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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Pequeno guia das grandes falácias - 2º tomo - O apelo à força (argumentum ad baculum)

Olá!


“(...) Ele estava com medo. E o medo dele me mostrou um caminho melhor: confessar e dividir a culpa com ele. Era uma maldade, mas ele precisava de uma lição (...)”
J. J. Veiga

O argumentum ad baculum, ou apelo à força, é uma falácia do tipo informal que acontece quando uma explicação calcada na lógica é preterida em favor da utilização de uma ameaça. Este medo incutido em quem é adversário no debate visa apenas e tão somente colocar um ponto final em argumentos contrários, sem a necessidade de se chegar a uma conclusão bem construída. Perceba-se que a inserção da força no meio da discussão não produz nenhum tipo de prova. E o que faz com que o debate se encerre é a prudência, e não a razão.

Dá para argumentar com quem põe uma faca em nossa cabeça?

O termo latino “baculum” pode ser traduzido como báculo. Esse objeto pode ser visto na mão de bispos da Igreja Católica e tem o sentido da condução que seus representantes têm sobre a massa de fiéis, ou seja, é um símbolo do pastoreio tantas vezes repetido nos Evangelhos. Fora do contexto religioso, báculo é um nome coxinha para o bom e velho cajado, a bengala que auxilia os camponeses em suas tarefas diárias. Esse objeto tem múltiplos usos: serve como apoio para subir e descer dos morros e colinas, serve como alavanca para deslocar objetos pesados, serve para afugentar os lobos que se aproximam dos currais, serve para dar nas costas das ovelhas mais obstinadas em não se recolher ao redil. Em resumo, o cajado é uma alegoria à imposição pela força. E o argumento ad baculum (ou apelo à força) faz exatamente isso, ou seja, mostrar que quem detém o porrete tem sempre razão.

Talvez um dos empregos mais comuns desta falácia é o famoso “Deus castiga” que aplicamos às crianças. O argumento é de todo ilógico, mas muito convincente. Ensina-se insistentemente que Deus é bonzinho, que Deus fez tudo de bom e bonito, que Deus tem piedade dos homens, que Deus é isso, aquilo e o outro. Na primeira escorregadela do fedelho, tacamos a imprecação peremptória:

- Não faça isso! Deus vai te castigar!

Cadê aquele ser benévolo, sereno, misericordioso, a quem devemos confiar? Ora, virou uma ameaça, um objeto de medo!

Ao invés de se justificar logicamente os porquês da inconveniência da traquinagem, utiliza-se a força, a ameaça e, no caso, a incoerência também.

Mas há argumentos com a aplicação de ameaça que não são falaciosos. São aqueles em que a ameaça é real, e que geralmente não partem voluntariamente de quem os profere. Quando alguém lhe disser...

- Não passe debaixo dos andaimes. Um martelo pode cair na sua cabeça.

... ele estará lhe advertindo de um risco real, não estará dando um falso argumento. Neste caso, não há uma falácia, porque a ameaça está intrinsecamente ligada à lógica da frase. O mesmo se aplica ao policial que ameaça o bandido pego em flagrante delito, em mais um exemplo. Não temos uma ameaça pela impropriedade do argumento, mas pelo dever de ofício.

A diferença reside no uso da razão, como eu disse acima. Se meu chefe me ameaça com uma punição (ele nunca faria isso, meu chefinho tão bonzinho), pode fazê-lo por dois motivos. Ele pode querer que eu trabalhe até mais tarde e bradar pelos corredores que, se eu não o fizer, poderei ser prejudicado na minha carreira. Mas também pode me explicar a necessidade real do trabalho, que se eu não conseguir terminá-lo a tempo todo o setor será prejudicado, que nossos superiores contestarão os prazos que nós mesmos prometemos e que, em vista disso, terei mais dificuldades para seguir confiante na carreira. Perceba-se que, em ambos os casos, terei elementos suficientes para me borrar inteiro, só que o argumento do medo é único no primeiro caso, enquanto no segundo há toda uma construção das causas e consequências que, mesmo me impondo temor, são reais e devidamente ponderadas.

Como se pode observar, é muito difícil que não recorramos a este tipo de apelo, até mesmo com certa frequência, e isso é natural. O risco não está na informalidade de seu uso, mas na sua aplicação como argumento lógico, o que pode ser muito compreensível no quotidiano, mas é sempre preciso lembrar que apelar para a força nada tem de lógico. Portanto, cuidado com as armadilhas da tentação de utilizar um porrete quando sua característica de ser racional servir de prova para sua condição de humano.

Recomendação de leitura:

Várias obras literárias já tiveram a possibilidade de demonstrar como os apelos à força podem ser utilizados para alienar e oprimir. Alguns dos exemplos mais clássicos são 1984, de George Orwell e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Gostaria de recomendar aqui um outro livro que tem esta pegada, de onde extraí a epígrafe do começo do texto. Trata-se da obra-prima de José J. Veiga, maior representante do realismo fantástico no Brasil, ao lado de Murilo Rubião. A história é uma alegoria do período repressivo no Brasil, em que o governo militar é representado por uma empresa que se aloca em uma pequena localidade e se alastra até estar presente em todos os aspectos das vidas dos cidadãos. Vale a pena conhecer.

VEIGA, José J. Sombras de Reis Barbudos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

Agradeço à Renata e ao Azul por autorizarem o uso da fotografia.

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