Você já arrancou o tampão do dedo logo após um gato preto
cruzar à sua frente? Seu time perdeu logo depois de você passar por debaixo da
escada? Sua namorada te aplicou um cartão vermelho depois que você perdeu seu
pé de coelho? Não, meu caro, isso não é azar. É você tentando aplicar a falácia
post hoc ergo propter hoc às
circunstâncias de sua vida.
Quebrar espelhos dão azar especialmente quando os cacos te cortam |
Esta falácia também é conhecida pelos nomes de “correlação
de coincidência” e “falsa causalidade”, e acontece quando temos uma falsa relação
de causa e consequência. Acontece quando amarramos uma causa a um efeito apenas e tão-somente porque uma acontece antes da outra. Sabe, né? Passarinho voando baixo traz chuva. Não, não e não. Pássaros voam baixo porque seu alimento, os insetos, são empurrados para perto do solo quando as correntes de ar que antecedem as chuvas se aproximam. Como não é fácil perceber isso logo de cara, acha-se que os pobres alados são capazes de arrastar as pesadas nuvens.
A falácia do post hoc ergo propter hoc (depois de tal coisa, portanto por causa de tal coisa) é tremendamente utilizada na formação de superstições, como já expus neste texto, em que tento imaginar a criação do mito do espelho quebrado. Mas não se limita somente às superstições, mas à formação de discriminações. Só para ilustrar, vou dar um exemplinho rápido.
Nos idos dos séculos XIX, no âmbito do positivismo e do cientificismo mais exacerbado, surgiu uma pretensa ciência denominada “frenologia”. Esta disciplina procurava estudar e vincular o comportamento humano através de suas características físicas. Trocando em miúdos, através da aparência de uma pessoa, a frenologia julgava-se capaz de identificar se o mesmo tinha tendências a ser um psicopata, um desonesto, um mentiroso e outras coisas do gênero. Isso era uma arma e tanto na mão de quem queria atribuir a um determinado grupo étnico uma maior tendência à criminalidade, e, desta forma, legitimar formas mais agressivas de vigilância. Não é preciso nem dizer quem era a vítima principal, não é mesmo? E por causa de uma teoria sem comprovações, mas que procurava se travestir de uma estrutura lógica convincente, muitas ideias eugênicas foram surgindo, até culminar no nazismo e no holocausto.
Nisso tudo podemos enxergar não só uma falácia, mas uma estrutura post hoc: por causa da forma da cabeça, fulano tem tais características de comportamento; em etnias que possuem essa característica, todos seus membros tem essa mesma peculiaridade. E isso é reduzir toda a complexidade do caráter humano à sua cara.
Conclusão: mesmo com a total inexistência de vínculo lógico entre dois fatos consequentes, é atribuído a um o estatuto de efeito do outro, anterior a ele.
Às vezes é muito difícil notar uma discrepância entre causa e consequência. Para percebemos como essa falácia é uma profícua geradora de armadilhas, vamos estudar uma tese científica que foi considerada válida por muito tempo. É a teoria de evolução de Jean Baptiste de Lamarck.
Lamarck foi um dos primeiros cientistas a perceber que as espécies, de alguma forma, sofriam um processo evolutivo. Para ele, os organismos vivos mais simples, como as bactérias e protozoários, surgiam de forma espontânea a partir de matéria bruta, e que, de acordo com o ambiente em que viviam, eram levados a transformações que os adaptavam e traziam melhoramentos, de modo a torná-los cada vez mais complexos. Estas adaptações eram conduzidas, principalmente, por variações ambientais, que podiam fazer com que os organismos passassem a contar com novas funções ou extinguir as desnecessárias, naquilo que ficou conhecido como “lei do uso e desuso”.
O mais clássico exemplo desta lei é o que leva em conta o estranho tamanho dos pescoços das girafas. Lamarck usava sua tese para explicar que, ao procurar os brotos mais tenros no alto das árvores, as girafas – que em tese possuíam ancestrais de pescoço mais humilde – passaram a se esticar cada vez mais. Como esse esforço produzia um alongamento dos pescoços, e este alongamento era hereditário, as girafas passaram a ficar cada vez mais altas, de geração a geração.
Post hoc, ergo propter hoc. Após o esforço para alcançar as folhas mais altas, portanto por causa do esforço para alcançar as folhas mais altas. A seleção natural de Darwin derrubou a tese da natureza adaptativa, mas é uma ideia bastante convincente, e que perdurou por muito tempo. Lógico que os argumentos de Lamarck não podem ser considerados pura e simplesmente falaciosos, porque eram extremamente coerentes, mas havia o defeito de não se ater a provas científicas suficientes, como as teses darwinianas fizeram. O ambiente não cria as funções nos organismos, mas seleciona aqueles melhor adaptados.
O post hoc também pode ser negativo. Como exemplo, cito uma viralização que tem a ver com a falta d’água recente que vem ocorrendo em São Paulo neste ano. A frase diz o seguinte: “Toda vez que a gente ia no Playcenter, chovia. Aí, fecharam o Playcenter”.
(Explicação rápida para quem não mora em São Paulo – o Playcenter era o maior parque de diversões da cidade, onde se passava o dia inteiro, e quase todas as atrações eram a céu aberto – se dependessem de mim, morreriam de fome, porque eu nunca achei legal pagar para sofrer).
Neste caso, a relação de causa e efeito – irônica... que fique bem claro – está no fato de que não chove mais porque não há mais Playcenter. Alguma estranha divindade nega-se a soltar os pingos porque não há mais como estragar o dia de ninguém.
Uma variação desta falácia é conhecida como cum hoc ergo propter hoc – com tal coisa, portanto por causa de tal coisa. Neste caso, a relação de causa e consequência não se dá pela sequência dos fatos, mas por sua simultaneidade. E é facilmente identificável na utilização de talismãs e amuletos.
Eu sempre achei que fossem sinônimos, mas há uma diferença sutil. Enquanto o talismã é utilizado para atrair boa sorte, o amuleto é um objeto que se usa para afastar má sorte. Mas em ambos os casos o cum hoc funciona de maneira idêntica: se estou com um pé de coelho (talismã clássico), então a promoção que tive no emprego ocorreu por conta deste porte; se estou com uma figa da Índia (amuleto clássico), então o ladrão não me assaltou, como fez com o rapaz que estava passando pela mesma rua. Perceba que essa correlação é absolutamente ilógica: no primeiro caso, minha promoção se deve à minha eficiência, à minha antiguidade no emprego, ao meu parentesco com algum diretor, à pressão que exerci para permanecer no emprego – não à posse do pé de coelho. Da mesma forma, o ladrão não me assaltou porque eu estava mal vestido, porque pareço ser mais forte, porque estava mais longe do que o infeliz que foi efetivamente assaltado, porque o punguista não me viu primeiro – e não à presença do amuleto (que, se fosse de ouro, poderia mudar a opinião do fora-da-lei).
É preciso ter cuidado com o outro lado, e não produzir exageros, enxergando falsas causalidades em tudo. É necessário sempre ponderar de maneira aberta e adequada. Nem sempre a associação de uma causa e uma consequência é falaciosa, isso é óbvio. Quando dizemos que os avanços da tecnologia geram desemprego, temos uma verdade, ainda que parcial. De fato, ao utilizar máquinas para produzir algo que antes era feito por mãos humanas, temos a tendência a precisar cada vez menos de pessoas no trabalho. Mas olhem só: isso, por si só, não explica totalmente uma onda de desemprego, já que os trabalhadores podem se adaptar a outras atribuições, pode existir influência econômica, pode-se estar em tempo de guerra, e assim por diante. A ferramenta a ser utilizada aqui novamente é a lógica e o bom senso.
Recomendação de leitura:
Para que a literatura nos traga um exemplo de como um amuleto pode ser importante na vida de uma pessoa (e no desenrolar dos enredos, claro), trago a vocês a recomendação de uma das principais obras do modernismo brasileiro, onde são descritas as agruras do anti-herói Macunaíma na reconquista do Muiraquitã, um amuleto dado de presente por Ci, a mãe do mato e sua falecida esposa, e que foi roubado pelo gigante Piaimã, comedor de gente.
ANDRADE, Mario. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte: Vila Rica, 1997.
Agradeço à Darci (meu anjinho, minha parceira) pelo empréstimo da mão e pelo obséquio de sangrar seu dedo para produzir a foto deste texto.
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