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terça-feira, 24 de julho de 2012

Sobre o suicídio como forma extrema da estética

"O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia" – Albert Camus

Olá!

A crise econômica apresenta suas armas. Um dos países europeus mais afetados pela depressão, a Grécia, tem apresentado um alarmante aumento no número de suicídios (noticia aqui). É uma das características dos ciclos capitalistas, infelizmente. Como o dinheiro toca a roda da vida, que não o tem ou perde a perspectiva de tê-lo, tem a tendência a entrar mesmo em parafuso. Mas a reação me parece estremada demais. Vamos analisar.

Émile Durkheim foi um dos primeiros pensadores a estudar o suicídio em seu prisma sociológico. Ele percebeu que há uma taxa razoavelmente mais significativa em sociedades onde há deficiência na integração social dos indivíduos. Os momentos de crise econômica, como no caso grego, são propícios para promover esta fragmentação social, e então o indivíduo se vê mais individual do que nunca, isolado em seu desespero. Mas ciclos econômicos vem e vão, e as pessoas permanecem. Será que só este ângulo existe? Há algum recado embutido no ato suicida? Para tanto, precisamos sair um pouco do âmbito científico.

Na despirocadíssima visão de Antonin Artaud (de quem eu já falei, e bem, neste post), o suicídio não pode ser visto como solução, mas como hipótese. Isso indica que o suicídio não existe para ser descartado, mas para que se duvide de sua efetiva utilidade, já que é impossível estabelecer o momento que o homem morre, ainda que se mantenha vivo. O suicídio como patologia não reserva nada de especial, é preciso que ele seja determinado, seja consciente e bem decidido, para que possa representar o não-ser, e não a morte.

Eis que Artaud, a partir desta visão, deu-me inspiração para pensar o suicídio em termos diferentes do catastrofismo. É preciso considerá-lo para além de suas conseqüências práticas mais evidentes e suas motivações psicológicas. Precisamos validá-lo em sua dimensão estética.



PelamordeDeus, não quero aqui dizer que sou favorável a uma explosão de suicídios para lotar o panteão de artistas que queiram expressar suas tragédias através de atos tresloucados, mas quero demonstrar como estes dão uma conclusão máxima a uma história que clama por alguma forma de divinização.

Isto posto, partamos para alguns exemplos:

Um dos políticos mais conhecidos e polêmicos no Brasil foi Getúlio Vargas. Ele sempre se equilibrou habilmente entre aqueles que o amavam e os que o odiavam. Mas o seu momento de apoteose foi seu suicídio, sem dúvida alguma. Ele se encontrava acossado por todos os lados, havia perdido o apoio tanto das elites quanto da população em geral, e sofreria inevitavelmente um humilhante golpe. Seu ato devolveu à defensiva os seus inimigos, comoveu o país que não lhe oferecia respaldo de outra forma. Foi uma cartada de mestre, mesmo com um resultado fatal. Qual a sua lógica se não considerarmos sua propriedade de restituir a grandiosidade da sua personalidade?

Outro exemplo é o ritual do seppuku (mais conhecido como harakiri), que consiste no auto-sacrifício cometido pelos guerreiros japoneses. No código ético nipônico, a honra de um samurai está acima de sua própria vida. Quando esta honra é maculada, a vida não tem mais razão de ser. A única maneira de restituí-la é oferecer a morte como reparação. A entrega máxima tem o condão de apagar os erros, restabelecer a reputação (sua e de seus familiares) e transformar a vergonha em nova honra.

Pois então. Em ambos os casos, temos a subversão da ordem natural. A espécie humana, assim como a quase totalidade das demais (uma exceção é o caso dos lemingues, que fazem uma corrida suicida em massa quando há superpopulação – talvez nossos amáveis e dramáticos roedores sejam possuidores de uma consciência coletiva mais apurada que a nossa...) possui em seu registro atávico o instinto de auto-preservação (já mencionado, por exemplo, neste post). Este instinto faz com que tentemos nos manter vivos em todas as circunstâncias possíveis e imagináveis, favoráveis ou não, porque a vida é fluir constante. É como se a “esperança” estivesse embutida em nossa genética.

Ocorre que o ato suicida tem a força de redimensionar este elemento, que é o máximo de caracterização como ser vivo que temos. O suicídio tem o condão de traspassar os limites do racional e do instintivo ao mesmo tempo; vai além de qualquer noção de belo ou não-belo para atingir o sublime, o inatingível, que, numa contradição extrema, traz a morte violenta e repentina como desfecho válido para a vida, estranhamente justificando-a. Immanuel Kant diferencia o belo do sublime pelo tanto de espantoso e admirável que o segundo tem a mais em relação ao primeiro. A tragédia chega a seu ápice pelo improvável. Sublime é saltar a montanha mais alta, transpor o obstáculo mais difícil, carregar o peso mais pesado. Jogar no chão a parede mais sólida é o que tenta fazer o suicida em seu desespero; fundir sua covardia à sua coragem. É levar a cabo a tragédia com um desfecho mais trágico ainda.

É de se salientar ainda que o próprio método adotado para consumar o suicídio pode estar todo eivado de representações simbólicas. O rito do seppuku expõe as entranhas do guerreiro para que se mostre que no seu interior ainda há algo de pureza que torna sua existência digna. O tiro na cabeça demonstra a vontade de que a memória não se perpetue, que o ser torne-se não-ser. O salto do prédio representa a intenção de se desprender do mundo. O envenenamento coloca a substância utilizada como pharmacon, como poção mágica que cura pela morte. Enfim, o que quero dizer é que o suicídio é mais do que colocar termo à própria vida; no plano simbólico, ele é a busca por um desfecho grandioso para uma vida que já não tem razão de ser.

Agora, a parte disso tudo, e considerando o ato em si em seus efeitos práticos, é preciso que a questão seja levada muito a sério, porque ela é tão subversora de uma ordem natural que qualquer ameaça, mesmo que não seja consumada, deve ser considerada como um grito de alerta de uma pessoa desesperada. Temos a tendência de achar que a pessoa que quer acabar com a própria vida não manda avisos. Não é verdade. A ameaça é um clamor, é preciso ouvir o que a pessoa tem a dizer, compreender o que a incomoda tanto, oferecer um ombro amigo para que a pessoa possa chorar, desabafar, abrir-se. Às vezes nos ocupamos tanto de uma caridade material que nos esquecemos que as desgraças e perturbações podem ser meramente de ordem psicológica, e essas são justamente as mais difíceis de corrigir. O thanatos freudiano (pulsão de morte, devidamente esmiuçada aqui) busca restabelecer uma estabilidade emocional que já não existe mais, e o torvelinho psíquico em que um indivíduo se vê lançado pode estar a tal ponto exacerbado que qualquer composição lógica se desfaz no ar.

A partir de todo o exposto, podemos compreender a máxima camuseana, que diz que o suicídio é a única questão filosófica realmente relevante, o que podemos traduzir como: O que faz com que toda ordem natural e mesmo cultural seja jogada no lixo, e o ato mais contrário à própria vida possa ser encontrado como solução.

Recomendações de leitura:

Durkheim é um dos pais da sociologia. Suas teorias relacionadas aos fatos sociais permitiram a ele fazer um estudo totalmente isento de emoções com relação a esta temática tão complexa. O livro é absolutamente desapaixonado, como convém a um bom trabalho científico.

DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martin Claret, 2008.

Bom, quanto a Artaud... É aquele doido varrido de quem já falei anteriormente. Várias de suas observações podem ser lidas no seguinte livro:

ARTAUD, Antonin. Escritos. Col. Rebeldes e Malditos. Porto Alegre: LP&M, 1983

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