Marcadores

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Pequeno guia das grandes falácias - 26º tomo: o apelo à misericórdia (argumentum ad misericordiam) - e também qualquer coisa sobre a necessidade da piedade

Olá!


O centro da cidade de São Paulo é sui generis. Em todo o mundo, o centro é uma das regiões mais valorizadas de um município, pelos motivos óbvios de uma estrutura bem mais robusta de comércio e serviços. Isso acontece não somente nas grandes metrópoles, mas também nos pequenos lugarejos, onde podemos encontrar os órgãos de serviços públicos, as sedes do governo local, e, no caso do interior do Brasil, a imensa igreja. Não é diferente em São Paulo. Há um amplo sortimento de lojas, vários hospitais, escolas (principalmente universidades), teatros, cinemas, muuuuuuuuita comida, tudo asfaltado, iluminado, com fios soterrados e com gás encanado. Há transporte público em abundância, com quatro terminais de ônibus, metrô e trem, e não se perde mais de cinco minutos para tomar um táxi, mesmo de madrugada.

Mas não mora ninguém no centro. Com exceção do Bixiga e do Glicério, há grandes vazios populacionais em regiões extremamente bem estruturadas. Peguem as ruas do triângulo*, por exemplo. São prédios hoje exclusivamente comerciais que foram construídos para serem moradias, em um passado cada vez mais distante. Quando há moradores, geralmente são os zeladores ou foram objeto de ocupação – algo terrivelmente comum por este pedaço. Em uma cultura do automóvel, a falta de garagens é garantidamente um dos fatores que explicam o vazio.

Eu moro no centro de São Paulo. Na minha rua, há só três prédios com moradores. E todos eles têm o jeito típico de balança-mas-não-cai: apesar de possuir apartamentos grandes, não há porteiro, não há zelador permanente, não há vagas de estacionamento, um único elevador bem antigo, uma cara bem precária na fachada. E, com isso, temos a sensação de certo desgoverno, algo plasmado para a realidade com o fundamento ficcional de um “Sai de Baixo”, o famoso e imaginário prédio do Arouche que captou bem esse espírito anárquico dos prédios residenciais destas plagas. Sem a graça da série, no entanto.

O prédio em que moro não chega a ser uma pequena miscelânea social como ocorre com o Edifício Copan, até mesmo por ser muito pequeno, mas há um recorte social muito claro a dividir seus moradores: aqueles que pagam e aqueles que não pagam. Com relação ao aluguel, problema do dono; já com o condomínio, o buraco é muito mais embaixo.

Sendo as coisas desse jeito, é de se imaginar que o convívio entre as unidades não seja tão regrado quanto ocorre com os modernos condomínios, que, se já não são um primor de organização, há sempre um papa para o qual se reclamar (leia-se síndico). No nosso caso, as coisas vão mais à base do deus-dará.

Este modelo de gestão anárquica não deixa de ter os seus encantos, pois há toda uma antropologia meio que tribal, meio que mística, no sentido de que há a existência de uma entidade invisível chamada proprietário, que ninguém vê, mas sabe que existe, principalmente nas majorações de preço inconcordes. Mas esse sentido não é tão aguçado no clã dos não-pagantes. Afinal de contas, não pagar 100 ou não pagar 1000 é exatamente a mesma coisa. Pena que o déficit condominial recaia exatamente sobre os já dilapidados pagantes. Pois é... Mantenho-me neste estranho templo dada as facilidades de sua localização, e nada mais.

É preciso fazer algum esforço e tentar compreender um pouco da ala oposta. Há muitas senhorinhas de pouca renda e muita idade, que precisam de alguma colaboração para não sofrer despejos. Em contrapartida, quase não consomem água, usam pouco elevador, demandam mínimas vezes a pouco presente zeladoria fornecida pelo proprietário e, dessa forma, uma mão lava a outra com um pouco de boa vontade. Mas há também a turma que não paga porque sabe para quem chorar e não correr riscos de demandas judiciais, e aí a porca torce o rabo.

É exatamente uma dessas personalidades que é dada a visitar os apartamentos dos pagantes para solicitar alguns estipêndios, para encarar despesas emergenciais (mais especificamente, suas vontades transformadas em necessidades, se é que vocês me entendem). Um dos frequentados habituais sou eu, que sou abordado com aquelas jaculatórias costumeiras: leitinho das crianças, “açuquinha” das crianças, remedinho das crianças, gás...

“Gás?! Como assim, gás?” – manifestei-me certa feita. “O prédio tem gás encanado. Quer dizer que você está usando botijão???”

“Ah, é que a minha tubulação estragou, e o dono ainda não mandou consertar” – redarguiu mentindo. O fato é que, dadas às contas vencidas, seu gás foi cortado. Marotamente, a indigitada conseguiu um botijão, não se sabe onde. O problema é que também o gás do botijão acaba, e já é preciso repô-lo para dar asas à criatividade culinária. Se fosse pedida ajuda para pagar as contas em momento aflitivo, eu poderia até cotejar a hipótese. Mas, diante do risco no uso do botijão e do aplique, mandei-a educadamente procurar o papa, ou seja, o proprietário.

Passou um bom tempo, face à recusa, até receber novamente sua visita missionária. A cena é a seguinte: estou com o apartamento quedado silente, em decúbito dorsal no sofá da sala, solitário que me encontro certa tarde, e ouço a inconsueta campainha. O guardião Homem-Cueca ameaça latir, com seu trote aparvalhado de cavalo bravo, e o permito, para que se passe a impressão de ausência humana. Ao contrário do cachorro, chego sorrateiramente à porta e observo pelo olho mágico, e percebo a silhueta imprecisa, porém inequívoca da retro citada figura, desta vez acompanhada por mais dois pequenos vultos: seus filhos. Compreendo de pronto seus propósitos, enterneço-me pelas crianças, mas detecto a jogada suja e mantenho-me oculto. Haverá quem lhe ajude, penso eu, já cansado de ser engabelado.

Mas o mundo não cansa de dar suas voltas, e pouco depois da experiência chega de volta da rua a minha esposa, com o cenho carregado, e logo trata de soltar os marimbondos retidos em sua boca:

“Adivinha quem voltou a atacar? A S***, que veio vender os filhos para pedir dinheiro” – vociferou, feérica e acidulada. “Vender os filhos” é a expressão utilizada pela cara-metade para nominar a intenção de comover e desarmar as defesas da intentada contribuinte. Tudo isso seguido de algumas considerações pouco louváveis (e transcrevíveis) acerca da personalidade da requerente. Dei de ombros, falando que a vida é assim mesmo, e que o máximo que podemos fazer é reclamar para o papa (o proprietário), já sabendo da inutilidade do ato.

Não vou fazer juízo sobre a causa, nem dissertar sobre a mesquinhez de minha atitude, que assumo de pronto. Não falarei também sobre as motivações sociais e antropológicas de tantos pedidos de dinheiro (sempre dinheiro em espécie – não serve a mercadoria leitinho, nem o produto “açuquinha”), nem imputar à crise as mazelas da ilustre, até mesmo porque as vindicações vem desde o tempo em que as coisas andavam de vento em popa. O fato é que usar seus filhos para contar uma historinha triste é o que conhecemos como falácia do apelo à misericórdia, também conhecida pelo pomposo nome de argumentum ad misericordiam.

Um choro é sempre argumento convincente

O apelo à misericórdia é uma boa e velha falácia de dispersão e relevância, no sentido de que dar motivos à piedade pode constituir argumento convincente, mas que foge à lógica de uma proposição. A verdade da asserção investigada é a seguinte: não há disponibilidade de dinheiro porque aquele que existia foi gasto com coisas outras que não leitinho, “açuquinha”, remédio ou gás – e com isso todas essas coisas essenciais acabam por fazer falta. Apelar para a misericórdia é útil neste caso porque produz um desvio desses motivos menos louváveis – e reais.

Ser misericordioso não é um mal em si. Podemos observar que em quase todas as justificativas para ações sociais há alguma forma de apelo à misericórdia, e isso nem sempre é falacioso. A coisa acontece quando a retórica embute um argumento que despreza a lógica e a razão para unicamente jogar com o sentimento de dó das pessoas. Tipo assim: jogo mal demais uma partida na minha academia de truco, fazendo minha trinca perder todos os frangos disponíveis naquela tarde infeliz. Digo aos camaradas para que não me culpem, porque estou com a cabeça cheia do trabalho, com problemas em casa e blá-blá-blá. Meus amigos podem até sentir pena, mas o fato é que perdemos porque eu joguei mal. Todo o resto é acessório. Mas é claro que um mendigo vai sempre apelar para o sentimento de piedade, porque precisa de uma resposta imediata para suas necessidades, e deve mesmo fazê-lo – é o que funciona. Mas os motivos de sua fome vão muito além de sua situação atual. E é isso que precisa ser bem discutido.

Se existe o apelo à misericórdia, é porque existem motivos para usá-la. Isso significa que temos um mundo ao nosso redor que produz necessidades de misericórdia. Vivemos em um sistema capitalista, no qual a existência de miseráveis é inevitável. Vejam bem, não estou aqui tecendo uma crítica, mas fazendo uma constatação. Todos aqueles que não se encaixam no molde, ficam excluídos. Não são somente os pobres, preguiçosos, desidiosos e vagais que se inserem nessa lógica, mas todo aquele que não tem condições mínimas de competir, por n motivos: deficiências, doenças, habitar em regiões mais retiradas, idade... E também condições menos louváveis, como sexo e cor. Não adianta querer tapar o sol com a peneira, estes fatores influenciam as escolhas daqueles que assinam o cheque. Mas vou falar um pouco melhor sobre isso em outro tópico, aguardem.

Outra coisa: não adianta ver o mundo em preto-e-branco, como dissertei no texto sobre a falsa dicotomia. O comunismo, que seria a instância dialética oposta ao capitalismo, não deu certo. Isso é fato e não adianta reclamar. Isso significa que é a única alternativa possível? Não! Isso significa que as opções são o feudalismo e o tribalismo, como em tempos ainda mais pretéritos? Também não. A resposta pode estar no próprio capitalismo, um sistema que não prescinda do lucro e da riqueza, mas que não deixe de fora tanta gente. Neste sentido, os programas de inclusão social são imprescindíveis. Eles podem conter defeitos, é verdade, e cabe à sociedade como um todo se sentar à mesma mesa e discutir ajustes nos seus rumos. Há uma frase famosa que diz que não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar. O diabo é que às vezes não adianta saber pescar, é preciso ter acesso ao rio. Senão, só se poderá pescar nas bancas de peixes dos outros, compreendem?

Mais ainda: vivemos em um mundo acelerado, com relacionamentos que se iniciam e se encerram em um clique de mouse, da noite para o dia. Tudo vai tanto na base da superficialidade que temos um sentimento de pertença muito tênue. Essa espécie de falta de acolhimento nos coloca fragilizados diante de situações em que não nos encontramos como seres humanos, e, com isso, encaramos sintomas depressivos. Vivemos cada vez mais isolados, nós que hoje podemos nos comunicar instantaneamente com o mundo inteiro.

Por isso, o apelo à misericórdia é um sinal que precisamos saber interpretar. É muito raro alguém que não se sinta humilhado em fazê-lo, ao contrário do que tendemos a pensar. Quem pede tem necessidade, sendo esta justa ou injusta. É muito mesquinho de nossa parte achar que todos os que pedem auxílio estão lá porque querem, porque escolheram essa via. Eu mesmo assumo, como já fiz neste texto, que muitas vezes vejo antipaticamente tanto quem me pede na rua, quanto quem faz reinvindicações. É um modus vivendi que nos leva a isso. Estamos convencidos de que existe ameaça na inclusão, de que serão tirados nossos lugares, que pagaremos pelos outros. Enquanto isso ocorrer, existirão apelos à misericórdia não falaciosos.

Recomendação de leitura:

Ariano Suassuna, em sua obra principal, detecta o uso de apelos à misericórdia profusamente, principalmente no desfecho da obra, onde Manuel vai mostrando racionalmente a impossibilidade de salvação de todos os personagens, e a Compadecida vai, um a um, demonstrando como isso pode ser feito através da misericórdia. Duas frases impagáveis:

“Se a senhora continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai terminar como disse Murilo: feito repartição pública, que existe mas não funciona”.

“Ele diz a misericórdia porque sabe que se fôssemos todos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada”.

É sensacional. Existe a versão cinematográfica, mas há muito de crítica que fica excluído nessa versão. Corram atrás do livro.

SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2014.

* As ruas do triângulo compõem um conjunto de vias circunscritas à Rua Direita, Rua XV de Novembro e Rua São Bento, que compreendem uma forte concentração comercial durante o dia. Para maior segurança dos transeuntes, o trânsito de veículos foi restringido, há um bom tempo, ao transporte essencial de mercadorias e prestação de serviços públicos. O nome deriva do óbvio motivo de formarem um triângulo, como pode ser observado no mapinha abaixo. As ruas interiores e suas adjacências também estão assinaladas com a mesma característica. Para quem não é de São Paulo, acesse o endereço abaixo para entender como é:

Nenhum comentário:

Postar um comentário