(Sermos quem somos nos dá atributos morais inevitáveis ou isso é uma falácia?)
Olá!
Eu crio passarinhos desde que eu me conheço por gente. Não é
exagero: fiz um mapeamento mnemônico e não consegui recordar qual foi o
primeiro canário que um dos meus parentes me botou para cuidar. Aliás, nem
lembro bem se foi um canário, mas creio que sim. Muitos dos meus tios tinham
diversos, e é provável que eu tenha enchido o saco de um deles até que me
dessem um. Também pode ser que a brincadeira tenha começado em casa mesmo, já
que minha mãe costumava pegar aqueles que vinham parar no quintal. Isso se deu
também com pássaros-pretos, o que seria uma boa encrenca hoje em dia com o
Ibama. Mas, na época, nem se pensava nisso. Hoje em dia, só passarinhos
legalizados.
Eu tenho essa atividade até hoje, mesmo morando em
apartamento. A rotina é mais ou menos sempre a mesma: supervisionar a água,
limpar os bebedouros, soprar o alpiste, trocar o papel, eventualmente dar
alguma vitamina e manter o viveiro higienizado. Como recompensa, é ouvir o
canto matinal como despertador, e "bater um papo" com os bichinhos
enquanto eu preparo o café.
Já há algum tempo, contudo, eu estou deixando o costume de
lado. Não os coloquei mais para cruzar, e isso, paulatinamente, fez com que
sobrassem apenas dois no momento em que escrevo este texto. Já me livrei de
alguns viveiros, inclusive, e não farei reposições. O principal deles, do quarto
grande, já está vazio, pronto para ganhar nova destinação (inclusive descarte).
Quando ambos voarem em definitivo, vou rolar as portas e me
aposentar da atividade. Isso tudo porque eu tenho ficado muito pouco em casa, e
o que era um hobby virou uma preocupação a mais. Se eu ficar mais de quatro
dias fora, já preciso arrumar alguma parafernália que permita manter água e
comida. Isso não é bom, porque estes não devem ficar velhos, perdem qualidade –
imagine que você vá beber uma água parada há uma semana. Eis que acho mais
honesto com os penosos não os ter do que os ter inadequadamente.
Os passarinhos são uma marca quase registrada minha. Nesses
tempos de home office, eles ficavam competindo com minha fala nas reuniões virtuais,
o que faz os outros sempre perguntar por eles até hoje, especialmente quando eu
estava trabalhando fora.
Mas sempre houve quem não gostasse. Passarinho na gaiola
sempre plasmou um homem num presídio, um cerceamento da liberdade. Não
exatamente um condenado por crime, mas aprisionado à própria vida. Além disso,
os canários na gaiola são apreensões particulares de puro egoísmo, o encarceramento
de uma vida para um gáudio privado. Tendo cada vez mais a concordar, embora
seja possível fazer duas colocações: se o bicho aceita passivamente sua
privação de liberdade, é porque instintivamente ele vê alguma vantagem na
coisa. E há uma dose reforçada de cinismo em quem condena o engaiolamento de
pássaros, mas tem cães em apartamentos minúsculos. Por trás disso tudo, há a
afirmação da liberdade como boa em si mesma. E aí a coisa pega, ao menos para
dois grandes filósofos: David Hume e George Edward Moore, mais conhecido como
G. E. Moore.
A discussão aqui não será se a liberdade é ou não uma coisa
boa, porque eu contei toda essa história apenas para constituir um exemplo.
Substitua qualquer coisa que possa receber um juízo de valor como definitório e
teremos o mesmíssimo efeito: bondade, amor, justiça. A questão aqui é tomar uma
definição deontológica onde só cabem definições ontológicas. Confuso?
Vamos lá. Resumidamente, a Ontologia é a área da Filosofia
que cuida do Ser em si mesmo: suas características e definições, que diferencia
o que cada objeto no universo tem de essencial e o torna único (defino mais
criteriosamente o tema neste
texto). Já a Deontologia é uma espécie de estudo sobre deveres e
obrigações, especialmente no seu sentido ético. Quando eu digo que uma coisa é
pequena, eu estou fazendo uma afirmação ontológica, porque eu estou supondo
métricas e observações que podem estabelecer comparações e grandezas. Já quando
eu digo que essa mesma coisa é boa, já aí é preciso estabelecer juízos. Bom
para quê? Bom para quem? Bom em que medida? Quando digo que algo é bom,
subentendo um valor que vai além do aspecto de verdade, porque é difícil
estabelecer o que é bom através de réguas.
David Hume é um filósofo escocês do século XVIII, cujo cerne
filosófico está no ceticismo e no empirismo radical. Quando defrontado com
questões como aquelas que mencionei acima, ele manifestaria o desconforto típico
de quem enxerga uma assimetria entre aquilo que pode ser constatado pela
experiência e o que deriva de normatizações que não podem ser inferidas
inequivocamente.
Portanto, há, no entendimento de Hume, uma confusão entre os
significados de SER e DEVER SER. Qual é o grande problema que ocorre neste
caso? É que Hume, um dos mais eméritos empiristas que se tem notícia, a ponto
de exercer um ceticismo
quase absoluto, entende que há uma mudança significativa enquanto você
estabelece uma definição para a coisa e para quando são descritas regras para a
coisa. A deontologia não é descritiva, mas normativa, caindo-se, por
conseguinte, no aforismo popular: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra
coisa.
O que Hume afirma, categoricamente, é que não se pode
deduzir o que as coisas deveriam ser a partir do que elas são, porque isso fere
a factualidade exigida pelo processo empírico. Por exemplo, quando eu afirmo
que o Carnaval ocorre em função da festa de Páscoa*, eu estou fazendo uma
afirmação definitória, que diz respeito à sua essência – ontológica, portanto.
Já se eu afirmo que o Carnaval é licencioso, cabe aqui, subrepticiamente, uma
afirmação de caráter moral, mais difícil de ser demonstrada empiricamente. Isso
acontece porque entra aqui a questão dos valores. O que é licencioso, por
exemplo? Vai depender do momento histórico e da cultura de quem faz a
afirmação. Mulheres que usam calças, por exemplo, já foi um exemplo disso,
tanto no tempo, quanto em lugares com determinadas culturas. Essa separação
entre o que está no campo da definição e o que está na área do dever ficou
conhecido como Guilhotina de Hume.
A verve crítica de Hume, embora muito respeitada, nunca foi
suficiente para modificar a opinião de quem enxergava a existência de verdades
morais objetivas. Embora não formassem uma massa uniforme, esses pensadores
buscavam salvaguardar uma ética dada pronta, o que vai ao encontro das posições
religiosas, em que uma divindade decreta normas racionais, o que constituía
consequências obrigatórias de um determinado fato. Por conta disso, o filósofo
ético inglês G. E. Moore repropôs a guilhotina de Hume, desta vez na forma de
falácia.
Qual é a linha de pensamento de Moore? Certos pensadores
éticos entendem que os valores morais são uma propriedade das coisas da mesma forma
que ocorre com propriedades físicas. Uma coisa sempre será boa ou ruim, certa
ou errada, justa ou injusta, independentemente do juízo que se fizer dela.
Portanto, o valor moral é um dos itens da essência de um fato ou fenômeno
qualquer, faz parte de sua natureza.
Para demonstrar a falaciosidade destas proposições, Moore
apresenta o problema em termos lógicos e linguísticos. De fato, quando uma
definição é ontológica, podemos observar que, mesmo revestida de sofisticação,
o predicado resultante já está contigo no próprio sujeito. Um exemplo
extremamente simples: um ser vivo é um não-morto. Simples, óbvio, irrefutável e
sem acrescentar nada à definição que já está contida na próprio sujeito, cumpre
com exatidão o atributo de definir o que um ser vivo é. Não serve para nada?
Não serve, mas é uma questão fechada: não resta espaço para juízos.
Mas a coisa fica esquisita quando se tenta definir
qualidades. Há uma confusão linguística gerada a partir do verbo de ligação “ser”
onde o “é” acaba tendo seu uso confundido. Moore utilizou várias assertivas do
filósofo ético Herbert Spencer para explicar seu ponto. Spencer, por exemplo,
dizia que uma boa conduta é uma conduta mais evoluída. Podemos acrescentar
qualquer outra definição: que é uma conduta determinada por deus, ou uma
conduta que ocasione prazer, ou um menor prejuízo para o maior número de
pessoas. Notem como aqui não temos como considerar essas assertivas, nenhuma
delas, como uma questão fechada. Boa conduta não é sinônimo de nada disso,
porque as definições de evolução, divindade, prazer e prejuízo não estão
coligadas inequivocamente à de bem; não só porque são discutíveis esses
conceitos, mas por uma questão linguística mesmo. Eis que a Guilhotina de Hume
é retomada, a partir de Moore, na forma de argumento da questão em aberto.
Agora nós podemos falar do Pequeno Guia. Moore dá ao formato
de argumento que entende que valores morais têm força ontológica o nome de falácia
naturalista.
Pratica-se uma falácia dessa categoria sempre que se
considere “natural” que exista alguma definição ética ou moral em função de um
objeto, seja coisa, fenômeno ou indivíduo qualquer, ser o que é. Definições
escapam à normatização, que somente ocorrem por intermédio de uma cultura ou
consciência. Uma bola permaneceria redonda (critério ontológico e mensurável) ainda
que não houvesse um único ser vivo no universo. Ela somente seria divertida existindo
os mesmos, num critério deontológico e aberto. Eu gosto de futebol, o dona
Madalena do terceiro andar detesta.
Mas parece difícil encontrar uso corriqueiro da falácia
naturalista, talvez você pense, meu bissexto leitor, minha ocasional leitora.
Não é, não. Pense nas inúmeras vezes em que já se encaixa uma qualidade
"definidora" que vá além da definição, e isso é uma daquelas velhas
geratrizes de preconceitos. Muitos são os exemplos: homossexuais são aqueles
que tendem a se relacionar com pessoas do mesmo sexo, e essa é uma definição
fechada. Qualquer outra tentativa de se atribuir valores à definição terá um
fundo moral, e isso escapa da essência, caindo em um dever ser que está em quem
o profere, e não na definição em si. Um ateu é um descrente em deidades, e
ponto. Não é alguém sem ética, nem que não está disposto a seguir regras, nem
indiferente a sentimentos alheios. Um ateu PODE ser tudo isso, ou não, isso não
muda sua definição. Um negro é alguém que tem maior pigmentação na pele. Um
estrangeiro é alguém que veio de fora do país. Um idoso é alguém acima de certa
idade. São todas simplificações, mas explicam bem o ponto. Qualquer julgamento
moral que busque dar características intrínsecas a um indivíduo qualquer recai
na falácia naturalista. E é isso.
Só um cuidado a ser tomado. Há outro tipo de falácia que
pode ser confundida com essa, por conta do nome que leva. Mas vou tratar dela
no próximo texto. Fiquem atentos e bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Vai para o principal livro do filósofo que detestava seus
nomes cristãos: George Edward:
MOORE, George E. Principia Ethica. São Paulo: Ícone,
1998.
*O Carnaval ocorre na semana em que se inicia a Quaresma, que, por sua vez, é calculada para ocorrer quarenta dias antes do início da Semana Santa, que, por sua vez, começa no domingo anterior à Pascoa, que, por sua vez e finalmente, é calculada para o primeiro domingo posterior à primeira lua cheia posterior ao equinócio de primavera no hemisfério norte. Ufa!
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