"O ato de ler e escrever deve começar a partir de uma compreensão muito abrangente do ato de ler o mundo, coisa que os seres humanos fazem antes de ler a palavra. Até mesmo historicamente, os seres humanos primeiro mudaram o mundo, depois revelaram o mundo e a seguir escreveram as palavras.” – Paulo Freire
Olá!
Pois então. No
post passado, fiz várias considerações sobre a
maneira com a qual foi plantada a erva daninha que estragou o sistema
de ensino público no Brasil (entre outras maldades). Os
políticos de então entendiam que era mais importante
tornar os cidadãos aptos para a produção do que
para a cultura global, como se apenas o trabalho justificasse nosso
mundo. A escola se afastou dos anseios de crianças e jovens.
E hoje em dia, o que
temos? Um discurso fabricado, que diz que apenas o investimento em
educação pode reparar todos estes estragos. É
fato que educação de qualidade pressupõe
investimentos pesados, é preciso construir e reformar prédios,
renovar o conhecimento dos professores, proporcionar acesso aos
alunos e et cetera. Acontece que se fala muito em despejar bilhões
na educação, porque esse é um discurso fácil,
que parece muito bonito. Será que esse é o verdadeiro
problema? Essa montanha de dinheiro acaba se tornando um inominável
desperdício se for aplicada em um método falido,
ineficaz.
Essa história
parece aquela do lavradorzinho que encontrou uma maravilhosa espiga
de milho, digna de um artista plástico, e a partir dela sonhou
em lotar seu campo. Para tanto, não mediu nenhum tipo de
esforço: comprou tratores, colheitadeiras, arados mecânicos,
semeadeiras, irrigadores, roçadeiras, caminhões para
trazer e para levar. Adquiriu insumos, ferramentas, fertilizantes e
defensivos. Contratou agrônomos, bioquímicos,
meteorologistas, operadores de máquinas, bóias-frias,
capatazes. Fez controle de pragas, adubação, correção
de acidez, correção de alcalinidade, correção
de oxidação, correção de salinidade.
Cuidou das cercas, das valas, do desvio de águas, da obtenção
de eletricidade. Acertou documentos, atualizou escrituras, fez
registros em cartório, subornou fiscais, bancou agrimensores.
Construiu silos, tulhas, paióis, depósitos, estufas.
Gastou suas reservas, levantou financiamentos, ofereceu hipoteca,
antecipou a venda da safra, penhorou mãe, mulher e filhos,
vendeu a alma, as botas e as cuecas. Consultou as fases da lua, a
tábua das mares e a direção dos ventos. Chamou o
padre, chamou o pastor, chamou o pai de santo, chamou o médium,
chamou o pajé, chamou o xamã, chamou a rezadeira. O
padre benzeu, o pastor abençoou, o pai de santo fez trabalho,
o médium fluidificou, o pajé limpou a energia ruim, o
xamã incensou, a rezadeira... bem, a rezadeira rezou. E, no
final das contas, nada adiantou: a espiga era realmente digna de um
artista plástico, porque era justamente feita de plástico.
É a velhíssima vela boa que se gasta em defunto ruim.
Outra baboseira
tremendamente comum: socar o pau livremente em tentativas que não
deram certo, sem nenhum tipo de critério. O exemplo mais
gritante é com relação à progressão
continuada. Cheguei a ver um idiota de um candidato (infelizmente –
ou graças a Deus – não lembro o nome do precitado)
que se derreteu em loas intermináveis ao mestre Paulo Freire,
terminando seu discurso com a estapafúrdia proposta de acabar
com a progressão continuada. Ora, meu Deus... Mas se foi o
próprio Paulo Freire que implantou este conceito! Será
que o candidato em questão é burro? Não, não
é. Ele joga com dois lados da moeda, apostando na falta de
conhecimento do eleitor: um educador respeitado e um conceito
implementado equivocadamente. A progressão continuada,
filosoficamente falando, não é ruim, mas demanda um
grande esforço para funcione, algo que nem sempre está
na pauta das políticas educacionais. Lidar com a questão
da forma como faz este cidadão já comprova a
desonestidade de suas propostas.
É... Perdemos a
visão do todo. Não aprendemos a lição do
tão inutilmente festejado Paulo Freire, que, como descrito na
epígrafe, ensina-nos a precedência da leitura do mundo
sobre a palavra, para que depois essa seja agente transformadora de
nossa história. Mundo e palavra têm uma relação
dialética e complementar.
Não vou aqui descrever as idéias freirianas. Deixo este encargo para os ótimos textos contido no blog dos Pedros (Uma casca de noz – Um, dois, três, quatro, cinco e seis). Quero me centrar um pouco no filósofo da educação Edgar Morin, o pai da Teoria da Complexidade.
Morin é dono de
um pensamento sedutor. Ele diz que os modelos educacionais adotados
até hoje não dão conta de espelhar a visão
humana dentro da escola. Isso porque o ensino é ministrado aos
alunos de maneira pulverizada, sem nenhum cuidado em recompor os
laços do saber, o que ocasiona uma tremenda dificuldade em
estruturar o pensamento global. De fato, estes saberes são
demonstrados como se nada tivessem a ver uns com os outros, o que
prejudica sobejamente a absorção de seu sentido. O
ensino passa a ser meramente funcional, seus inter-relacionamentos
com o mundo vivido não são importantes. O produto final
é um mundo em que pouco se mede das conseqüências
das intervenções de atitudes individuais em escala
planetária. Esquece-se dos contextos e circunstâncias da
mesma forma que uma luz acesa é esquecida no banheiro.
Um ótimo exemplo
vem da ecologia, novíssima ciência que ganhou relevo
unicamente nos fins do século passado. É uma ciência
centralizadora de saberes. Envolve biologia, geografia, história,
ética e sociologia, entre outras matérias. Vistas
isoladamente, são forças motrizes da destruição
em escala planetária que assistimos em nosso pobre mundo. Como
a vida sofre hoje em dia uma ameaça real, a ecologia ganhou um
lugar privilegiado nas pautas governamentais. Talvez pudesse ter sido
diferente se a amplitude de nossa interconectividade de conhecimento
fosse, no passado, mais enfatizada. Mas a visão de cada uma
dessas áreas era restrita.
Outro exemplo
significativo vem da literatura. Quando a desconsideramos, temos
unicamente a visão dos historiadores ou dos sociólogos.
O homem não pode se ater a essa perspectiva monolítica,
sob pena de torná-la estreita demais. Um ângulo poético
faz parte da complexidade humana, explica o homem como tal: um
organismo, e não uma máquina. Demonstra que o
pensamento individual também tem validade, espraiando-se para
a sociedade e para o mundo inteiro, mesmo que seja como um convite à
contraposição. O homem possui paixões, emite
opiniões e exerce opções. Reconhecer a
literatura significa reconhecer o outro como sujeito e parte do
mecanismo terrestre.
Morin, portanto, nos
ensina que se o mundo é um todo complexo, também a
educação deve possuir estas características. As
disciplinas devem se entrecruzar a todo momento, uma explicando a
outra, uma complementando a outra, e ambas recompostas levando a uma
terceira, que também dialoga com as anteriores, e assim
sucessivamente. Os contextos devem ser respeitados, a condição
humana também, com seus percalços e limitações.
Uma metodologia assim é factível? Parece mirabolante
demais? Não, não é. Observemos os resultados da
Escola da Ponte em Portugal e da Senza Zaino (sem
mochila) da Itália. São modelos diferenciados, que
podem ser muito interessante para pensar uma nova escola.
Bem, e como os gestores
da coisa pública, e a sociedade por extensão, tem
lidado com a questão da reforma na transmissão do
conhecimento? A impressão geral é que ninguém
sabe ao certo para onde ir, talvez pela perda de juízo crítico
que mencionei anteriormente. Há uma cegueira intelectual
reinante, perceptível principalmente quando observamos o que
faz nossa juventude para se divertir, o que é apreciado em
termos estéticos e que valores são imputados às
atitudes adotadas. A falta desta criticidade faz com que estes
caminhos sejam invisíveis, ou, pelo menos, nebulosos. A mídia
deveria ajudar, mas não o faz. Muito pelo contrário. Em
outras épocas, cantava-se "Alegria, alegria" do Caetano. Hoje,
cantam-se tchererês, tchans, tchus e tchás (e tem coisa muito pior – não,
muuuuuuuuito pior, não). Será que seria necessário
proibir a diversão? Ora, é claro que não, mas
não deveríamos nos conformar com esse nivelamento por
baixo. A mídia deveria fazer esse papel, mas estamos pensando
em política, e começamos por perceber que o uso dos
meios de comunicação pelos detentores do poder sempre
são contribuintes da alienação.
Estabeleci alguns
critérios para escolher então um candidato. Não
votarei em ninguém que relembre com saudades injustificadas
dos métodos utilizados em um passado que já se
comprovou ineficaz. Não votarei em ninguém que só
fale esparsamente da questão, sem apresentar um plano de
educação completo. Não votarei em ninguém
que não fale em reduzir pelo menos pela metade as disciplinas
matemáticas e dobre as humanas. Não darei atenção
a propostas que prometem mágica única e exclusivamente
pelo dinheiro pelo dinheiro aplicado. Não considerarei as
propostas que não levem em conta que somos humanos. Falar em
trabalho é muito bom, mas nosso grande erro foi esquecer nossa
natureza. E nossa natureza não é a de viver
permanentemente em uma fábrica. Até mesmo para gostar
do trabalho, é preciso saber que há um mundo fora dele.
Transformar a escola em fábrica está longe de ser uma
solução.
Qualquer novo projeto
com o mínimo de seriedade deverá levar anos para
produzir resultados. Se para uma nova educação tudo
deverá partir do zero, é preciso estabelecer um plano
de transição para aqueles que já tiveram seu
período de aprendizagem bastante estragado. Sobre isso,
debruçar-me-ei no próximo texto.
Em tempo: é preciso fazer bem uma distinção entre o que está em jogo em uma eleição municipal. Pouco do que eu falei acima tem aplicação neste caso, já que a reforma no educação não pode se circunscrever ao município. De qualquer forma, é importante fazer uma escolha bem equilibrada. Jovens, pensem muito bem em quem votar. Já tá meio tarde, mas a internet permite que se tenha um mínimo de conhecimento sobre os candidatos. Leiam, registrem e, principalmente, cobrem muito.
Em tempo: é preciso fazer bem uma distinção entre o que está em jogo em uma eleição municipal. Pouco do que eu falei acima tem aplicação neste caso, já que a reforma no educação não pode se circunscrever ao município. De qualquer forma, é importante fazer uma escolha bem equilibrada. Jovens, pensem muito bem em quem votar. Já tá meio tarde, mas a internet permite que se tenha um mínimo de conhecimento sobre os candidatos. Leiam, registrem e, principalmente, cobrem muito.
Recomendações de leitura:
Algumas das principais idéias de Edgar Morin podem ser lidas no livro abaixo. Vejam como o autor costura habilmente seus argumentos.
MORIN, Edgar. Os sete
saberes necessários à educação do futuro.
Brasília: UNESCO, 2000.
Para saber alguma
coisa sobre Paulo Freire, recomendo a leitura do seguinte livro:
FREIRE, Paulo.
Pedagogia da Autonomia - Saberes Necessários à
Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
Os sites das escolas mencionadas neste texto são os seguintes:
Escola da Ponte: escoladaponte.com.pt/
Senza Zaino: www.senzazaino.it/
Quanto à Escola da Ponte, sem problemas: português de Portugal. Com relação ao projeto Senza Zaino, temos tudo em italiano. Se alguém tiver alguma dúvida, mande-me o questionamento que procurarei ajudar.
Os sites das escolas mencionadas neste texto são os seguintes:
Escola da Ponte: escoladaponte.com.pt/
Senza Zaino: www.senzazaino.it/
Quanto à Escola da Ponte, sem problemas: português de Portugal. Com relação ao projeto Senza Zaino, temos tudo em italiano. Se alguém tiver alguma dúvida, mande-me o questionamento que procurarei ajudar.
Grande texto!
ResponderExcluirMorin, Freire e o pensamento contemporâneo... Mídia e política.. enfim, o mundo humano é complexo (como Morin lembra o significado da palavra complexo: que é tecido junto, tece e entretece), ou seja, compõe-se por uma teia de vozes e fluxos ideológicos contrapondo-se e completando-se que, em muitas vezes (por conta da herança do pensamento cartesiano), sentimos a necessidade de picotar nosso objeto para conseguirmos pensar. E o problema não é o recorte em si, mas a atemporalidade a que o objeto fica submetida. Ou seja, vemos um lado da moeda, esquecemos que existem outras abordagens, outras maneiras de entender aquele mesmo problema.
Do Paulo Freire acho que há outra obra que pode ajudar bastante: Pedagogia do oprimido, São Paulo: Paz e Terra, 2011. É um consolidado do seu pensamento.
E a célebre música (em versão ainda mais célebre): http://www.youtube.com/watch?v=VZbM_MIz4RM