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terça-feira, 18 de abril de 2023

Pequeno guia das grandes falácias – 67º tomo: a falácia naturalista

(Sermos quem somos nos dá atributos morais inevitáveis ou isso é uma falácia?)

Olá!

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Eu crio passarinhos desde que eu me conheço por gente. Não é exagero: fiz um mapeamento mnemônico e não consegui recordar qual foi o primeiro canário que um dos meus parentes me botou para cuidar. Aliás, nem lembro bem se foi um canário, mas creio que sim. Muitos dos meus tios tinham diversos, e é provável que eu tenha enchido o saco de um deles até que me dessem um. Também pode ser que a brincadeira tenha começado em casa mesmo, já que minha mãe costumava pegar aqueles que vinham parar no quintal. Isso se deu também com pássaros-pretos, o que seria uma boa encrenca hoje em dia com o Ibama. Mas, na época, nem se pensava nisso. Hoje em dia, só passarinhos legalizados.

Eu tenho essa atividade até hoje, mesmo morando em apartamento. A rotina é mais ou menos sempre a mesma: supervisionar a água, limpar os bebedouros, soprar o alpiste, trocar o papel, eventualmente dar alguma vitamina e manter o viveiro higienizado. Como recompensa, é ouvir o canto matinal como despertador, e "bater um papo" com os bichinhos enquanto eu preparo o café.

Já há algum tempo, contudo, eu estou deixando o costume de lado. Não os coloquei mais para cruzar, e isso, paulatinamente, fez com que sobrassem apenas dois no momento em que escrevo este texto. Já me livrei de alguns viveiros, inclusive, e não farei reposições. O principal deles, do quarto grande, já está vazio, pronto para ganhar nova destinação (inclusive descarte).

Quando ambos voarem em definitivo, vou rolar as portas e me aposentar da atividade. Isso tudo porque eu tenho ficado muito pouco em casa, e o que era um hobby virou uma preocupação a mais. Se eu ficar mais de quatro dias fora, já preciso arrumar alguma parafernália que permita manter água e comida. Isso não é bom, porque estes não devem ficar velhos, perdem qualidade – imagine que você vá beber uma água parada há uma semana. Eis que acho mais honesto com os penosos não os ter do que os ter inadequadamente.

Os passarinhos são uma marca quase registrada minha. Nesses tempos de home office, eles ficavam competindo com minha fala nas reuniões virtuais, o que faz os outros sempre perguntar por eles até hoje, especialmente quando eu estava trabalhando fora.

Mas sempre houve quem não gostasse. Passarinho na gaiola sempre plasmou um homem num presídio, um cerceamento da liberdade. Não exatamente um condenado por crime, mas aprisionado à própria vida. Além disso, os canários na gaiola são apreensões particulares de puro egoísmo, o encarceramento de uma vida para um gáudio privado. Tendo cada vez mais a concordar, embora seja possível fazer duas colocações: se o bicho aceita passivamente sua privação de liberdade, é porque instintivamente ele vê alguma vantagem na coisa. E há uma dose reforçada de cinismo em quem condena o engaiolamento de pássaros, mas tem cães em apartamentos minúsculos. Por trás disso tudo, há a afirmação da liberdade como boa em si mesma. E aí a coisa pega, ao menos para dois grandes filósofos: David Hume e George Edward Moore, mais conhecido como G. E. Moore.

A discussão aqui não será se a liberdade é ou não uma coisa boa, porque eu contei toda essa história apenas para constituir um exemplo. Substitua qualquer coisa que possa receber um juízo de valor como definitório e teremos o mesmíssimo efeito: bondade, amor, justiça. A questão aqui é tomar uma definição deontológica onde só cabem definições ontológicas. Confuso?

Vamos lá. Resumidamente, a Ontologia é a área da Filosofia que cuida do Ser em si mesmo: suas características e definições, que diferencia o que cada objeto no universo tem de essencial e o torna único (defino mais criteriosamente o tema neste texto). Já a Deontologia é uma espécie de estudo sobre deveres e obrigações, especialmente no seu sentido ético. Quando eu digo que uma coisa é pequena, eu estou fazendo uma afirmação ontológica, porque eu estou supondo métricas e observações que podem estabelecer comparações e grandezas. Já quando eu digo que essa mesma coisa é boa, já aí é preciso estabelecer juízos. Bom para quê? Bom para quem? Bom em que medida? Quando digo que algo é bom, subentendo um valor que vai além do aspecto de verdade, porque é difícil estabelecer o que é bom através de réguas.

David Hume é um filósofo escocês do século XVIII, cujo cerne filosófico está no ceticismo e no empirismo radical. Quando defrontado com questões como aquelas que mencionei acima, ele manifestaria o desconforto típico de quem enxerga uma assimetria entre aquilo que pode ser constatado pela experiência e o que deriva de normatizações que não podem ser inferidas inequivocamente.

Portanto, há, no entendimento de Hume, uma confusão entre os significados de SER e DEVER SER. Qual é o grande problema que ocorre neste caso? É que Hume, um dos mais eméritos empiristas que se tem notícia, a ponto de exercer um ceticismo quase absoluto, entende que há uma mudança significativa enquanto você estabelece uma definição para a coisa e para quando são descritas regras para a coisa. A deontologia não é descritiva, mas normativa, caindo-se, por conseguinte, no aforismo popular: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

O que Hume afirma, categoricamente, é que não se pode deduzir o que as coisas deveriam ser a partir do que elas são, porque isso fere a factualidade exigida pelo processo empírico. Por exemplo, quando eu afirmo que o Carnaval ocorre em função da festa de Páscoa*, eu estou fazendo uma afirmação definitória, que diz respeito à sua essência – ontológica, portanto. Já se eu afirmo que o Carnaval é licencioso, cabe aqui, subrepticiamente, uma afirmação de caráter moral, mais difícil de ser demonstrada empiricamente. Isso acontece porque entra aqui a questão dos valores. O que é licencioso, por exemplo? Vai depender do momento histórico e da cultura de quem faz a afirmação. Mulheres que usam calças, por exemplo, já foi um exemplo disso, tanto no tempo, quanto em lugares com determinadas culturas. Essa separação entre o que está no campo da definição e o que está na área do dever ficou conhecido como Guilhotina de Hume.

A verve crítica de Hume, embora muito respeitada, nunca foi suficiente para modificar a opinião de quem enxergava a existência de verdades morais objetivas. Embora não formassem uma massa uniforme, esses pensadores buscavam salvaguardar uma ética dada pronta, o que vai ao encontro das posições religiosas, em que uma divindade decreta normas racionais, o que constituía consequências obrigatórias de um determinado fato. Por conta disso, o filósofo ético inglês G. E. Moore repropôs a guilhotina de Hume, desta vez na forma de falácia.

Qual é a linha de pensamento de Moore? Certos pensadores éticos entendem que os valores morais são uma propriedade das coisas da mesma forma que ocorre com propriedades físicas. Uma coisa sempre será boa ou ruim, certa ou errada, justa ou injusta, independentemente do juízo que se fizer dela. Portanto, o valor moral é um dos itens da essência de um fato ou fenômeno qualquer, faz parte de sua natureza.

Para demonstrar a falaciosidade destas proposições, Moore apresenta o problema em termos lógicos e linguísticos. De fato, quando uma definição é ontológica, podemos observar que, mesmo revestida de sofisticação, o predicado resultante já está contigo no próprio sujeito. Um exemplo extremamente simples: um ser vivo é um não-morto. Simples, óbvio, irrefutável e sem acrescentar nada à definição que já está contida na próprio sujeito, cumpre com exatidão o atributo de definir o que um ser vivo é. Não serve para nada? Não serve, mas é uma questão fechada: não resta espaço para juízos.

Mas a coisa fica esquisita quando se tenta definir qualidades. Há uma confusão linguística gerada a partir do verbo de ligação “ser” onde o “é” acaba tendo seu uso confundido. Moore utilizou várias assertivas do filósofo ético Herbert Spencer para explicar seu ponto. Spencer, por exemplo, dizia que uma boa conduta é uma conduta mais evoluída. Podemos acrescentar qualquer outra definição: que é uma conduta determinada por deus, ou uma conduta que ocasione prazer, ou um menor prejuízo para o maior número de pessoas. Notem como aqui não temos como considerar essas assertivas, nenhuma delas, como uma questão fechada. Boa conduta não é sinônimo de nada disso, porque as definições de evolução, divindade, prazer e prejuízo não estão coligadas inequivocamente à de bem; não só porque são discutíveis esses conceitos, mas por uma questão linguística mesmo. Eis que a Guilhotina de Hume é retomada, a partir de Moore, na forma de argumento da questão em aberto.

Agora nós podemos falar do Pequeno Guia. Moore dá ao formato de argumento que entende que valores morais têm força ontológica o nome de falácia naturalista

Pratica-se uma falácia dessa categoria sempre que se considere “natural” que exista alguma definição ética ou moral em função de um objeto, seja coisa, fenômeno ou indivíduo qualquer, ser o que é. Definições escapam à normatização, que somente ocorrem por intermédio de uma cultura ou consciência. Uma bola permaneceria redonda (critério ontológico e mensurável) ainda que não houvesse um único ser vivo no universo. Ela somente seria divertida existindo os mesmos, num critério deontológico e aberto. Eu gosto de futebol, o dona Madalena do terceiro andar detesta.

Mas parece difícil encontrar uso corriqueiro da falácia naturalista, talvez você pense, meu bissexto leitor, minha ocasional leitora. Não é, não. Pense nas inúmeras vezes em que já se encaixa uma qualidade "definidora" que vá além da definição, e isso é uma daquelas velhas geratrizes de preconceitos. Muitos são os exemplos: homossexuais são aqueles que tendem a se relacionar com pessoas do mesmo sexo, e essa é uma definição fechada. Qualquer outra tentativa de se atribuir valores à definição terá um fundo moral, e isso escapa da essência, caindo em um dever ser que está em quem o profere, e não na definição em si. Um ateu é um descrente em deidades, e ponto. Não é alguém sem ética, nem que não está disposto a seguir regras, nem indiferente a sentimentos alheios. Um ateu PODE ser tudo isso, ou não, isso não muda sua definição. Um negro é alguém que tem maior pigmentação na pele. Um estrangeiro é alguém que veio de fora do país. Um idoso é alguém acima de certa idade. São todas simplificações, mas explicam bem o ponto. Qualquer julgamento moral que busque dar características intrínsecas a um indivíduo qualquer recai na falácia naturalista. E é isso.

Só um cuidado a ser tomado. Há outro tipo de falácia que pode ser confundida com essa, por conta do nome que leva. Mas vou tratar dela no próximo texto. Fiquem atentos e bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Vai para o principal livro do filósofo que detestava seus nomes cristãos: George Edward:

MOORE, George E. Principia Ethica. São Paulo: Ícone, 1998.

*O Carnaval ocorre na semana em que se inicia a Quaresma, que, por sua vez, é calculada para ocorrer quarenta dias antes do início da Semana Santa, que, por sua vez, começa no domingo anterior à Pascoa, que, por sua vez e finalmente, é calculada para o primeiro domingo posterior à primeira lua cheia posterior ao equinócio de primavera no hemisfério norte. Ufa! 

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