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segunda-feira, 27 de maio de 2024

Navegações de cabotagem – a Estação Ferroviária de Tremembé e o fim da filosofia

(Se tudo acaba, por que a Filosofia não deveria acabar? Mas ela não termina sem que tudo o mais termine)

“História não é nada senão Filosofia, e esses nomes poderiam ser totalmente trocados”

Schlegel

 

Olá!

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Eu corro atrás de cafés, como já falei inúmeras vezes por aqui. Isso inclui não somente a Paulicéia Desvairada, mas os lugares para onde viajo e as paragens onde meus filhos moram: Curitiba, o moleque mais velho; Taubaté, a menina mais nova. Nesta última, já dominei todos os estabelecimentos onde se serve o produto da rubiácea, e há alguns muito bons. Só que eles não são tantos, e a síndrome ectodemomaníaca me impulsiona para as cidades ao redor da metrópole taubateana, Tremembé inclusa.

Certa feita, numa tarde de domingo, pesquisei uma casa que, em tese, produziria o café mais bem votado da região, e, pelas indicações, estava sempre aberto, prontinho para nos receber. Bem, estava fechado. Tinha um sol na tampa da cabeça de cada contribuinte, e o impulso inicial foi de pegar a mesma estrada de volta. Mas fomos dar uma volta, para achar uma água de coco ou coisa parecida. Achamos, no final das contas, a antiga estação ferroviária da cidade. Não custa dar uma olhada.

Criada para escoar a produção de arroz dos terrenos alagadiços da base da Mantiqueira, a estação foi construída por monges trapistas para se coligar ao eixo principal da ferrovia Central do Brasil, que ligava os dois principais polos consumidores brasileiros, Rio e São Paulo.

Com o advento da multiplicação das rodovias, as linhas de ferro foram ficando mais e mais de lado, sendo que somente o ramal principal ainda funciona nessa região, com exclusivo transporte de carga.

Os artigos ferroviários viraram artigos de museu desde então, e as marias-fumaça são lembradas com saudades por seus antigos usuários, como já vi em tantos lugares, mas não mais como equipamentos de uso, mas como pitorescos recursos turísticos.

Este modelo tem origem suíça, e foi cedido pela prefeitura de Taubaté para enriquecer o acervo deste pequeno empreendimento. Antigamente, ficava no Parque do Vale do Itaim, e foi transferida para a estação para torná-la um cartão postal.

A administração permite que a locomotiva seja visitada, para que se note como o duplo trabalho de “pilotar” e manter o funcionamento era árduo, principalmente pelas altas temperaturas que eram atingidas.


Se comparadas aos atuais equipamentos do metrô, por exemplo, as antigas composições eram tão rústicas que se exigia tão ou mais força física do que habilidade técnica.

O vagão de madeira também podia ser visitado até pouco tempo atrás. Entretanto, diversos atos de vandalismo obrigaram a administração a mantê-lo fechado, infelizmente.

Tratava-se de um equipamento de primeira classe para essa linha, que, mesmo assim, era de padrão popular, pelos bancos de madeiras sem estofamento.

Assim como o tempo passa, passa também a realidade de um determinado momento. Ainda que a linha férrea de Tremembé não tivesse sido desativada, ela não seria a mesma. As composições a vapor não são mais utilizáveis, tirante a motivação turística, e a gare já não seria igual, tivéssemos trens a óleo ou a energia elétrica. Por isso, não adianta se lamentar pelo monumento que hoje resta, porque essa é a única forma de ele ainda existir como era: uma homenagem ao passado.

As coisas têm fim - esse é o fato. Se pensamos em uma linha reta, tem o momento em que o abismo chega; se pensamos em ciclos, eles se renovam com muitas diferenças, mas, no fim das contas, ainda que comece outro, um clico também acaba. As estações acabam, como acaba um namoro, como acaba um emprego, como acaba a saúde, como acaba a vida. Acabam as ideias, acabam as espécies, acabam as sociedades e, em um dia meio descuidado, já provavelmente sem nossa presença, acabará o planetinha azul que boia em um mar de vácuo. Se tudo isso acaba, será que a filosofia um dia acabará?

Desde já, vamos colocar o óbvio. Sendo uma atividade exclusivamente humana, o pensamento morre se a espécie morrer. Sendo assim, não vou considerar meteoros ou vírus conspiratórios, e não é sobre isso que eu quero dissertar.

O que poderiam ser motivadores do fim de uma atividade humana? De cara, pensamos na sua obsolescência. Nós não usamos mais máquinas de escrever porque os computadores as superaram com muitas vantagens. Isso se aplica a inúmeras coisas, passando por trens a vapor e, talvez, filosofia. Nos seus primórdios, a filosofia tinha todo um universo a explorar, assim como se fosse uma nave espacial partindo pelo espaço sideral do conhecimento. A diferença fundamental é a ausência da tal nave, ou seja, do instrumental necessário para explorar esse mesmo universo. A comparação com a nave é de todo cabida, porque as primeiras preocupações filosóficas que existiram na antiga Grécia eram altamente imbricadas com a ciência, tanto que os primeiros pensadores eram conhecidos como filósofos da physis, justamente por estarem preocupados com a arché, o componente fundamental de toda a realidade. Essa busca pela essência, é bem verdade, não excluía um componente metafísico, mas sempre voltava seu olhar para os tijolinhos que constituíam a realidade em si mesma, fosse ela constituída por pedrinhas, fosse constituída pelo bafo dos deuses. Terra, fogo, água e ar, todos juntos ou separados, foram pesquisados mentalmente, a única ferramenta disponível, que funciona até hoje como geratriz de ideias. Sendo assim, o olhar cosmológico desses filósofos já vinha colado com a ciência, mas esse era ainda um sonho distante, um espírito da curiosidade e da descoberta, e não uma área que se servisse de instrumentos e anotações. A lógica era o substrato do pensamento, e não as experiências metódicas.

É bem evidente que esse caminho foi ficando para trás, já poucos séculos depois, mas mormente nos dias atuais, quando o filosofar já cessa nos primeiros movimentos que delineiam um ato empírico, mesmo que não seja factível naquele momento. Explicando: quando alguém pensa no multiverso, está devaneando. Quando coloca em princípios lógicos, passa a filosofar. Ao propor modos de experienciá-lo, já aí estamos no âmbito científico. Demócrito falou da realidade feita de átomos, e isso ficou aguardando mais de dois milênios para ganhar contorno experimental. Hoje, eu filosofo qualquer novidade e a coisa já entra no laboratório. Digamos que uma prova do multiverso seria a possibilidade de medir diferentes acelerações da gravidade em diferentes pontos do universo. Isso ainda hoje não é possível de fazer, mas o caminho para provar (e para falsear) já está dado; não temos mais filosofia, temos ciência.

Outra abordagem que podemos seguir é a ausência do surgimento de grandes sistemas filosóficos, que abranjam diversas áreas do conhecimento e interajam entre si. Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Kant e Hegel são bons exemplos de filósofos que procuraram desvendar amplos espectros do conhecimento, de modo a instituir sistemáticas completas de pensar. Falaram de tudo, desde aspectos metafísicos até estéticos, passando por epistemologia e amplas discussões éticas, com seus vários desdobramentos. 

Quais seriam então as grandes novidades da filosofia? Tudo o que veio pelo ramal de Hegel foram as críticas ao seu sistema, como Marx, Bauer, Schopenhauer e Nietzsche. O que veio após Kant foram aperfeiçoamentos, mesmo que compusessem grandes correntes, como a fenomenologia. Até mesmo a filosofia da religião não é novidade, porque são remoçamentos da escolástica ou, no máximo, adaptações do marxismo, como é o caso da teologia da libertação.

Por fim, tem aquela velha pergunta que coloca a filosofia como encerrada antes mesmo de começar, morrendo sem nascer: filosofia para quê? Em um mundo onde cada vez mais estamos impregnados de técnica, cada vez menos a via da explicação vem pela especulação pura. “A filosofia é o conhecimento com o qual e sem o qual o mundo fica tal e qual” é um gracejo já antigo, mas que muitas vezes parece fazer sentido. O saber filosófico tem aspectos totalizantes - a ideia de essência busca trazer o que há de comum em todos os elementos de um determinado objeto, ou busca um aspecto crítico e problematizador de itens morais. Não naquele aspecto do ético, mas descendo ao nível de se perguntar o que é a própria ética, para dar um exemplo. Mas o que nós temos se distancia tanto desse nível de profundidade que nada muda, no meu ato de escutar uma música, saber se ela pertence à escola estética X ou Y, se versa sobre aspectos metafísicos tais e tais, se tende ao pensamento de fulano ou sicrano. Tudo o que me basta é que a música me agrade. Punto, finito. A sensação que dá é que a filosofia é um empreendimento superado, mesmo que não seja impossível de continuar existindo. Não tem mais nada a dizer, mais nada que não possa ser mais bem esclarecido por outras vias.

Na verdade, eu naveguei, naveguei e criei o problema apenas por me afastar do conceito fundamental da filosofia. Notem que toda essa discussão sobre fim da filosofia, todo esse debate sobre superação da filosofia e sobre como os novos temas que não mais surgem, nada mais são do que filosofar.

Só não dá para dizer que filosofamos a cada instante porque dividimos nosso pensamento com o senso comum. Claro: se não tivéssemos um pensamento irreflexivo, mais próximo de gabaritos pré-prontos, provavelmente não existiríamos como espécie. Mas mesmo o mais bronco dos contribuintes tem algum momento em que se põe a refletir. Como raciocinar é inerente ao ser humano, filosofar também é.

O que nos leva a filosofar é a realidade circunstante. E essa realidade é moldada pelo tempo, não só cronológico, mas aquela espécie de tempo espiritual que Hegel deu o nome de Zeitgeist. Esse espírito do tempo (dado pela interação entre a realidade vivida e o ambiente que nos cerca). A realidade não é só o mundo palpável, mas o que as nossas consciências projetam sobre ele. A maneira como tudo isso acontece é o que chamamos de História. Não só vivemos a história, mas pensamos a história, damos sentido a ela e a influenciamos. Só percebemos isso quando paramos para pensar.

Assim, a verdade é que a filosofia se confunde com a própria história, conforme dizia o poeta filosófico (ou seria filósofo poético?) Friedrich Schlegel, que, de tão pouco se filosofar sobre a própria filosofia, pouco se sabe sobre ela mesma. É impossível estabelecer limites sobre a interação do que vivemos com o que pensamos. É costume dizer que a filosofia ocidental principia com Tales de Mileto, mas isso é uma mera convenção. É evidente que se praticava pensamento filosófico não somente antes de Tales, mas também em outros lugares que não eram a Magna Grécia. Isso se aplica a qualquer momento, em qualquer lugar. A filosofia se entrelaça com a história porque sempre há lógica e intenções por trás da ação humana. A grande diferença está no objeto: a história desenrola os fatos; a filosofia, as reflexões. Como essas reflexões são sobre os fatos, eis que ambos se imiscuem de maneira quase apaixonada. Parafraseando Renato Russo, uma completa a outra e vice-versa, que nem feijão com arroz. Isso porque, novamente, não há como dissociar a história dos homens, e não há como dissociar os homens de suas reflexões. Sempre, enquanto houver história, haverá filosofia.

Em adição, quando comparamos filosofia e ciência, cometemos um erro categorial. Nós subimos muito um sarrafo que a filosofia não precisa saltar, que é a barreira da prova. É fundamentalmente a mesma coisa que acontece quando se tenta cientificizar uma religião. O escopo dessa última não é (ou não deveria ser) provar a existência de um deus, mas de fornecer subsídios para a manutenção de uma fé. Com a filosofia é parecido. Ela busca substratos de realidade que vão além do mundo tangível. A filosofia não precisa ficar adstrita a isso, porque ela prescinde de provas. Sua matéria-prima é o pensamento racional, o raciocínio bem concatenado, a lógica, e por isso é chamada de mãe do conhecimento.

Isso tudo posto, é bobagem pensar em um fim da filosofia, porque nem mesmo o mais bronco dos homens das cavernar deixou de ter seus momentos de reflexividade. É disso que se alimenta e diferencia a espécie humana. A não ser que chegue o meteoro ou o vírus malvadão. Aí sim, a filosofia acaba. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Citei um autor interessante, que é muito dado a aforismos que misturam literatura com filosofia. Segue uma boa indicação.

SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos Críticos. In: O Dialeto dos Fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 2000.


Com relação à estação…

Estação Ferroviária de Tremembé

Rua Albuquerque Lins, 231

Bom Jesus

Tremembé/SP 

A aproximadamente 140km do centro de São Paulo 

terça-feira, 21 de maio de 2024

Navegações de cabotagem – a Casa Gomm e o confronto entre os filósofos britânicos e os demais europeus

(O que é a “batalha” entre os filósofos analíticos e continentais que sempre é apresentada nos livros de filosofia contemporânea?)

“O homem é um ser que se criou a si próprio ao criar uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si próprio”.

Octavio Paz

 

“… porque não existe 'A' filosofia, mas existem muitas filosofias, muitos modos e razões para dizer-se filósofos”.

Franca d’Agostini

Olá!

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O Bosque do Papa não é grande o suficiente para tomar um dia inteiro. Sim, eu estou ainda em Curitiba e continuo andando pela cidade. Aqui é um lugar muito interessante pelo seu ecletismo e que, de certa forma, guarda suas semelhanças com São Paulo. As vantagens são óbvias: organização e limpeza são modelares, pontos fragílimos da Terra da Garoa. Mas em termos de ter de tudo, parece a sua miniaturização. Muita comida, muito café, muitos eventos culturais, e, principalmente, muito lugar para visitar, mesmo sem os gigantismos paulistanos.

Curitiba tem sua porção de colonização inglesa, coisa que também ocorre em São Paulo. E que, da mesma forma, ocorreu de uma maneira diferente com relação aos trabalhadores braçais que vieram aos montes para povoar as fábricas e as roças. Aqui, os ingleses vieram menos com gente e mais com dinheiro, para fazer grandes negócios, e instalaram empresas de grande porte, como a Linhas Corrente ou Alpargatas, mas, principalmente, companhias de prestação de serviços públicos, notadamente a São Paulo Railway, a empresa ferroviária mais importante de São Paulo do século passado.

Em Curitiba não foi diferente. O vice-cônsul Harry Gomm era um empresário inglês que tinha negócios com erva-mate no Sul, e prosperou ainda mais na região. Ergueu residência em Curitiba, e se tornou símbolo da elite de outrora. É a Casa Gomm.

A casa em si é uma mansão totalmente feita de madeira, a última remanescente nesse estilo em Curitiba. Por ser feita nesse material, pode ser cambiada para este local, onde está fixada hoje. Aqui, está sediada a Coordenação do Patrimônio Cultural do Paraná e, por essa razão, as visitas públicas são limitadas.

O parque em si é bem pequenininho, pouco mais do que uma praça, praticamente integrando o espaço de um shopping que lhe é vizinho. Mesmo assim, ou até por isso, é um espaço bastante movimentado.


Para dar um ar mais britânico ao lugar, há algumas referências paisagísticas que são típicas daquele mundo, como este caramanchão em semicírculo.

Outra coisa é uma daquelas típicas cabines telefônicas fechadas, tão comuns nas ilhas britânicas. É original, obtida por doação da própria terra da rainha (ops, não mais).

O painel do paredão contém uma estilização da Union Jack, a famosa bandeira do Reino Unido que é a mescla das cruzes dos quatro países que o compõe: a cruz de Santo André (Escócia), a de São Patrício (Irlanda) e a de São Jorge (Inglaterra e Gales). Eu sei que a maioria das pessoas que vem aqui não precisa dessa explicação, mas é sempre bom lembrar que Reino Unido não é sinônimo de Inglaterra, ok?

O parque é também um pequeno espaço cultural que enaltece as artes britânicas. Essa casinha é uma reprodução da história de Peter Rabbit, de Beatrix Potter, que ficou famoso no Brasil por causa do desenho animado que retrata o coelho esperto e rebelde. Seu traço delicado é sua marca registrada, e é, sem dúvida, o canto favorito das crianças.

Na parede, pequeníssimas biografias de seus maiores expoentes artísticos: Shakespeare, Blake e os Beatles.

Não conheço muito a obra de William Blake, devo confessar a ignorância. Com relação aos outros dois, é justo o contrário. Do bardo, li praticamente tudo, atraído por uma coleção de peças que meu pai surpreendentemente comprou, numa dessas negociações tortuosas dos alcoólatras. Já com relação aos músicos de Liverpool, a coisa veio com o amadurecimento. Era aquela coisa: vestido na pele do roqueirinho de subúrbio, não admitia que aquela música divertidinha pudesse representar meus gostos.

A coisa mudou quando eu comecei a ouvir as músicas mais elaboradas, posteriores ao álbum Rubber Soul, que nem pareciam ser Beatles. Acho que a primeira que eu ouvi foi Strawberry Fields Forever. Eu me perguntei: isso é Beatles? Daí, foi uma sucessão: A Day in the Life, The Benefit Mister Kite, Come Togheter… até chegar em I Am the Walrus, quando eu pirei na batatinha e dei todo meu respeito aos Fab Four, inclusive para as músicas que antes eu desprezava.

É legal ver essas transformações que se aproximam de uma catarse. Testemunhei meu moleque mais velho sofrendo o mesmo fenômeno quando ouviu pela primeira vez a música Hocus Pocus, dos holandeses do Focus. A princípio uma música engraçada, inconfundível pelo canto no estilo yodel, com o tempo e com a audição mais acurada, vai se tomando pé da complexidade da peça, e isso ficou evidente no menino de seus doze ou treze anos. Das risadas, foi se ganhando um silêncio e olhos arregalados, até chegar a exclamação final: “O que esses caras fizeram aí?”. É uma espécie de deslumbramento misturado com surpresa, e produz esse tipo de sensação.

Mas voltando ao Reino Unido, notei que não tinha nenhum filósofo sendo contemplado nos muros do parque, ao contrário do que temos na Torre dos Filósofos do Bosque Alemão. Será que os filósofos ilhéus não produziram nada de digno a ser reverenciado? Nada disso, tem muita gente boa por lá. Roger Bacon, Guilherme de Ockham, Harold Osborne, Thomas Hobbes, Adam Smith, John Locke, David Hume, Thomas Morus, Michael Oakeshott, G. E. Moore, Gilbert Ryle e Bertrand Russell são apenas alguns dos pensadores que já citei por aqui e que são nativos das Ilhas Britânicas, sem prejuízo de que Shakespeare, Blake e até mesmo Beatles terem produzido material que se pode considerar filosófico. Sendo assim, podemos fazer fortes remissões à filosofia britânica, e eu gostaria de trazer para vocês um debate razoavelmente recente, que poderíamos colocar como um dos Fla-Flus filosóficos mais importantes, expressado pela contraposição entre o Reino Unido e o restante da Europa, que é o embate analíticos vs. continentais.

Algumas balizas, para começar a conversar. Os assim chamados filósofos continentais só tem esse nome porque os analíticos quiseram meio que se isolar, e todo mundo que não fosse anglófono era continental, principalmente franceses e alemães. Isso denota também com quem os analíticos eram mais inclusivos: não só britânicos, mas estadunidenses, canadenses e australianos eram os mais frequentes nesse universo. Isso significava que outras nacionalidades estivessem proibidas de pisar em solo analítico? Absolutamente não. É só uma questão de frequência. Já com relação ao termo “analíticos”, não seria uma arrogância reservar um termo que, no final das contas, pode ser aplicado a toda Filosofia? Afinal, a análise de um objeto é a atividade filosófica por excelência. É que o princípio dessa corrente se deu nas universidades inglesas de Oxford e de Cambridge, que tinha a revista Analysis como seu órgão de divulgação, o que acabou emprestando seu nome para a linha de pensamento.

A questão começa com a ampla evolução científica que teve lugar até o século XIX. O mundo virou de ponta-cabeça e, se hoje nos surpreendemos com as novidades, imaginem o que foi aprender como dominar a eletricidade, utilizar medicamentos sintéticos, tomar vacinas que preveniam doenças que matavam milhões de pessoas, mandar mensagens telegráficas através do mundo e se comunicar em segundos, refinar petróleo e utilizá-lo como combustível… Os impactos eram imensos, e todo esse progresso estava vinculado à ciência e sua consequência prática, a tecnologia. Isso fez com que a filosofia olhasse para si própria e percebesse o quanto a sua filha mais ilustre estava grande e, principalmente, o quanto estava ficando cada vez mais distante de sua antiga matriz. Sendo assim, os pensadores desse mesmo momento histórico perceberam que era necessário se reaproximar da ciência. A especulação filosófica clássica, com abordagens distantes do âmbito concreto, ameaçava colocá-la na obsolescência. A metafísica, por exemplo, precisou passar por uma intensa transformação e se transformar em ontologia para continuar fazendo algum sentido. A pesquisa epistemológica começa a se basear em estruturas matemáticas e lógicas, enquanto o sujeito vai ganhando importância mais centralizada no processo do conhecimento. Essa reaproximação, como seria de se esperar, foi feita por mais de um caminho. E aqui vai começar a divisão entre analíticos e continentais.

Os filósofos analíticos achavam que a aproximação com a ciência deveria ser dada com a chave da lógica, em uma espécie de matematização do pensamento. Bebem na fonte de Frege para elaborar regras que normatizem a expressão de ideias, que, no limite, são traduzidas em linguagem. Por este motivo, o grande objeto de estudo dos analíticos é a linguagem e seus usos. Eles discutem especialmente a capacidade da linguagem em expressar a realidade e as armadilhas que sua utilização traz para a perfeita compreensão do mundo. Em suma, é preciso verificar como a linguagem pode desvirtuar a lógica e trazer uma realidade que, no limite, não existe. A riqueza dos analíticos, entretanto, não está em separar o joio do trigo para queimá-lo em uma fogueira, muito pelo contrário. Sua principal tarefa é desvendar a lógica mental que está por trás das expressões, mesmo as corriqueiras, porque é através delas que conseguimos deduzir o que se passa em uma mente; a linguagem é o espelho do que se pensa. Desta forma, frases como “Estou com sede” e “Juro que estou com sede” dizem exatamente a mesma coisa do ponto de vista indicativo: tenho sede. Mas a segunda forma carrega uma função a mais, desempenhativa. Isso significa que jurar que se tem sede adiciona uma expressividade de reversão de uma mentira, por exemplo. Preciso jurar que tenho sede porque posso ter usado essa expressão como desculpa para sair de uma situação embaraçosa, por exemplo. E é com carga linguística que modifico a expressividade. 

Os continentais, por outro lado, se aproximam da ciência pelo lado do âmbito psicológico. A fenomenologia de Husserl inaugura uma abordagem metodológica que traz a consciência daquele que interage com o objeto para o centro da pesquisa, e, dessa forma, percebe-se como o fator humano, cristalizado no indivíduo que se põe na relação, se torna muito mais presente.

A multiplicação do nível de subjetividade é uma das principais características da filosofia continental. Isso já dá uma ideia do quanto é mais distante da objetividade fria da escola analítica. A linguagem é, dentre outros, um ato humano, e não um emaranhado de sentenças lógicas. O psicologismo e a visão pessoal do mundo são suas características mais genéricas, sempre lembrando que estamos falando de um conjunto de pensadores que pouco tem de coincidentes, mas que, por amor à concisão, continuaremos os tomando naquilo que tem de mais genérico.

Então, está aqui. A aproximação a ciência feita pelos analíticos se deu pela clave da lógica, enquanto os continentais o fizeram pelo caminho da psicologia. Evidentemente, a primeira é mais hard code, mais, preto no branco, mais 1+1=2, enquanto a segunda tem um leque muito mais aberto, que redundou em correntes mais numerosas, que incluíram o Existencialismo, a Psicanálise, a Teoria Crítica, o Estruturalismo e tantas outras vertentes que se desenrolam até os dias de hoje.

Fala-se em dicotomia entre as duas. Houve confronto entre ambas as correntes? Ah, bastante. Particularista, a filosofia analítica coloca-se como uma espécie de última bolacha do pacote, aqueles que praticam a última forma válida de filosofia, aplicada à lógica. Tudo o que vai além disso é literatura, no que os continentais são ricos. Os analíticos dizem que os continentais enchem seus textos de palavras, mas são vazios de conteúdo. Sendo errôneos em suas estruturas, o que escrevem se torna incompreensível. Por conta disso, são prolixos e herméticos, sendo que não conseguem traduzir em linguagem suas ideias fabulescas.

Por outro lado, os continentais têm os analíticos na conta de uma grande estiagem filosófica, cujo propósito é aquilo que hoje diríamos ser “passar no Enem”, porém com a pretensão de estarem acima até mesmo das ciências. Criam estruturas enormes para falar “bom dia” e reduzem a linguagem a uma fala de robôs, como se fosse possível plasmar o entendimento através de fórmulas prontas e acabadas. É uma guerra entre a lógica e a humanística, como se vê.

Quem tem razão? Como costuma acontecer nesses casos, um pouco para lá, um pouco para cá. Os analíticos têm razão com relação à ilegibilidade dos continentais. Se fizermos uma comparação direta entre os textos de uma corrente e de outra, a diferença salta aos olhos. Os analíticos chegam a ser chatos na minúcia, a ponto de causar náuseas no nível de detalhes que atingem, mas eles são claros. Se não são fáceis de ler, é porque há dificuldade nos conceitos que professam, mas não na limpidez da escrita - poucas dúvidas deixam. É o exato oposto do que fazem os continentais, que escrevem como se fosse para si mesmos, cheios de metáforas e de divagações que vão ao sabor do próprio psicológico. Parecem fazer uma brincadeira de cerca-Lourenço com o leitor, dando infinitos volteios antes de dizer o que querem, e o que querem nem sempre é compreensível. Por isso, é muito comum fazer a leitura desses autores acompanhados de comentadores que debruçaram sua vida inteira em compreendê-los. Por outro lado, os continentais têm razão ao dizer que os analíticos são desérticos com relação à totalidade dos problemas filosóficos, em razão de fundear todo o seu cabedal em análise da linguagem. É aceitável que adotem esse procedimento como um dos modos possíveis de filosofar, mas não como o único. Eles parecem aqueles corintianos (eu sou corintiano) que não admitem que há outros times igualmente gloriosos, e que não há futebol fora dos limites do parque São Jorge. Com isso, seu campo de atuação fica tão restrito que acabam excluindo sua filosofia de qualquer outro campo, o que, sejamos francos, a empobrece.

Por fim, saímos de lá inspirados pela cultura inglesa e, ao invés do costumeiro cafezinho, fomos tomar um chá, ainda que não fosse cinco da tarde. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Achei um livrinho que é muito bom, que já abre justamente abordando o tema em tela, e deixo aqui a indicação para vocês.

D’AGOSTINI, Franca. Analíticos e Continentais. Guia à Filosofia dos Últimos Trinta Anos. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

 

Com relação ao parque…

Parque e Casa Gomm

Rua Bruno Filgueira, 850

Bigorrilho 

Curitiba/PR 

A aproximadamente 410km do centro de São Paulo 

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Navegações de cabotagem – O Bosque do Papa e o tanto que dogmas e dúvidas se entrecruzam

(Dogmatismo e ceticismo são coisas absolutas?)

“As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que a mentira”.

Nietzsche

Olá!

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Meus caros, como eu já disse em alguns dos meus textos, nós, brasileiros, somos uma composição tão heterogênea que parece que contemos todos os elementos da tabela periódica em nossa composição. Sendo uma terra meio que perdida para os padrões europeus, para cá acorreram tantas etnias distintas, além das próprias misturas locais preexistentes, que usar o chavão “geleia geral” não está de todo errado. Isso valeu para todos os negros, para os italianos, para os portugueses e mesmo para o pessoal do oriente médio, ditos turcos*, que se espalharam por todo o território nacional. Há, entretanto, alguns lugares onde certas etnias são mais, digamos, endógenas. Falar de São Paulo não vale, porque até colônia nepalesa há por aqui, mas, pensando em outros locais, são dignos de nota os “bichos d'água” que povoam o Sul, especialmente pelo clima mais próximo de sua terra de origem. Esse termo é meio evidente: deriva da pele extremamente branca de seus descendentes. Tem lá um quê de preconceito, mas não sou eu quem deu a denominação, mas os próprios europeus de outras paragens, notadamente os italianos. A própria patroa tem seu percentual de ungaresi

Estou em Curitiba, mais uma vez em visita ao moleque mais velho, que evadiu de Metrópole da Solidão (como o tempo voa) há mais de cinco anos, e sempre que venho por esses lados, dou minhas sapeadas aqui e ali, e a bola da vez é o lugar onde os poloneses abundantes nessas latitudes rememoram suas procedências. Estou no Bosque do Papa.

Trata-se de uma antiga chácara que foi desapropriada justamente para se transformar em um parque, por ocasião da visita do então papa João Paulo II, em 1980.

Aquela era uma grande novidade, porque havia mais de quatro séculos que apenas papas italianos saíam dos conclaves. Além disso, e principalmente, tínhamos a primeira visita de um papa ao maior país católico do mundo, e isso causou uma comoção geral, principalmente nos locais onde as etnias suas conterrâneas eram mais numerosas, caso flagrante do Paraná.

Trata-se da combinação de uma reserva de Mata Atlântica com uma aldeia polonesa. A primeira parte é representada por muitos exemplares da espécie mais distintiva desta região, que são as araucárias, pseudopinheiro de forma sui generis e de casca rugosa bastante espessa.

Já as casas são feitas da maneira legítima dos poloneses, sendo que foram transferidas para cá de outros pontos da cidade. Sua constituição é típica: troncos desbastados por falquejamento são empilhados e ajustados por cunhas até fazerem encaixe uns com os outros. São casas que possuem bom isolamento térmico e são relativamente fáceis de serem transportadas, caso seja necessário.

O conjunto compõe o Museu da Imigração Polonesa, que tem muitas coisas interessantes, mas que, por um motivo desconhecido, não permite que sejam tiradas fotos dos seus interiores. Sendo assim, como um bom cidadão, de uma família nem tão tradicional, mantive meu celular quietinho no bolso. Uma das casas é sede do Museu Agrícola, que abriga instrumentos e utensílios do dia-a-dia dos antigos colonos.

Já o centro de tudo está na capela montada na primeira das casinhas, onde fica uma imagem da Virgem Negra de Czestochowa, padroeira da Polônia. É um dos locais onde o papa foi recebido em sua visita, e há muitas fotos do evento em seu interior.

Junto uma imagem da santa referida por amor à informação e para deixar um contexto mais claro. Diz a lenda que a imagem foi pintada pelo próprio evangelista São Lucas, o que é muito improvável. É uma imagem tipicamente bizantina, que está associada ao cristianismo oriental. A pintura original é considerada milagrosa, por ter mantido as cicatrizes do rosto de Nossa Senhora mesmo após a tentativa de retoques, pelo que se diz. Está disponível na página própria da Wikipédia.

Há ainda uma pequena loja de badulaques e petiscos típicos, com as mesmas pêssankas que eu já havia visto no Memorial Ucraniano.

Já dentro do bosque, a diferença de temperatura se torna sensível. São trilhas de pedra que vão em um sentido de aclive, onde se encontram várias espécies nativas e é povoado pelos sons de insetos e cantos de pássaros.

No centro, encontra-se a estátua em homenagem ao papa. Eu não sou um grande esteta e não quero colocar em causa o talento de ninguém, mas eu queria dizer que é uma imagem meio… bizarra.

O que manda é a intenção, e os poloneses têm motivos de sobra para tê-lo em alta conta. É o primeiro e único papa polonês, que lutou muito contra a ditadura de Wojciech Jaruzelski, ditador polonês nos tempos de início do papado. Sendo assim, mesmo estranha, a estátua é uma homenagem justa para eles.

Estupidamente, não registrei em foto a homenagem ao astrônomo Nicolau Copérnico, igualmente polonês e o mais renomado dos cientistas polacos. Já falei sobre ele por aqui, porque é aquele que sistematizou o heliocentrismo, que revolucionou o conhecimento cósmico que se tinha até então. Novamente, com a devida referência, coloco uma foto do ilustre cientista.

Disponível em https://www.tripadvisor.com.br/LocationPhotoDirectLink-g303441-d2325441-i146801814-The_Pope_Woods_and_Polish_Memorial-Curitiba_State_of_Parana.html


Embora ambos, o papa e o astrônomo, estejam aqui reunidos por um elo bastante expressivo, pouco passa de suas nacionalidades. O conjunto de ideias de Copérnico eram ainda muito incipientes para lhe trazer grandes transtornos pessoalmente, mas vários de seus sucedâneos foram confrontados pela mesma igreja liderada pelo papa por abraçar as mesmas ideias, e isso se dá pela combinação de rigidez ideológica com poder concentrado nas mãos da instituição religiosa. Novidades não costumam ser bem-vindas para aqueles que sentem a possibilidade de ferir suas convicções. Mas os polos não são tão opostos assim, ou, ao menos, uns possuem sabores dos outros, como veremos.

A coisa toda principia filosoficamente, quando discutimos qual é a possibilidade que a mente humana tem para conhecer. Há toda uma escala de cores que vão permear o espaço existente entre os dois extremos – o dogmatismo e o ceticismo, tema que enfrentei em um texto já bem antigo, mas que pode ser resumido da seguinte forma: diante da pergunta “é possível conhecer?”, o dogmatismo responde com um gigantesco sim, que verdades absolutas existem e que podem ser alcançadas por nós, caniços pensantes. É uma posição fundamentalmente adequada para a religião, que precisa de bases permanentes para funcionar. Já na outra ponta vamos ter o ceticismo, a desconfiança total na capacidade humana de absorver realidades. Há sentidos que nos enganam, há o tempo histórico que transformam convicções, há a perspectiva de quem vê de ângulos distintos. São tantos os fatores que fazem com que uma coisa qualquer seja vista de maneiras diferentes e igualmente válidas, que fica complexo de definir qual vale de verdade. Os céticos estritos estão em permanente dúvida, o que se adequa à constante necessidade de reformulação do conhecimento defendido pela ciência, cuja função é se aproximar da verdade, e não propriamente a alcançar.

Pois muito bem. A pergunta basilar que eu quero especular aqui é a seguinte: teria a ciência alguma coisa de dogmático, e teria a religião qualquer coisa de cético? Seriam os princípios gerais de ambas tão rígidos que não permitiriam imbricações? Ou há, à moda de yin e yang, um pouquinho de um no outro?

A resposta é sim. Começando por dogmatismo na ciência, e fora do escopo que eu discuti anteriormente (que falava sobre o processo de torre-marfinização da academia), a ciência parte de certos pressupostos para exercer suas tarefas que podem ser tidos como assunções de verdades.

Quando é elaborada alguma nova hipótese ou mesmo teoria, não se reescreve a história da roda. O arcabouço já consolidado da ciência é utilizado sem que seja verificado tudo o que dá base para a proposta. Embora a ciência tenha o condão de repropor constantemente suas teorias, não faz sentido que a cada nova hipótese sejam colocados entre parênteses todos os pressupostos anteriores. As coisas que já são consensuais, não são levantadas novamente, a não ser que um longo novo estudo esteja pronto a virar uma antiga consolidação de ponta-cabeça, o que é raro. Como exemplo, toda hipótese que envolva uma aceleração da gravidade vai levar em consideração os 9,8 Km/h que já estão consagrados. Dentre todas as variáveis de uma pesquisa, essa é uma que não precisará ser testada, e servirá como um parâmetro.

Mas não é só. Existem certos pressupostos que são bem próximos de um dogma, porque são proposituras evidentes em si mesmas, que são assumidas como verdade mesmo sem nenhuma experiência direta, e que acabam sendo o fundamento mais remoto de uma hipótese. São axiomas e postulados.

Os axiomas (cuja raiz grega significa “tornar válido”) são proposições evidentes em si mesmas, mas que não tem como ser demonstradas. Era uma espécie de pérola dos racionalistas, cuja afirmação era de que tais princípios estavam contidos inatamente na racionalidade humana. Os empiristas respondiam a esta tese dizendo que os axiomas nada mais eram do que generalizações obtidas a partir da experienciação da própria realidade, feitas tantas vezes que passavam a se tornar evidências absorvidas tão fortemente que passavam a ser reconhecidas como verdades. Um axioma clássico é o princípio de identidade de Aristóteles, que diz o seguinte:

A=A

Isso parece muito óbvio, mas todo o fundamento de uma construção lógica passa pelo princípio de que qualquer coisa é igual a si mesma, porque é ele que garante que, por exemplo, se mudarmos a denominação dessa coisa, ela não deixa de ser o que ela é.

Percebem como um axioma é óbvio? Na medida em que suas derivações vão se multiplicando, ele vai ficando cada vez menos evidente, mas, se retornado ao seu estado primitivo, vai se perceber como ele está na mesma base de todo esse conhecimento:

A=2+2

A=2+(4-2)

A=(4-2)*1

A=[2*2+6-(2*3)]+[102-(5*20)]

e assim sucessivamente.

Um postulado é quase a mesma coisa, e muitas vezes é utilizado como sinônimo de axioma. Como seu próprio nome diz, é uma assertiva que postula (pede) para ser crida, mesmo que não seja possível demonstrá-la, por sua própria estrutura lógica, para que possa dar base a uma hipótese filosófica ou científica. É um pouco mais específico do que um axioma, mas não deixa de ser uma afirmação que se sustenta por si mesma, sem a necessidade de demonstrações.

É possível reconhecer um postulado na seguinte proposição da geometria:

“Uma linha tem comprimento, mas não tem largura”

Esqueça aqui uma linha traçada a lápis com uma régua, que, na acepção do termo, já não é mais uma linha, porque, neste nosso mundo tridimensional, mesmo ela tem uma largura, ainda que seja mínima. O conceito de linha é exatamente a abstração de uma das dimensões espaciais, que são totalmente conceituais, mas que sabemos existentes pela própria observação do mundo ao nosso redor. Todas as vezes que olhamos para um elemento no fundo de um horizonte, traçamos uma alçada de visão que é, na verdade, uma linha, mas que não temos como materializar, mas que sabemos estar correta. Sendo abstratas, são realidades mentais, mas não concrescíveis.

Essas proposições estão no mínimo do conhecimento, digamos que a nível “atômico”, sem o que não há como partir daí para diante, por isso elas são assumidas mesmo sem a possibilidade de comprovação empírica. E isso tem todo cheiro e sabor de dogma, mesmo que não o sejam no sentido mais restritivo da palavra. 

Agora, o reverso da medalha. As religiões sempre possuem um conjunto de dogmas, que são verdades tidas como absolutas, e que compõem todo o seu corpo de doutrinas e princípios. Eles emanam de diversas fontes, mas principalmente de livros e do magistério de sacerdotes que representam a autoridade de uma igreja, cuja palavra tem valor de manifestação da própria divindade que professam.

Na dependência do que representam para a estrutura da fé, essas disposições são pouco plásticas, e, dados os atributos de inerrância das manifestações divinas, costumam não serem passíveis de modificações. Imaginemos, por exemplo, que no âmbito do Cristianismo surja alguma tese que conteste a ressurreição de Jesus. Esse é o miolo, o núcleo, a dura-máter, o centro, a alma, a medula de todo o seu sistema de fé. Se algo for modificado nisto, todo o sistema desmorona. Imagine, por exemplo, que seja localizado o túmulo de Jesus. Estaria, naturalmente, derrubada a tese de uma ressurreição. O primeiro efeito será uma negação generalizada, com declarações de falsificação as mais várias. Se a tese subsistir, entretanto, ou se abjura da fé, ou se faz adaptações, mas já não falamos mais da mesma coisa.

Certas filosofias religiosas encaram a doutrina da revelação progressiva, ou seja, a divindade se revela aos poucos, para que a humanidade, em suas naturais limitações, vá adquirindo arcabouço intelectivo suficiente para compreender certas revelações que seriam ininteligíveis em outras eras. Esta é uma maneira de se refazerem dogmas, mas o fato concreto é que se trata de prática para criar novas crenças, e não para transformar as já existentes. Em suma: a atitude geral é de manutenção do dogma.

Entretanto, os componentes que cercam a raiz do corpus teológico de uma fé podem sofrer adaptações sem que se perca a sua essência. Um exemplo bastante óbvio diz respeito à teoria da Evolução. Antes de sua consensualização, era comum que as predisposições bíblicas induzissem a se crer em uma proposta fixista. Algumas interpretações literalistas não aceitam outra forma de reconhecer a questão, e veem como fumaça nos olhos qualquer proposta que não afirme que os seres tenham surgido prontos e acabados. Mas há correntes que não veem problemas em relativizar os relatos de criação. Um bom exemplo é a Igreja Católica, que enxerga as mãos divinas na condução do processo evolutivo. Desta forma, todas as mutações, todas as adaptações, todas as pressões seletivas são ações divinas sobre sua criação para que ela se modifique. Deus é o motor da evolução, que usa a seleção natural para fazê-lo. O mesmo se aplica à teoria heliocêntrica, já mencionada como problema em outros tempos, mas que, diante das evidências mais que abundantes, acabou por ser absorvida. O princípio geral é que não afetavam em nada no aspecto teológico, apenas em certas predisposições tornadas alegóricas que não atrapalham o núcleo da fé.

Em resumo, a porção cética de quem tem por base o dogmatismo vai depender do calibre do núcleo que precisa ser defendido. Quanto mais for possível relativizar as fontes originárias de sua fé, maior vai ser a capacidade de receber novidades de fora e de moldar os paradigmas a elas.

É bastante certo que, se houvesse uma máquina do tempo, ficaríamos surpresos com o que seria qualquer religião em suas práticas originais. Isso acontece porque o mundo muda, e junto com ele, vão tecnologias, vão ambientes, vão demografias, vão ciências, e, vejam vocês, vão princípios morais. Isso demonstra que há mudanças nas religiões que são até mesmo necessárias. Imagine-se vestido em uma pele de carneiro porque é uma preconização de sua fé, que nasceu quando não havia as opções do poliéster ou do nylon. Faz sentido isso?

O sentido disso tudo é que posições extremadas normalmente não condizem com condutas verdadeiramente racionais. Os exageros obnubilam a visão, amarram os braços ou ambas as coisas, e isso não leva a boas coisas. Bons ventos a todos!

Recomendação de visita:

Bosque João Paulo II e Memorial da Imigração Polonesa

Rua Wellington de Oliveira Viana, 33

Centro Cívico

Curitiba/PR

A aproximadamente 410 Km do centro de São Paulo

 

*Pouquíssimos turcos de fato vieram para o Brasil. Os imigrantes que assim eram conhecidos levavam essa nacionalidade porque, quando não eram foragidos, tinham passaporte do Império Otomano, a atual Turquia. E, mesmo que fossem foragidos, todos os seus documentos tinham os timbres desse mesmo império. Chamá-los de turcos, em alguns casos, pode ser considerada uma ofensa, em razão das guerras de dominação que aconteceram para que os otomanos dominassem a região. Falo mais sobre esse assunto neste texto.