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Estamos no fim do ano e rola, incessantemente, uma tradição que se consolida cada vez com mais força em terras tupiniquins. Não se trata do franciscano presépio, do importado Papai Noel, da mística romã, da saborosa lentilha, dos atléticos sete saltos das ondas, nem da brancura Omo das roupas de reveillon. Também não é o extemporâneo show do Roberto Carlos, nem as retrospectivas mais-do-mesmo. São os bolões da Mega-sena da Virada.
Eu, assim como todos meus irmãos proletários, que não sou de ferro, também desperdiço meus oprimidos proventos nas improbabilidades estatísticas promovidas pela Caixa Econômica Federal, para locupletar os cofres públicos e os dois ou três felizardos (quem sabe eu!) contemplados pela sorte. Entrei em três: um com o pessoal do trampo (R$ 25,00), outro com uma galera que presta serviços para nós (entrei de metido - mais R$ 25,00) e um mais arrojado - leia-se caro - com os esperançosos vizinhos de condomínio, e, neste caso, morreram 90 dilmas. A meninada já queria fazer um amplo estudo sobre o histórico dos números sorteados, com um histograma explicitando quais foram aqueles por mais e por menos vezes contemplados. Afinal de contas, quanto menos uma bolinha tenha saído do globo da sorte, tanto maior sua chance de ser sorteada agora, não é mesmo? Pó pará.
Esse erro de raciocínio é prá lá de comum, e vou explicá-lo de maneira mais simples e clássica. Pensemos em um jogo qualquer, onde apenas duas alternativas são possíveis, como um prosaico par-ou-ímpar. Logo de cara, vamos descartar as possíveis traquinagens dos jogadores, que não "escalarão" seus dedos. Será que ainda se usa esse termo?
Quais são as possibilidades de dar par ou ímpar a cada jogada? Pela quantidade de hipóteses disponíveis, são 50% para cada lado. Digamos que eu tenha me amarrado ao ímpar e que tenha feito cinco jogadas até agora, e todas resultaram na minha escolha, para nossa alegria. Na sexta jogada, parece existir uma tendência a sair um resultado par, e que essa tendência vai aumentar na medida em que passarem as rodadas e seus resultados insistirem em se repetir. É exatamente aí que está o engodo: a lógica da primeira rodada é exatamente igual à da sexta, da sétima e de qualquer outra - 50% de chances para cada lado. Nós tentamos prever um resultado futuro em função do resultado anterior, o que não é real. Não há mudanças na probabilidade atual por conta de resultados já ocorridos, simplesmente isso.
Isso, por extensão, também se aplica aos jogos de loto promovidos pela Caixa. Se o número 01 foi sorteado no concurso da Mega-sena anterior, sua probabilidade de ser sorteado no atual é exatamente a mesma, ou seja, 1:60. Todos os sessenta números tem a mesmíssima possibilidade de serem sorteados, salvo se pensarmos em fraudes no sistema, o que não é o caso agora. Digo mais. Se o resultado final for o incrível 01-02-03-04-05-06, provavelmente clamaremos aos céus contra a desonestidade do governo, que lesa seus cidadãos em qualquer oportunidade que encontra.
Ok, sabemos que o governo está cheio de gente inepta e de rapinadores, mas se você disser que isso está explícito na sequência acima, falará uma imensa e suculenta abobrinha, porque a probabilidade de que ela ocorra é EXATAMENTE a mesma de qualquer outro resultado. Compreendido?
Há uma forma correlata deste erro de raciocínio, que prima pelo sentido oposto. Enquanto até agora verificamos casos em que a ocorrência comum de um fato nos induz a pensar que ele não terá vida longa - mais dia, menos dia o par terá que sair - em outro modelo achamos que haverá uma persistência no acontecimento. Essa crença é igualmente errônea. É a chamada falácia da mão quente, e existe uma explanação para explicar seu surgimento. Vamos a ela.
Mãos "quentes" sugerem persistência. Mas isso é um engano |
Vocês sabem que os estadunidenses são apaixonados por basquete, correto? As ligas amadoras e profissionais, em especial a conhecidíssima NBA, são extremamente populares, lotando seus ginásios por onde passam e multiplicando a audiência televisiva a números invejáveis. Eles discutem basquete na mesma proporção (ou até mais) do que debatemos futebol, e com igual paixão. Tanto interesse acaba por criar um jargão todo próprio. No nosso caso futebolístico, há uma série de termos próprios, como "dar um lençol", "bater de três dedos", "goleiro mão-de-pau" e tantos outros. Não é de espantar que o fenômeno se repita nos EUA e com o basquete. Quando um jogador está com um percentual altíssimo de acertos em seus arremessos, diz-se que ele está com a mão quente (hot hand, no idioma local). Forma-se um raciocínio de tendência, passando-se a acreditar que tal atleta fará cada vez mais acertos.
O problema não está em achar que o jogador está acertando seus lances porque está em excelente fase técnica, mas porque há uma probabilidade matemática de que eles continuem ocorrendo simplesmente por conta de sua tendência em acertar. Sua precisão está vinculada à sua habilidade, e não à sorte ou alguma outra causa transcendente. Essa atribuição de sobrenaturalidade à mão quente faz com que ela seja deslocada também para jogos de azar, onde a habilidade conta menos. E, com isso, para um apostador de roleta ou de poker que esteja ganhando suas apostas, também é atribuído o raciocínio da mão quente.
É possível perceber quando o argumento da mão quente é falacioso? Quando nenhum influenciador externo, como preparo físico, quantidade de treinos, qualidade de equipamento ou outra coisa qualquer existir, podemos dizer que a mão quente é falaciosa. No sentido contrário, não há nada de anormal - há um fator que justifica essa boa capacidade de acerto. Não há apenas o acaso para decidir o futuro.
E esse tipo de falácia, evidentemente, não está presente apenas e tão-somente nos esportes e jogos de azar. Imagine-se um pretenso vidente que acerta três características suas em uma consulta. Já se pensa imediatamente que ele terá a possibilidade de acertar a quarta, a quinta e a sexta, tornando-se para você uma espécie de deidade, cuja palavra é uma forma de lei sagrada - não se explica, só se acredita. Oportunamente, vou preparar um texto sobre leitura fria, e essas técnicas poderão ser melhor compreendidas. Mas, por enquanto, é suficiente para entender que é preciso saber o que pertence ao todo e o que pertence à parte, e os cuidados que devemos tomar para não cair nas armadilhas das estatísticas e da linguagem.
Recomendação de filme:
Não é bem pela falácia, mas pelo tema abordado e pela maravilhosa sequência final. A recomendação da vez vai para o filme "Golpe de Mestre", repleto de bons atores, como Robert Redford, Paul Newman e Robert Shaw. Boa parte do enredo se desenvolve em um cassino, onde tensos jogos ajudam a explicar o nome do filme. O mundo das apostas nunca pode ser explicado sem a irracionalidade. Vale a pena assistir, independentemente de seus mais de 40 anos de filmagem.
HILL, George R. Um golpe de mestre. Filme. Estados Unidos, 1973. Colorido. 129 min.
Agradeço à Renata por me deixar tocar fogo em sua mão.
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