Quando redigi meu texto em que eu falava sobre a dimensão
estética do suicídio, que pode ser lido neste link, meu leitor e
colaborador Vitor Bertalan levantou um questionamento sobre a questão do
martírio. Ele teria o mesmo efeito estético que pretendi atribuir à minha
dissertação, ou há algo de diferente no ato de entrega da vida em nome de uma
causa, de uma convicção? Pois bem, dois anos depois, vou tentar responder.
O primeiro ponto a ser discutido é que não temos um só tipo
de martírio, e por aí já adianto que há também diferenças no modo com os quais
devem ser encarados. A palavra “mártir” acabou por se tornar muito genérica, e
desde já vou excluir deste texto sua aplicação simbólica. Para definir bem que
exclusão é esta, vou contar mais uma historinha da minha vida, um tanto fútil,
mas perfeitamente significativa para exemplificar.
Na segunda metade da década de oitenta, eu trabalhava com
custos e contabilidade (vida emocionante...) em uma empresa de metalurgia, mais
especificamente uma fabricante de máquinas-ferramenta para deformação de
metais, mais especificamente ainda uma fábrica de prensas. Era uma época em que
a indústria nacional ainda era pujante, dados os caríssimos impostos de
importação, que faziam com que valesse a pena produzir no país. Acontece que,
tão logo se deu a virada para a década de noventa, o então presidente Fernando
Collor, julgando os carros produzidos no Brasil autênticas carroças, resolveu
mudar a política econômica, barateando a importação de quase tudo. Por outro
lado, o crédito industrial foi limitado e os investimentos em aplicações
financeiras, até mesmo inocentes cadernetas de poupança, foram confiscados por
um bom tempo. O efeito foi devastador para a indústria nacional, e foi
particularmente cruel para a indústria pesada, como a que eu trabalhava em
particular. Muitas portas baixaram e os empregos foram se tornando raridade.
Bom, não vou entrar em grandes discussões do gênero neste momento. Para a
compreensão geral, isso basta.
As empresas em geral começaram a partir para cortes de
gastos, e, além do cafezinho, as primeiras afetadas eram as cabeças dos
empregados. É evidente que aqueles funcionários que mais incomodavam eram os
primeiros a ser desbastados, mas, para tentar amenizar os impactos dos cortes, eram
realizadas semanalmente reuniões entre gerência e funcionários para tentar
obter alguns consensos. Alguns eram bastante impactantes, como a redução temporária
da jornada e de salários, com a garantia de que não haveria dispensas durante o
período. Outras eram um pouco menores, como a diminuição de benefícios.
Tínhamos até então um refeitório farto, com prato principal, saladas,
guarnições, sobremesas e máquina de refrigerantes, além do direito de opção
para quem não pudesse/gostasse de consumir determinada iguaria. Para reduzir
esse custo, foi estabelecido que o contrato com a empresa fornecedora de comida
seria rescindido, e seria oferecida uma refeição bem mais simples: arroz,
feijão, uma mistura qualquer e salada, sem direito a opção, guarnição ou refrigerante.
No lugar deste último, foi colocada uma daquelas maquininhas de suco, tão
presentes nos botecos que servem churrasquinho grego nos arredores da Praça da
Sé. Resignados, porém conformados, aceitamos de bom grado o declínio alimentar.
Na reunião seguinte à primeira semana das medidas culinárias, um dos
funcionários fez um pedido sucinto porém justo, e silenciosamente apoiado por
toda a galera: o suco das maquininhas era horrível – açúcar pintado com algum
corante, cheio de resíduos. Este funcionário pediu apenas e tão somente que
fosse trocada a marca do suco, ou algo semelhante. Estava melhor beber água ou
nada. Pois muito bem. Na reunião, a gerência falou iria rever o produto que
estava sendo utilizado, se o problema não estava no preparo ou coisa congênere.
No dia seguinte, nosso desventurado amigo foi colocado em aviso prévio... Ficou
conhecido como “o mártir do suco”, aquele que entregou o emprego pela nobre
causa de um acompanhamento digno para a gororoba diária. Perceberam que é um
mártir simbólico? Pois é, deste tipo de mártir não vou tratar, nem do termo
ainda mais genérico, que indica qualquer sofrimento intenso. Tipo: “Ai, essa
dor nas costas é um martírio”, “Meu chefe é um martírio”, “Subir essa ladeira é
um martírio” e outras metáforas do estilo.
Vou por em discussão dois outros tipos de martírio, desta
vez reais, que implicam na morte do pobre coitado. E a base que os separa é
simples: se se trata ou não de um ato de livre vontade. Temos mártires
voluntários e mártires involuntários. Mas antes, vou conceituar a palavra.
Sua origem data do advento do Cristianismo, que, em seus
primeiros séculos, tinha o duplo dissabor de ser uma dissidência do Judaísmo e
uma oposição ao Paganismo imperial romano. Era um termo aplicado às pessoas
que, por não abdicar de sua fé, preferiam serem mortos, dando assim seu
testemunho. Este testemunho (martys)
tinha origem nos primeiros discípulos de Jesus, que o conheceram pessoalmente,
presenciando seu julgamento e condenação, e praticamente todos eles tiveram
algum tipo de fim triste similar: crucificação, esfolamento, apedrejamento,
decapitação, essas coisas. Faziam isso por um ideal – manter sua fé diante da
opressão de um sistema que lhes tolhia a liberdade de escolha.
Com o passar do tempo, o termo foi se aplicando a qualquer
pessoa que colocava sua causa acima de sua própria vida. Mas, no caso dos
mártires involuntários, isto é, aqueles que tiveram sua vida ceifada sem sua
própria asserção, não podemos equipará-los a suicidas. Caso mais clássico que
posso fazer remissão agora é o de Tiradentes, o alferes Joaquim José da Silva
Xavier. Rapidíssima revisão: Tiradentes fez parte de um movimento chamado
Inconfidência Mineira, que pretendia se libertar da dominação portuguesa, que
se apropriava das riquezas produzidas pela extração de ouro em Minas Gerais.
Pela delação de um dos partícipes, o movimento foi desmantelado e seus membros
punidos, com penas que passavam por prisão, desterro e enforcamento, esse
último aplicado apenas para o infeliz dentista/militar. Sua execução foi
explorada à exaustão por artistas e patriotas vários, muitas vezes baseados em
uma visão mítica (em momento oportuno, posso tentar falar algo sobre a “barba
de Tiradentes”), mas o fato é que seu martírio foi imposto, o que não tira sua
aura de heroísmo, mas reduz significativamente sua dramaticidade, pelo menos no
que diz respeito ao ato em si como sinônimo de entrega extrema a uma causa.
Partamos, portanto, para a análise do martírio como
suicídio. E, para tanto, vamos abordar dois filósofos, este que é um espaço
destinado à Filosofia. Um é megaconhecido, até por leigos; outro, nem tanto.
Mas quem estudou Filosofia ou História o conhece, sim.
Sócrates é, provavelmente, o mais célebre dos filósofos. Não
deixou escritos, principalmente pela força da oralidade de seus métodos, e sua
vida é conhecida, principalmente, pelos relatos deixados por Platão e Xenofonte,
que têm inspiração mais doutrinária do que histórica. No entanto, alguns pontos
de sua biografia são consensuais, o que permite deduzir que, ao menos na
essência, estes relatos são dignos de fé. Sócrates renovou decididamente a
maneira de pensar dos antigos gregos e, por extensão, de todo o ocidente. O
princípio básico de suas ideias aponta para a identificação da essência do
homem com a sua alma, mas em um sentido diverso do religioso. Alma, para
Sócrates, é o logos, a razão, o eu consciente. O corpo já não é o mais
importante, ele é apenas um instrumento para por em prática as ações deste
logos. Desta forma, a busca do homem não deve ser calcada no poder ou no
prazer, mas na areté, a virtude. E,
para tanto, é fundamental o autoconhecimento (nada de auto-ajuda, por favor).
Se o homem não se conhece, não saberá buscar essa virtude.
Dessas assertivas derivam todas as demais doutrinas
socráticas. Para que a virtude seja atingida, é preciso exercitar um domínio
sobre si mesmo: o homem-razão deve preponderar sobre o homem-animal, a
racionalidade tem que saber dominar os instintos, e é preciso cada vez menos
tornar imperativas as necessidades do corpo. A sabedoria consiste, assim, em
fazer com que esse domínio sobre as paixões aproxime o homem das divindades. Os
deuses bastam a si mesmos; o homem deve buscar o mesmo.
Esse desligamento do homem com as noções de poder trazia
suas consequências. O homem sábio procura se afastar do embate, da guerra e da
disputa. Calcando sua vida na busca dos valores racionais, chegaria sempre em
uma solução pacífica, bem acordada. Isso ia de encontro à classe dirigente de
Atenas, sempre necessitada de soldados preparados para o combate. Dessa forma,
pesou sobre Sócrates a acusação de que estava pervertendo a juventude, os
braços preferenciais dos exércitos. Além disso, havia a acusação secundária de
que Sócrates ofendia os deuses do panteão grego, ao ensinar doutrinas diversas
daquelas do entendimento geral, especialmente ao se utilizar o espírito crítico
contra verdades prontas para consumo. Em seu julgamento, foram-lhe dadas as
opções do exílio, da extirpação da língua ou da morte. Dizendo ser ambas as
primeiras um castigo insuportável, opta pela última, que ao menos lhe é
desconhecida. Sócrates não só não se retratou das acusações que lhe fizeram
como ainda recusou a ajuda de seus companheiros, que queriam planejar sua fuga.
Argumentava que, em primeiro lugar, sua condenação era um prêmio por sua vida
justa. Mas, principalmente, morria em obediência às leis da polis. Se ele defendeu a virtude como
principal objetivo a ser perseguido pelo homem, como poderia ele mesmo se
voltar contra suas convicções, tomando uma atitude antiética, ainda que sua
condenação tenha sido injusta? Preferiu tomar ele mesmo seu cálice de cicuta,
diante do desespero de seus discípulos, como podemos ver na interpretação de
Jacques-Louis David, a famosa tela “A morte de Sócrates”.
O martírio de Giordano Bruno tem contornos ainda mais dramáticos. Tinha um espírito difícil de amestrar, sendo a insubordinação uma de suas maiores características. Para falar mais claramente, era um encrenqueiro de mão cheia. Para que se tenha ideia do que estou falando, nosso corajoso porém imprudente filósofo foi beber nas fontes da mitologia egípcia para elaborar suas teses sobre o universo, em um tempo de intensa preponderância do pensamento cristão, que, como bem se sabe, não era muito dado a tolerâncias nos idos do século XVI. Suas ideias constituíam uma retomada, com influência neoplatônica, da tradição de Hermes Trismegisto, Deus da magia e da escrita. Segundo esta doutrina, a mente tem dentro de si um conjunto de imagens que totalizam todo o conhecimento do universo. As sombras das ideias não são, como imaginava Platão, obtidas através das coisas sensíveis, mas de uma impressão mágica que nada mais é do que reflexo das ideias divinas. Como tal, essas ideias estão eternamente residentes nos cérebros humanos, o que faz com que seja possível desenvolver técnicas de memorização que seriam praticamente infalíveis, assim como potencializa o alcance do conhecimento a praticamente qualquer lugar onde ele possa ser obtido, já que este seria nada mais do que a ativação da ideia. A partir destes princípios, Giordano Bruno desenvolve um sistema de mnemotécnica que o torna famoso, e que, no final das contas, foi a causa final de seu martírio.
Há dois pontos de divergência mais significativos do
pensamento bruniano com relação ao Cristianismo: o universo infinito e eterno e
o deus in rebus, o Deus nas próprias
coisas. Bruno imagina que existe uma entidade suprema da qual emana tudo do
universo, mas essa própria entidade não pode ser conhecida plenamente. Giordano
Bruno concebe a emanação divina como uma distribuição dela própria, ou seja,
Deus está em tudo. Mais do que isso: se tudo procede de Deus, se tudo é
composto de Deus, se tudo é plasmado pela substância de Deus, então tudo contém
o Deus completo, o que inclui não só a matéria, mas o intelecto de Deus. Tudo
tem alma: os homens, os animais, as plantas e os minerais. A filosofia de Bruno
não é só panteísta; é também panpsiquista.O martírio de Giordano Bruno tem contornos ainda mais dramáticos. Tinha um espírito difícil de amestrar, sendo a insubordinação uma de suas maiores características. Para falar mais claramente, era um encrenqueiro de mão cheia. Para que se tenha ideia do que estou falando, nosso corajoso porém imprudente filósofo foi beber nas fontes da mitologia egípcia para elaborar suas teses sobre o universo, em um tempo de intensa preponderância do pensamento cristão, que, como bem se sabe, não era muito dado a tolerâncias nos idos do século XVI. Suas ideias constituíam uma retomada, com influência neoplatônica, da tradição de Hermes Trismegisto, Deus da magia e da escrita. Segundo esta doutrina, a mente tem dentro de si um conjunto de imagens que totalizam todo o conhecimento do universo. As sombras das ideias não são, como imaginava Platão, obtidas através das coisas sensíveis, mas de uma impressão mágica que nada mais é do que reflexo das ideias divinas. Como tal, essas ideias estão eternamente residentes nos cérebros humanos, o que faz com que seja possível desenvolver técnicas de memorização que seriam praticamente infalíveis, assim como potencializa o alcance do conhecimento a praticamente qualquer lugar onde ele possa ser obtido, já que este seria nada mais do que a ativação da ideia. A partir destes princípios, Giordano Bruno desenvolve um sistema de mnemotécnica que o torna famoso, e que, no final das contas, foi a causa final de seu martírio.
Tem mais: partindo do princípio de que o universo é
infinito, cada ponto de onde parte uma perspectiva é o centro deste universo.
Essa característica, por exemplo, remove qualquer centrismo: nem a Terra, nem o
Sol (embora Bruno entenda o Sol como o centro do nosso universo “local”), nem
nada – tudo e ninguém são centrais. Bruno, inclusive, não exclui a possibilidade
da existência de outros mundos com vida – um proto-ufólogo.
Está mais do que na cara que este tipo de posicionamento
confrontaria diretamente o pensamento cristão da época, que era, como sabemos,
tremendamente autoritário e pouco propenso a oposições. O universo infinito e
eterno dava uma noção de incompletude, e, portanto, de imperfeição, o que era
inadmissível para os teólogos de então. O mesmo se dá no panteísmo e no
pampsiquismo: as coisas são imperfeitas e possuem muitos vícios. Não é possível
conceber, na filosofia cristã, um Deus que não se destaque de sua própria
criação, que não se situe em uma posição de paradigma de perfeição, a ser
perseguido por suas criaturas.
Bruno foi se virando do jeito que dava – fugia daqui para lá
e dali para cá, na exata medida em que arrumava suas altercações. Já era
problemático desde adolescente: foi expulso da escola que estudava em Nápoles.
Fugiu para Roma, passou por Turim, Nola, Veneza, Savona e Gênova – todas no
norte da Itália. Se mandou para a Suíça, onde foi encontrar barulho com os
calvinistas de Genebra. De lá foi para a França, onde passou por Toulouse e
Paris, onde finalmente conseguiu proteção do embaixador francês. Acompanhou-o
até a Inglaterra, sobretudo em Londres, mas também foi à Oxford para se
indispor com os acadêmicos da universidade local. Voltando a Paris, percebeu
que o antigo clima amistoso havia se esvaído, e migrou para a Alemanha, onde
elogiou publicamente os luteranos, que o acolheram em Helmstädt. Adivinhem o
que aconteceu em menos de um ano? Sim, ele foi expulso. Foi para Frankfurt,
onde parou de tergiversar um pouco para se dedicar à poesia, quando foi convidado
pelo nobre veneziano Giovanni Mocenigo para ministrar aulas de mnemotécnica, da
qual era mestre. Deu um tiro n’água: retornou à Itália e, claro, foi angariar
discórdia com seu contratante, que não pensou cinco minutos em levá-lo preso ao
Santo Ofício. Condenado à fogueira, Bruno tinha a opção de abjurar, mas não
quis se contrapor às suas próprias ideias, entregando-se à morte, que se deu em
1600.
Temos aí, portanto, duas histórias em que poderíamos fazer
uma equivalência real entre martírio e suicídio, já que existia a opção de não
morrer. Mas é uma opção meio que falsa: haveria uma perda ainda assim. No caso
de nossos caros filósofos mencionados, que não são conhecidos por obras
artísticas, ou por realizações políticas, ou por sutilezas físicas, ou por
práticas de guerra, mas apenas e tão somente por suas ideias, renegá-las
significa manter a vida, mas tirar-lhe totalmente o sentido. Olhando por este
ângulo, manter a sobrevivência significaria atirá-la no vazio. É um ato de
coragem escolher pela morte, mas a coisa vai mais além: a obra de ambos era,
concordemos com eles ou não, maior que a sua própria existência, e, no final das
contas, era a melhor coisa a fazer para se manter vivos, permanentes, eternos.
Vejam vocês: seria muito menos provável eu estar falando sobre Giordano Bruno
neste espaço unicamente por sua Filosofia hoje superada – tanto Religião quanto
Ciência concordam que o universo não é infinito e que teve um ponto inicial: a
criação para os religiosos, o big bang
para os cientistas – do que pelo fato de sua entrega em nome de suas
convicções.
E nessa medida o martírio se equivale em dramaticidade ao
suicídio, de quem se destaca sem se descolar, porque o suicida “comum” encerra
uma tragédia pessoal, enquanto o mártir deixa um legado para a humanidade:
morre muito mais aquele que renega o que crê do que aquele que efetivamente se
deixa matar. Concordar ou não, é com vocês.
Recomendações de leitura:
Menciono aqui as duas obras que melhor fazem referência à
morte de Sócrates, e que citei neste texto. Claro que a linguagem não é das
mais fáceis, mas são bem importantes de serem lidas para compreender os motivos
pelos quais Sócrates se entrega em martírio.
PLATÃO. Diálogos.
São Paulo: Nova Cultural, 1991. Col. Os Pensadores.
XENOFONTE. Banquete e Apologia de Sócrates. Coimbra: Centro
de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2008.
O livro principal de Giordano Bruno é o que menciono abaixo.
Saibam que ainda hoje é muito utilizado por esotéricos.
Bruno, Giordano. Sobre
o infinito, o universo e os mundos. São Paulo: Abril Cultural, 1992.A imagem da tela de Jacques-Louis David foi extraída do seguinte site:
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