biologia, geografia, história, ética e sociologia, entre outras matérias. Vistas isoladamente, são forças motrizes da destruição em escala planetária que assistimos em nosso pobre mundo. Como a vida sofre hoje em dia uma ameaça real, a ecologia ganhou um lugar privilegiado nas pautas governamentais. Talvez pudesse ter sido diferente se a amplitude de nossa interconectividade de conhecimento fosse, no passado, mais enfatizada. Mas a visão de cada uma dessas áreas era restrita.

Outro exemplo significativo vem da literatura. Quando a desconsideramos, temos unicamente a visão dos historiadores ou dos sociólogos. O homem não pode se ater a essa perspectiva monolítica, sob pena de torná-la estreita demais. Um ângulo poético faz parte da complexidade humana, explica o homem como tal: um organismo, e não uma máquina. Demonstra que o pensamento individual também tem validade, espraiando-se para a sociedade e para o mundo inteiro, mesmo que seja como um convite à contraposição. O homem possui paixões, emite opiniões e exerce opções. Reconhecer a literatura significa reconhecer o outro como sujeito e parte do mecanismo terrestre.

Morin, portanto, nos ensina que se o mundo é um todo complexo, também a educação deve possuir estas características. As disciplinas devem se entrecruzar a todo momento, uma explicando a outra, uma complementando a outra, e ambas recompostas levando a uma terceira, que também dialoga com as anteriores, e assim sucessivamente. Os contextos devem ser respeitados, a condição humana também, com seus percalços e limitações. Uma metodologia assim é factível? Parece mirabolante demais? Não, não é. Observemos os resultados da Escola da Ponte em Portugal e da Senza Zaino (sem mochila) da Itália. São modelos diferenciados, que podem ser muito interessante para pensar uma nova escola.

Bem, e como os gestores da coisa pública, e a sociedade por extensão, tem lidado com a questão da reforma na transmissão do conhecimento? A impressão geral é que ninguém sabe ao certo para onde ir, talvez pela perda de juízo crítico que mencionei anteriormente. Há uma cegueira intelectual reinante, perceptível principalmente quando observamos o que faz nossa juventude para se divertir, o que é apreciado em termos estéticos e que valores são imputados às atitudes adotadas. A falta desta criticidade faz com que estes caminhos sejam invisíveis, ou, pelo menos, nebulosos. A mídia deveria ajudar, mas não o faz. Muito pelo contrário. Em outras épocas, cantava-se "Alegria, alegria" do Caetano. Hoje, cantam-se tchererês, tchans, tchus e tchás (e tem coisa muito pior – não, muuuuuuuuito pior, não). Será que seria necessário proibir a diversão? Ora, é claro que não, mas não deveríamos nos conformar com esse nivelamento por baixo. A mídia deveria fazer esse papel, mas estamos pensando em política, e começamos por perceber que o uso dos meios de comunicação pelos detentores do poder sempre são contribuintes da alienação.

Estabeleci alguns critérios para escolher então um candidato. Não votarei em ninguém que relembre com saudades injustificadas dos métodos utilizados em um passado que já se comprovou ineficaz. Não votarei em ninguém que só fale esparsamente da questão, sem apresentar um plano de educação completo. Não votarei em ninguém que não fale em reduzir pelo menos pela metade as disciplinas matemáticas e dobre as humanas. Não darei atenção a propostas que prometem mágica única e exclusivamente pelo dinheiro pelo dinheiro aplicado. Não considerarei as propostas que não levem em conta que somos humanos. Falar em trabalho é muito bom, mas nosso grande erro foi esquecer nossa natureza. E nossa natureza não é a de viver permanentemente em uma fábrica. Até mesmo para gostar do trabalho, é preciso saber que há um mundo fora dele. Transformar a escola em fábrica está longe de ser uma solução.

Qualquer novo projeto com o mínimo de seriedade deverá levar anos para produzir resultados. Se para uma nova educação tudo deverá partir do zero, é preciso estabelecer um plano de transição para aqueles que já tiveram seu período de aprendizagem bastante estragado. Sobre isso, debruçar-me-ei no próximo texto.

Em tempo: é preciso fazer bem uma distinção entre o que está em jogo em uma eleição municipal. Pouco do que eu falei acima tem aplicação neste caso, já que a reforma no educação não pode se circunscrever ao município. De qualquer forma, é importante fazer uma escolha bem equilibrada. Jovens, pensem muito bem em quem votar. Já tá meio tarde, mas a internet permite que se tenha um mínimo de conhecimento sobre os candidatos. Leiam, registrem e, principalmente, cobrem muito.

Recomendações de leitura:

Algumas das principais idéias de Edgar Morin podem ser lidas no livro abaixo. Vejam como o autor costura habilmente seus argumentos.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Brasília: UNESCO, 2000.


Para saber alguma coisa sobre Paulo Freire, recomendo a leitura do seguinte livro:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia - Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.


Os sites das escolas mencionadas neste texto são os seguintes:

Escola da Ponte: escoladaponte.com.pt/

Senza Zaino: www.senzazaino.it/

Quanto à Escola da Ponte, sem problemas: português de Portugal. Com relação ao projeto Senza Zaino, temos tudo em italiano. Se alguém tiver alguma dúvida, mande-me o questionamento que procurarei ajudar.

Um comentário:

  1. Grande texto!

    Morin, Freire e o pensamento contemporâneo... Mídia e política.. enfim, o mundo humano é complexo (como Morin lembra o significado da palavra complexo: que é tecido junto, tece e entretece), ou seja, compõe-se por uma teia de vozes e fluxos ideológicos contrapondo-se e completando-se que, em muitas vezes (por conta da herança do pensamento cartesiano), sentimos a necessidade de picotar nosso objeto para conseguirmos pensar. E o problema não é o recorte em si, mas a atemporalidade a que o objeto fica submetida. Ou seja, vemos um lado da moeda, esquecemos que existem outras abordagens, outras maneiras de entender aquele mesmo problema.

    Do Paulo Freire acho que há outra obra que pode ajudar bastante: Pedagogia do oprimido, São Paulo: Paz e Terra, 2011. É um consolidado do seu pensamento.

    E a célebre música (em versão ainda mais célebre): http://www.youtube.com/watch?v=VZbM_MIz4RM

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