Olá!
Por mais que gostemos de algumas coisas, chega uma hora em
que é preciso dar uma renovada. Afinal de contas, objetos não são pessoas e
podem ser descartados sem grandes dores, apesar de nem sempre estarmos
convencidos disso. Eu sei, eu sei... sempre tem algo que queiramos guardar por
algum tipo de laço afetivo, seja por trazer boas lembranças, seja por sua
beleza, seja por sua atávica utilidade; mas não é a isso que me refiro. Falo
sobre aquelas coisas que realmente não nos servem mais, que ganhamos e não
gostamos (e que só mantínhamos para não ficar chato) ou que compramos errado.
Tudo isso para dizer que tomei coragem e dei uma esvaziada
na minha estante. Como a galera sabe que gosto de ler, este é um presente
recorrente em meus natais e aniversários, e não há logística que suporte
grandes coleções em um apartamento. Livrei-me de alguns dicionários velhos,
daqueles em tomos; de livros que estavam muito estragados, de livros que
comprei e me arrependi, e, principalmente, de livros que herdei. São livros que
tiveram sua chance – não descartei nenhum que ainda não tivesse lido pelo menos
umas trinta páginas. Ainda creio que uma história precisa de oportunidades para
crescer, mas vejo que isso é raro.
Na medida em que ia separando os condenados ao degredo de um
dos sebos da João Mendes (conseguindo, ao término, zerar três das sete
prateleiras), submetia-os à apreciação dos demais habitantes de casa. Afinal de
contas, eu não moro sozinho e não tenho este egoísmo todo. Desta forma, fazia
pilhas separadas, para distinguir os descartes certos dos candidatos a
banimento ou piedade. Um desses foi decidido pelo emérito Homem-Cueca, que
deliberou por mastigar um livreto de poemas de algum autor obscuro. Espantei o
cachorro e selei o destino da obra, em arremesso curto e grosso ao latão. Ao
retornar à árdua e poeirenta tarefa, dei de cara com um livro do meu pai, um
pequeno tratado sobre as profecias de Nostradamus.
Sentei um pouco na banqueta e pus-me a recordar. Lembro-me
daquele livro, mas não faço nem ideia de como veio parar em casa. Meu pai, de
vez em quando, era tomado por alguma mania (como, de resto, sói acontecer a
quase todo mundo, eu incluso) e uma delas foi uma fixação em Nostradamus, por
um curto período. Comprou dois exemplares das “Centúrias”, sendo uma delas uma
edição bilíngue (!) que trazia os obscuros versos em português e no original
francês. Também comprou dois livros de interpretações, sendo um deles o que
agora estava em minhas mãos, escrita por Kurt Allgeier. Meu pai tinha dessas
coisas.
Sempre tive um bocado de curiosidade em compreender o que
leva uma pessoa a acreditar e incomodar-se com profecias, vaticínios,
predições, prognósticos, adivinhações e augúrios que se apoiam em um mero nada.
Minha capacidade em crer nesse tipo de previsão exauriu-se quando eu tinha tenros
nove ou dez anos, nada mais do que isso. Por isso mesmo, percebo uma grande
diferença entre ler as Centúrias e seus comentários. Nostradamus, acreditem se
quiser, é uma leitura até agradável – cheio de lirismos, repleto de alegorias,
muitas referências metafóricas, e, evidentemente, um estilo de época que não
deixa de ser pitoresco. Claro que uma linguagem cifrada é ideal para alguém que
alega ter contato direto com as divindades para nos trazer notícias
fresquinhas, mas confesso que não é um gênero que me desagrada de todo, pelo
menos enquanto literatura. Já o conteúdo e seus comentadores...
Em primeiro lugar, o desagravo. É óbvio que não só
Nostradamus, mas qualquer outro profeta, se de fato lhes fosse dado enxergar o
futuro, dificilmente conseguiriam compreender os objetos da modernidade. Por
exemplo: o trecho...
Armas e documentos dentro do peixe
Dele sairá o homem que fará a guerra
... pode muito bem ser interpretado como um submarino de
guerra. No século XVI, não se fazia a menor ideia do que seria tal artefato. Daí,
ser razoavelmente aceitável que um comentador arrisque a concreção da metáfora
em um objeto real.
Portanto, o problema não está aí, ou seja, no uso de um
mecanismo interpretativo. O X da questão acontece quando, mesmo admitindo a
liberdade das interpretações, algumas das afirmações completamente furadas das
Centúrias são simplesmente esquecidas e o gajo continua reputado como um
profeta a ser levado a sério. É bem difícil, mesmo com o uso de alegorias,
deixar de perceber que uma passagem como essa...
No ano 1999, sete meses
Do céu virá um grande rei de Terror
Ressuscitará o rei de Angoumois
Antes que isso ocorra Marte reinará entre eles
... não tenha sido um tiro n’água. E então dá-lhe
contorcionismo para justificar o erro. Está lá, claro e cristalino: ano de
1999. O que aconteceu de grave em 1999? Nada do que já não estejamos
acostumados. Era a famosa profecia da virada do milênio, que tanto horror já
havia causado na virada do ano 999, e que tornou a ocorrer. Só que, da mesma
forma, continuamos aqui a escrever as linhas tortas do dia-a-dia do planetinha
azul. Poder-se-ia forçar a barra, dizendo que os calendários na época de
Nostradamus eram diferentes dos atuais, jogando para frente o evento, de modo
a, por exemplo, coincidir com o famoso 11 de setembro. E daí também seria
possível dizer que o sétimo mês não seria julho, mas SETE... mbro! Não é uma
maravilha? Ou, o que é mais fácil ainda, simplesmente esquece-se uma passagem
como essa, como se não existisse.
Mas há quem ainda defenda as predições de Nostradamus, mesmo
nos dias de hoje. Um rápido périplo pela internet mostra um monte de gente
interessado em indicações do que virá pela frente, sempre utilizando da seleção
de trechos do seu interesse, e desprezando solenemente aquilo que prejudica sua
tese. Há até uma seleção infindável de “livros secretos”, “livros perdidos” e
outras aberrações do gênero.
Óbvio que isso é uma falácia. Quando selecionamos os fatos
que dão guarida ao nosso raciocínio, porém sublimando aqueles que o
desfavorecem, praticamos um erro de argumento que é conhecido pelo curioso nome
de Atirador do Texas.
A estorinha que dá origem ao nome desta falácia é obscura,
mas poderia ter a seguinte base: em um rancho perdido no interior do estado norte-americano
do Texas, no tempo do faroeste, um bando de forasteiros bem armados e mal
intencionados espalha confusão e insegurança por toda a localidade. Certa
noite, a corja se aproxima da habitação de um humilde proprietário rural.
Quando já estavam bastante próximos, percebem a existência de um celeiro e
observam algo curioso e mais ameaçador que eles próprios: há vários alvos
pintados em suas paredes, todos eles crivados de balas bem perto de suas
respectivas moscas. Deduzem que o fazendeiro é hábil atirador e desistem da
empreitada, temerosos em serem os próximos alvos de tão experiente atirador.
Mal sabem eles que nosso esperto herói lançou mão de um astuto expediente, já
pensando em ocasião semelhante: encheu de buracos algumas regiões das paredes
do celeiro de maneira concentrada, para DEPOIS pintar os alvos ao redor dos
mesmos!!! Desta forma, mesmo não tendo grandes habilidades balísticas,
conseguiu iludir os facínoras.
Nesta falácia, adaptamos as circunstâncias ao argumento |
Esta é uma falácia que funciona, de certa forma, de maneira
oposta à falácia das traves móveis (vide), na medida em que uma procura
associar similaridades e afastar discrepâncias, e a outra faz o exato oposto,
ou seja, atrair a disparidade e desprezar a concordância. É informal, de
destaque e ocultação de relevância e que faz dispersar pontos controversos.
Mas a coisa toma um vulto importante quando a intenção de
enganar não vai meramente no benefício de seu argumento, mas no prejuízo de
outra pessoa. Um caso infelizmente claro se deu com o livro “Guia Politicamente
Incorreto da América Latina”, um livro destinado a, em tese, desmistificar o
heroísmo de uma série de personalidades da História de nossa sofrida
Latino-América, e onde os seus autores, os jornalistas Leandro Narloch e Duda
Teixeira, apenas para citar um exemplo, tentam desconstruir a aura de mito
estabelecida em torno do presidente chileno Salvador Allende, um dos ícones da
esquerda terceiro-mundista. Para esclarecer, Allende é tido como um exemplo e
mártir da resistência contra a intervenção norte-americana na América Latina.
Eleito democraticamente, implantou um governo socialista no Chile, e foi vítima
fatal de um violento golpe de estado conduzido por Augusto Pinochet, que
governou este país ditatorialmente pelos próximos anos. Alguns dizem que
cometeu suicídio antes de ser capturado, outros que foi assassinado. Para
desmerecer essa imagem, Narloch apresenta Allende como um racista, servindo-se
de informações advindas de uma tese de doutorado em medicina deste último, e
que, portanto, seria um igualitarista de fachada, pelo que se pode deduzir.
Extrai vários trechos onde, pretensamente, o proponente da tese desce o cacete
em negros, ciganos, judeus e outras etnias, especialmente do contestado livro
de Víctor Farías, chamado “Antissemitismo e Eutanásia”. Todos estes trechos
estão de fato na tese de Allende, mas na forma de citações das obras de Cesare
Lombroso, cientista que tentou vincular criminalidade e etnia – um negro ou
judeu estariam predispostos naturalmente à prática delituosa. Em resumo:
Narloch coloca as palavras de Lombroso na boca de Allende, como se fosse este
que desejasse formar esse vínculo. É o mesmíssimo caso de manipulação de dados
por omissão que já mencionei nesta crítica ao filme Deus Não Está Morto.
É um caso da mais viva e pura desonestidade intelectual.
Várias pessoas denunciaram esse modo de proceder de Leandro Narloch, dentre os
quais o historiador Leandro Karnal e a professora Maria Ligia Coelho Prado.
Narloch procurou se defender, fazendo um tímido mea culpa, mas utilizando mais
de apelos à ignorância e traves móveis do que propriamente assumindo erros.
Por exemplo: na revisão do livro, após a vergonha passada,
Narloch diz que Allende não corrobora as teses de Lombroso, assim como também
não as rejeita. Legal, né? Também diz que não há nos escritos de Allende
nenhuma manifestação expressa contra o racismo. Ora, isso o torna racista? É
decente que alguma pessoa seja denunciada como racista por não se manifestar expressa
e contrariamente ao racismo? Vejam com base em qual frase nossos caros
escritores levantam sua defesa:
“...carecemos de
datos precisos para demostrar este influjo en el mundo civilizado”.
Esta é a conclusão de Allende: as teses de Lombroso não são
fundamentadas por dados suficientes para relacionar etnia e predisposição à
criminalidade. Punto, basta. Dizer que Allende pode ser racista por essa frase
tem a mesma consistência de se dizer que eu não gosto de Serramalte porque
gosto de Original.
É isso o que acontece quando uma pessoa procura desmerecer
uma ideologia oposta à sua com fanatismo: fica-se cego. A proposta desta
polêmica série dos guias politicamente incorretos é a de derrubar versões
“oficiais”, o que não é um mal em si. Eu mesmo gostaria de saber melhor os
defeitos de gente que admiro, para fazer um ajuste fino no modo de ver e
perceber que possuo delas. Mas ter uma conduta antiacadêmica como esta
desmerece não o personagem de quem se escreve, mas o autor. Primeiro, porque se
fica com a impressão de que nada foi encontrado que possa desabonar a quem se
tenta desabonar, e para fazê-lo foi necessário um subterfúgio (o que fortalece
o suposto mito); e segundo, coloca-se sob suspeita tudo o mais que o autor
publicar: o que garante que os métodos texanos não foram também utilizados em
outros escritos? O pessoal que se alinha à mesma ideologia deveria ver com
péssimos olhos um trabalho deste gênero, porque dá munição pesada aos seus
opositores, que correrão como loucos para fazer a generalização apressada:
“Olha como a direita age! Olha que merda é o pensamento conservador!”. Até
explicar que berimbau não é gaita, dá-se uma tremenda volta. Melhor seria dizer
que a bobagem dita por um não representa o pensamento de todos. Mas não... Há
tanta falta de bons pensadores na vertente, que a figura em questão continua a
ser incensada, legitimando a opinião dos seus opositores... É muito complicado.
E para que ninguém diga que este texto usa o Atirador do Texas para atacar os conservadores, declaro solenemente que sim, também há na esquerda quem use do mesmo expediente. Falácia é uma coisa democrática.
E para que ninguém diga que este texto usa o Atirador do Texas para atacar os conservadores, declaro solenemente que sim, também há na esquerda quem use do mesmo expediente. Falácia é uma coisa democrática.
Recomendações:
Dei uma caçada na internet para ver se achava uma das
versões das Centúrias que me pai havia comprado, mas não consegui. Portanto,
vou recomendar uma outra versão, que, aparentemente, traz os versos puros e
simples, despidos de interpretações. Não vou indicar nenhum livro de
comentadores.
NOSTRADAMUS, Michel de. As Profecias. Martin Claret: São
Paulo, 2006.
O vídeo abaixo mostra um trecho de uma palestra do professor
Leandro Karnal, onde o mesmo discorre rapidamente com relação ao livro de
Leandro Narloch e Duda Teixeira:
O texto abaixo é um pouco mais detalhado, e é da professora
Maria Lígia Coelho Prado, tratando do mesmo assunto:
Já o artigo abaixo é a defesa de Leandro Narloch sobre suas
correções na edição original e alguns outros argumentos:
Finalmente, no link abaixo temos a tese completa de Salvador
Allende, para que possa ser lida e julgada como vocês quiserem:
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