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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Discussões sobre nossa capacidade de legislar adequadamente sobre a maioridade penal

Olá!

Nos últimos tempos, estamos assistindo uma nova onda de debates sobre a redução da maioridade penal em nosso país. Isso se deve à utilização cada vez mais frequente de menores de idade na execução de crimes violentos por motivos totalmente fúteis, como foi o caso de um rapaz que foi assassinado em um roubo de celular, por uma pessoa a poucos dias de completar 18 anos. A fórmula é simples: como a pena destinada ao menor de idade é muito mais modesta que aquela imputada ao adulto, o “menino” é colocado nos bandos para receber as culpas mais escabrosas, sendo-lhe atribuída a liderança da quadrilha, o porte da arma ou do entorpecente, o tiro fatal, etc.
País estranho, esse tal de Brasil. Há um bom tempo os índices de desemprego são baixos (os economistas consideram que um índice de 5% de desempregados representa a circulação normal de empregados de um país – é o que se chama de “pleno emprego”), há programas de redistribuição de renda e a economia como um todo não vai mal, mas os índices de violência teimam em não baixar, até mesmo pelo contrário. É preciso procurar outros motivos, porque o buraco parece ser bem mais embaixo.

Bem recentemente, deparei com uma frase pichada em bom português no muro que fica de frente onde moro: “Enquanto não houver justiça para os pobres, que não haja paz para os ricos”. Frase boa, perdida em meio a outras garatujas ilegíveis. Inteligente, ameaçadora, e que lembra os protestos estudantis de 1968 espalhados pelo mundo. E, no final das contas, é mais verdadeira que as questões colocadas sobre qual a idade ideal para se punir.
A redução da maioridade pena de 18 para 16 anos é uma das balelas mais estúpidas que ouvi nos últimos tempos, e é elemento representativo da crise intelectual que grassa e desgraça em nosso país. É uma cortina de fumaça que parece destinada a ocultar quatro fatos fundamentais que são ainda mais feios de se observar: nossa indefinição política, um sistema prisional medieval, órgãos de coerção ineficientes e especialmente um ethos adoentado. Vamos tratando de cada um, aos poucos e não necessariamente nessa ordem.


Para entender porque reduzir a maioridade penal é algo ineficaz e perigoso, vamos pegar alguns conceitos do brilhante educador suíço Jean Piaget, o principal papa da escola construtivista da aprendizagem, através de sua teoria da epistemologia genética. Antes da gênese do ideário piagetiano, a psicologia da educação dividia-se basicamente em duas correntes: a visão inatista, que via os processos de aprendizagem como algo hereditário e dependente exclusivamente da capacidade individual, o que explicaria as diferenças de desempenho entre duas pessoas expostas à mesma fonte de conhecimento; e a visão ambientalista, onde se cria que o conhecimento é derivado direto da experiência com o ambiente com o qual se vive, o que explicaria a diferença de aptidões a certas atividades entre os indivíduos. Piaget concorda com ambas, mas não de maneira isolada. Na verdade, elas interagem entre si e se complementam. Desta forma, a criança traz em si um conhecimento que herda e agrega à experiência que obtém do seu ambiente e de seus relacionamentos. A argamassa que solidifica essa construção é a maturação.

O que significa a maturação? É a capacidade de tornar cada vez mais sofisticados os processos de ligação do ambiente que nos rodeia com o nosso aporte cognitivo. Isso se dá aos poucos, na medida em que adquirimos experiência e aperfeiçoamos nossos esquemas mentais. Para citar um exemplo, uma criança muito nova aprende o que é um cachorro, definindo-o através de poucos parâmetros, como o fato de ter pelos e quatro patas. Qualquer outro animal que se encaixe nessa característica, seja um gato, seja uma vaca, seja um cavalo, é, para essa criança, um cachorro. Aos poucos, o contato com outros ambientes e pessoas agrega tijolos à construção, e a criança aprende a estabelecer diferenciações entre os animais de pelos e quatro patas. A aprendizagem é um processo constante de assimilação, acomodação e equilibração.

Na medida em que progride no seu processo de aprendizagem (e aqui não estamos falando apenas no ensino formal), o indivíduo muda de estágios de maturação. Piaget estabeleceu quatro deles:
- Sensório-motor: inicia-se com as ações reflexas típicas de um bebê, como o ato de chorar quando se tem fome, e vai evoluindo para o alcance de objetivos. O processo de absorção de informações e memorização é intenso nessa fase;

- Pré-operacional: intensificação do uso da linguagem e caráter egocêntrico. A criança tem dificuldade em compreender o ponto de vista do outro;
- Operacional-concreto: uso da lógica na resolução de problemas concretos, mas ainda sem compreensão plena da alteridade e com pouca capacidade para lidar com uma lógica abstrata;

- Operacional-formal: consegue lidar com a abstração. Adquire sentido de identidade, o que faz com que se situe no mundo e, consequentemente, lide com limites.
Pois então. Se compreendermos que as teses de Piaget são corretas, podemos começar a entender porque a redução da idade penal é inócua e até mesmo arriscada. A lógica que rege a utilização de jovens criminosos baseia-se, como já falei, em uma punição mais discreta ao menor. Um rapaz de 18 anos tecnicamente sabe usar um revólver, e um de 16 também, assim como um de 14 e até mesmo um de 12. Se hoje se utiliza alguém de 17 anos para servir de vidraça na consumação de crimes, utilizar-se-á alguém de 15 doravante, ora pois. Isso porque a lógica não muda, mui simplesmente. Continua existindo um determinado cidadão punido menos rigorosamente pela lei. E daqui a pouco teremos uma campanha para reduzir a idade penal para 14 anos, 12, 11, 10...

A brincadeira vai se tornando cada vez mais cruel porque, na medida em que se diminui a idade, aumenta-se a inconsequência derivada da falta de maturidade. Quanto mais nova a pessoa, menos critérios ela possui para deter seu dedo no gatilho, ou fazer outro tipo de bobagem. Corremos o risco de chegar ao ponto de atingir indivíduos que somente articulam bem no sentido concreto, e que tem maior dificuldade em lidar com a alteridade.
A solução? Claro que não há fórmula a seguir. Mas não há como fugir do questionamento incômodo: se o direito penal existe, pressupomos a existência da transgressão à lei. E é preciso pensar em como o brasileiro se coloca diante da lei, a maneira como se dá a relação da sociedade brasileira com suas disposições jurídicas. Mas é crucial que tentemos entender esse posicionamento para que possamos deduzir se é acertado ou não baixar a idade penal. E, no meu entender, não há motivos para otimismo.

Tenho percebido que há uma completa dissonância entre o que pensamos coletivamente e o que queremos individualmente. As pessoas em geral querem a aplicação de penas duríssimas para os transgressores da lei. Não se conformam com a progressão do regime, nem com a concessão de indultos. Também não costumam apreciar exclusões elitistas, como é o caso da prisão especial para as pessoas que possuem curso superior. Mas procuram salvaguardar um certo esquema de exceção, para quando elas mesmas, enquanto indivíduos, necessitarem da burla à legislação. A pena é dura para os outros, mas para mim ela deve ser amenizada, em uma explicitação de um processo de egoísmo. Pode parecer que a análise é um pouco pontuda demais, mas pense em pessoas que burlam o imposto de renda, que não respeitam vagas reservadas, que cantam o guarda para não aplicar a multa, que adiantam os minutos da zona azul, que se valem de aplicativos para celular para localizar blitzes, que multiplicam pontos de acesso de tv a cabo, que pagam um “quebra” para tirar a carteira de motorista, que mentem na renda para ganhar bolsa escola, que “perdem” a carteira de trabalho para não denunciar uma demissão rápida, que usam passe escolar no dia em que não tem aula, que marcam o ponto para os colegas e que pedem para que os colegas lhe marquem o ponto (o mesmo valendo para as listas de chamada das escolas), que subornam fiscais para aprovar os puxadinhos, que usam materiais do escritório em que trabalham nas suas casas; cadastramos apólices para pessoas mais velhas – com o objetivo de reduzir o valor do seguro, compramos produtos piratas e falsificados, baixamos músicas e filmes sem pagar direitos autorais, compramos atestados para faltar no trabalho, tungamos cinzeiros dos motéis, pegamos troco a mais e não nos manifestamos, pagamos oficiais de justiça para não nos achar, omitimos os defeitos daquilo que vendemos, fingimos dormir nos assentos reservados, e, principalmente, damos estatuto de otário para quem não se reserva o direito de transgredir (desde já excluo aqueles que transgridem para licitamente contestar uma situação de injustiça).
Tudo isso é relativamente comum, e é difícil atirar a primeira pedra, porque é improvável que nunca tenhamos cometido nenhum desses pecados. São todas pequenas indulgências que costumamos utilizar com a desculpa de que a sociedade é injusta. Mas o grande problema é que o brasileiro é desonesto no miúdo, em coisas onde não haveria a menor necessidade de sê-lo, e habituamo-nos a utilizar destes expedientes. Vivemos em uma cultura da vantagem que nos impede de enxergar claramente os limites de nossa ética social. Nosso modo de ser é um tanto distorcido, no que diz respeito ao viver democrático.

Uma boa parte disso se deve à indefinição dos rumos políticos adotados pela nossa sociedade. A mesma Constituição que defende a propriedade como um dos direitos fundamentais do cidadão também garante o acesso à moradia como direito social, para dar um exemplo entre tantos. Ora, são princípios discrepantes enquanto o Estado não garantir este último direito a todos aqueles que estão sob seu guarda-chuva. Não sabemos bem se vamos à direita ou à esquerda, e o resultado é que tanto aqueles que invadem edifícios sem uso quanto aqueles que querem ver salvaguardados seus direitos à posse e propriedade tem razão. Dessa forma, toda a sociedade se coloca em uma posição de confronto permanente, com cada classe erguendo suas bandeiras e suas indignações.
Essa contraposição é gênese de um mal que insistimos em não reconhecer como originário de nossa propensão à exclusão social: um sistema carcerário no qual podemos incluir qualquer qualificativo, menos o fato de ser eficiente. Também aqui temos uma visão dual e indefinida: não sabemos se queremos punir ou recuperar. Uma das tendências que dificilmente vemos ser assumida em público, mas que bombam nas redes sociais, é de ampliar o escopo punitivo, fazendo-se cumprir penas mais rigorosas, com um processo legal mais ágil e com menos benesses aos detentos. É a pena imputada como castigo e vingança – uma posição legítima como qualquer outra, desde que racionalmente defendida, o que é incomum. É mais corriqueiro vermos aqueles ambíguos arroubos de defesa da violência para combate da violência. Isto está na raiz das reações humanas porque a insegurança lida diretamente com nossa psique, perturbando-a. E isso gera indignações fáceis e mentirosas, como aquela que está famosinha no Facebook, que diz que todos os presos têm direito a uma bolsa de algo em torno de R$ 800,00 por filho (o valor varia). A informação é completamente falsa, mas como o ódio e o medo das pessoas está à flor da pele, elas replicam estupidamente essa mentira, sem se preocupar minimamente em conferir a sua veracidade, o que pode ser feito em segundos, nestes tempos de internet (veja este folheto do Ministério da Previdência explicando sucintamente como funciona o auxílio-reclusão – só os presos segurados têm direito, sendo que o cálculo do benefício é baseado no seu salário e possui um teto, que será dividido entre TODOS os seus dependentes).

Por outro lado, temos um discurso mais público, de que as instituições penitenciárias devem promover a reeducação e recuperação dos encarcerados. As condições sociais desfavoráveis acabam por empurrar o cidadão para o crime, e ele acaba não se tornando o único responsável por sua condição; por isso devem ser propiciados a ele mecanismos de reinserção, como a aprendizagem de um ofício, a paulatina redução de suas penas de acordo com seu progresso e et cetera. O busílis é que, aqui também, a sociedade e seus representantes eleitos não conseguem definir um rumo adequado, e com isso as penitenciárias são um misto de indutores da inutilidade e quarteis generais do crime organizado, como tão bem temos visto nos noticiários. O norte dado ao judiciário é desanimador, as leis são dúbias e já nascem com esse escopo. Fala-se muito: a polícia prende e a justiça solta. É fato, mas essa é a lei. A lei permite isso. A culpa não é nem da polícia, nem do judiciário. Penso que uma das piores causas do não arrefecimento da violência no Brasil está justamente no fato de que as regras penais não são claras, e isso permite que grandes criminosos estejam soltos, enquanto ladrões de galinha, que deveriam cumprir penas alternativas, sejam presos por bagatelas.

No final das contas, quem defende a maioridade penal aos 16 anos nada mais faz do que empurrar mais um contingente para esse sistema, sem solucionar o problema. Antes de se pensar nisso, é preciso ter um pensamento de duas vertentes:
- Evitar que as pessoas cheguem ao crime, e a chave disso é a presença do poder público onde ele é mais necessário;

- Para as pessoas que praticaram crimes, garantir que CUMPRAM penas, que conheçam com exatidão sua cominação e que os presídios sejam entidades de recuperação e integração.
Por estes motivos todos, penso em algo ousado: os órgãos judiciários devem ser providos de recursos (não apenas financeiros, mas de dispositivos legais) que se permita pensar em uma ação transformadora sobre o sujeito passivo em um processo penal. Que sejam disponibilizados assistentes sociais em número suficiente para descrever o ambiente em que vive o réu, suas dificuldades e limitações. O mesmo se aplique a psicólogos, para traçar perfis adequados, as angústias e expectativas dos detentos. Que sejam detectadas, através de especialistas vocacionais, as aptidões e conhecimentos dos acusados, para que o juiz possa decidir qual a instituição mais adequada a cada perfil. Que a educação profissional não se limite a “costura de bolas”, mas se volte à efetiva formação do detento. Que se formem convênios com empresas, se necessário através da concessão de incentivos fiscais, para que os ex-detentos tenham acesso a emprego, e que o juiz tenha suporte para decidir qual é a melhor para seu encaminhamento. Que os professores possam trabalhar com pequenos grupos e possam relatar ao juiz sobre o desempenho e comportamento dos recuperandos. É preciso, portanto, que se abandone a generalização e se possa investigar o indivíduo. Afinal, nosso sistema social é efetivamente voltado para o indivíduo. Se isso for obtido, provavelmente não precisaremos da arbitrariedade de uma idade penal preestabelecida, porque será possível, com maior precisão, identificar a penalidade necessária (e se é necessária), e com isso termina essa inútil discussão sobre qual a idade ideal para as imputações penais. Custa caro, mas vale a pena, podem ter certeza. Não vivemos reclamando que o gasto público é mal dirigido?
Recomendação de leitura:
Jean Piaget elaborou uma teoria educacional que é seguida por inúmeras escolas hoje em dia (muitas delas apenas no nome). É muito interessante para aquele que se interessa por educação dar uma boa lida em sua obra, em especial na seguinte:

PIAGET, Jean. A epistemologia genética. Petrópolis: Vozes, 1971.

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