(A torre de marfim está aí para ser decifrada, e para se dar a compreender)
Como são graciosos teus pés nas tuas sandálias, filha de príncipe. A curva de teus quadris assemelha-se a um colar, obra de mãos de artistas. Teu umbigo é uma taça redonda, cheio de vinho perfumado. Teu corpo é um monte de trigo cercado de lírios. Teus dois seios são como dois filhotes gêmeos de uma gazela. Teu pescoço é uma torre de marfim. Teus olhos são a fonte de Hesebon junto à porta de Bat-Rabin…
Olá!
O trechinho acima, com o qual abro mais este texto, é um
excerto de um dos livros bíblicos de mais difícil encaixe no contexto teológico
que domina toda a sua escrita, embora haja uma multiplicidade reconhecida de
ingredientes em sua composição, de cunho profético, histórico, sapiencial,
social e político. O próprio trechinho nos fala em fonte de Hesebon e porta de
Bat-Rabin, referências geográficas sobre o Oriente Médio dos tempos da era do
Bronze.
São os versículos que vão de 1 a 4 do capítulo 7 do Cântico
dos Cânticos, livro poético do antigo testamento bíblico. As descrições do
Cântico dos Cânticos, todas cheias de referências fortemente sexualizadas
(embora os religiosos mais reacionários neguem e reneguem), são estranhas
dentre as exigências de pureza irrestrita no universo bíblico. Fosse a simples
composição poética de um amante apaixonado, não teríamos a extravagância
necessária para fornecer explicações. Nós até poderíamos tratar do tema, mas
vai ficar para outro momento. Agora, quero chamar atenção para um designativo
perdido no meio de tantos elogios dados a tão formosa guria: torre de marfim.
Este é um termo que está em voga hoje em dia, mas por
motivos desvinculados da religião. Entretanto, em seu nascedouro, ainda antes
de Cristo, nota-se que seu uso era elogioso e consagrado, já que a mocinha do
texto do cântico certamente aplicaria uma bolacha no mandrião se o aplique não
fosse encomiástico, laudatório, panegírico, benquerente, lisonjeiro,
apologético, elegíaco. Uma torre já era um símbolo, então, de um lugar
fortificado, apartado do mundo comum. Feita de material raro, conseguido aos
poucos à custa do sacrifício de inúmeros elefantes, de um branco perolado e
bastante resistente, é um símbolo de pureza e resiliência, com sua dignidade
guardada pelo material precioso. Ser considerada uma torre de marfim
representava o ideal da castidade tão almejado em tempos pretéritos. Esta imagem
foi transposta pelos católicos para uma das representações de Nossa Senhora,
dentre tantas outras na coleção de designativos de suas ladainhas, identificada
com a amada do Cântico como fortaleza da igreja.
Mas se colocado de lado o aspecto religioso, modifica-se a
ideia da torre de marfim, embora seja mantida a concepção de fortaleza e
isolamento. Com o passar do tempo, começa -se a construir a alegoria de um
lugar que está desprendido do mundo, alijado dos interesses palpáveis em nome
de uma pretensa esfera própria. Lembram-se da expressão "sexo dos
anjos"? Ela vem de uma polêmica medieval referente à existência ou não de
uma sexualidade das entidades espirituais. Isso tudo acontecia enquanto o pau
torava feio, no linguajar dos dias de hoje. Era o momento em que os turcos
invadiam Constantinopla, pondo fim definitivo ao Império Romano, e os teólogos
se mantinham reunidos discutindo se podia-se falar em anjos masculinos ou
femininos. Ou seja, uma total desvinculação com a realidade circunstante.
Embora essas reuniões não se dessem em torres de marfim, elas dão a exata ideia
do que ela representa nos dias de hoje. Passa a ser o local onde se busca um
exílio confortável, reservado para aqueles que detém uma espécie de chave dos
portões do conhecimento, que somente aos seus portadores é dado o direito de
adentrá-lo. Um lugar afastado, desvinculado dos acontecimentos mundanos e
colocado em privilégio, ainda que isso não signifique fama e fortuna,
necessariamente, mas um lugar especial e para poucos, uma espécie de elite
bastante em si mesma, cuja palavra tanto é autoridade quanto autoritarismo.
Isso é altamente aderente à academia científica. Para o povo, os cientistas se
recolhem em um ambiente altamente hermético, cujo método e palavrório é
incompreensível, de modo a impossibilitar a quem é de fora ter a menor noção do
que se faz e do que se diz lá dentro. Tanto é verdade que o estereótipo do
cientista inclui uma imagem esquisitona, de malucos que vivem encerrados em
laboratórios e que escrevem poemas com símbolos matemáticos, divertem-se com
cálculos e criam monstrinhos em balões de ensaio. Nada mais longe de um
cientista real, muitas vezes envoltos em burocracias e busca de verbas, tendo
que administrar egos de concorrentes e subordinados, mas isso já nos dá uma
dimensão imagética, que, na verdade, não foi construída do nada.
A diferença maior da comparação que acabo de fazer está na
linguagem. O que está escrito nos artigos é de suma importância, mas não pode
ser compreendido pela população em geral, especialmente em um país de baixa
escolaridade. Sendo assim, a recomendação para a sua leitura, que deveria ser o
melhor a ser feito, é inócua. Diante daquele monte de números e falar
hermético, sentimo-nos desguarnecidos. Eu mesmo confesso que já fiz por todo
lado para entender um exercício mental como o gato de Schrödinger, mas não
consigo alcançá-lo como devia. Isso não é burrice ou falta de instrução, é só o
reconhecimento de que as coisas da ciência não são simples de compreender. Por
isso, é plenamente louvável o aconselhamento por pesquisas em artigos, mas é
preciso ponderar o quanto eles são compreensíveis.
O que os professores fazem quando um aluno não entende a
lição? Dá um passo atrás e tenta explicar de novo, fazer paralelos, dar
exemplos. Essa é a grande deficiência da academia. Justifica-se: se a cada
pesquisa um cientista precisar trocar em miúdos para os mais diferentes tamanhos
de compreensão, ele não fará outra coisa na vida, e seu próprio trabalho não
andará. Mas é preciso um mínimo de comunicação entre as pontas.
Eu exemplifico com o que acontece no consultório dos
médicos. O ortopedista olha para a chapa das minhas costas e diz que tenho uma
protrusão discal. Eu olho para ele com cara de susto, quase perguntando quanto
tempo me resta de vida. Antevendo tal cataclisma, ele pega o simulacro de
coluna vertebral que tem em sua mesa e me explica, em rápidas palavras, que um
dos discos entre minhas vértebras está fora do seu lugar correto, o que faz
pressionar as terminações nervosas e causa dor. Uma explicação tão rápida já
desfaz o abismo que existe entre o termo técnico e o conhecimento insipiente.
Ocorre que é difícil alguém fazer esse trabalho, porque o
contato não é tão próximo quanto o que temos entre médico e paciente. Há uma
noção melhor com o que acontece aos nossos corpos, por motivos simples:
convivemos com eles todos os dias, e temos interesse por nossas saúdes. Mas a
torre de marfim, aquela que detém o conhecimento, é autenticamente longínqua, e
mesmo o tal médico já é um aplicador prático daquilo que se pensa e se pesquisa
nas universidades. E há um problema adicional: ele atua no campo individual, no
interesse que surge em uma pessoa específica que passa por um problema bem
determinado. Não podemos falar em público amplo, nesse caso, como é o caso dos
alunos de uma escola, ou as pessoas que tentam reagir a alguém que diz que as
vacinas fazem mal. Explicar o processo de imunização é muito mais complicado do
que dizer que são injetados milhares de chips na corrente sanguínea. A
explicação é estapafúrdia? Sim, mas É uma explicação, e, na ausência de coisa
melhor, adotada como boa e preciosa. E vai grassando pelos campos e pelas
cidades. Isso precisa ser combatido, porque queremos explicações.
Mas por que essa necessidade peremptória de uma resposta
para tudo? É uma boa pergunta, e que já partimos com uma má notícia: a ciência
não dá resposta para tudo. Aliás, no limite, não dá resposta para nada, porque,
como já
expliquei neste texto, não faz parte do escopo ou do método dar respostas
definitivas e inquestionáveis, o que é irritante para um ser cujas certezas
melhoram suas chances de sobrevivência. O homem sempre quis saber como
funcionam as coisas por uma questão de proteção. Saber se uma cobra é ou não venenosa
sempre fez a diferença. Isso nos dá a nossa eterna característica da
curiosidade, porque mesmo que um determinado conhecimento não sirva para agora,
poderá servir depois.
O desenrolar da aventura humana fez com que houvesse
confrontos entre versões. Por mais que as experiências pessoais e os relatos
alheios pudessem fazer sentido muitas vezes, o fato é que as melhores versões
sempre foram aquelas que derivavam de registros, de acúmulos empíricos e de
correlações coincidentes. Essa é a base do que se convencionou chamar de Ciência.
Curiosidade, portanto, não é só uma marca dos fofoqueiros,
mas da espécie como um todo. Mas não se satisfaz uma curiosidade com palavras
que não podem ser entendidas, e aqui nós temos o grande problema da torre de
marfim. Embora não possa ser algo tão apressadamente generalizado, o fato é que
se criou essa espécie de elite do conhecimento que torna as coisas tão
difíceis. É preciso que exista uma ponte, mas ela é de mão única: precisa
partir dos moradores da torre, porque do lado contrário estamos nós, população
que não é burra, mas que não entende o maremoto de termos e de raciocínios
sofisticados. Nós temos nossas ocupações: somos programadores, sapateiros,
funcionários públicos, costureiros, metalúrgicos, advogados, cozinheiros e
tantas outras ocupações que podem ser desenvolvidas com maestria, mas que tem
seu linguajar próprio com poucos pontos de contato com a realidade dos
laboratórios e observatórios, e, com isso, temos dificuldades em compreender
fenômenos que fogem ao puro empirismo.
Os divulgadores científicos são imprescindíveis nessa
tarefa, só que temos duas grandes forças em oposição ao trabalho bem-feito - os
teóricos da conspiração e os pseudocientistas. Uns trabalham na linha de que a
torre de marfim existe para obter vantagens para si, sem partilhar com mais
ninguém. Essas vantagens podem ser institucionais - a indústria farmacêutica
não apresenta medicamentos que curem o câncer porque este é lucrativo - ou
governamentais - a tal história do chip. Já os outros querem porque querem ser
inseridos na torre, mas não o são por não seguirem os critérios efetivamente
científicos. Dizem, então, as mesmas coisas que os conspiracionistas: quem
estipula o que é científico o faz na força de interesses. O grande problema
está exatamente em fazer as devidas distinções, e isso é verdadeiramente
difícil. Por esta razão, é preciso duas coisas dos divulgadores: persistência e
a consciência de uma missão. Da primeira, porque devem saber que vão tomar
porrada mesmo, à vera, e demora até pegar credibilidade. Da segunda, uma
questão quase missionária, de dichavar as principais confusões que se fazem, de
demonstrar onde as coisas estão erradas, de ter a sensibilidade para detectar
quais assuntos podem ser os mais relevantes e os que mais podem ser mistificados.
É um trabalho que mistura Hércules e formiga, mas é aquela velha história da entropia…
fazer o suco de manga é fácil, se comparado a lavar a camiseta suja por ele.
É preciso lembrar ainda que a pesquisa científica no Brasil
é praticamente inteira feita nas universidades públicas. Com isso, a
participação governamental é indissociável dos financiamentos de pesquisa,
e uma ideia seria fazer algum tipo de regulamentação para a liberação de verbas
com a inclusão de um trabalho de tradução ao grande público sobre o que está escrito
lá dentro. Não sei, pode ser que desse certo.
Mas completando. Se falamos de uma torre de marfim
científica, poderíamos falar de uma torre de marfim filosófica? É claro que
sim, e o interesse em divulgadores como Leandro Karnal, Clóvis de Barros e Mário
Cortella explicam que existe interesse popular em filosofia. O grande problema
é que progressivamente eles vão se rendendo a assuntos monotemáticos, muito
ligados à ética e com forte sabor de autoajuda, e perdendo a chance de soltar
aquilo que está aprisionado na torre. Poderiam aproveitar do gabarito e da
credibilidade que conquistaram para conseguir aprofundar não somente sobre
assuntos da ética, mas do que é a própria ética, suas diferenças e semelhanças
com a moral e deixar que seus audientes reflitam por si mesmos sobre o que é a
vida que vale a pena. Falar em frônesis, em ataraxia, em deontologia, em eidos,
em solipsismo, em noema, em aporia é afastar a filosofia do povo, se estes
termos forem usados indistintamente, com a suposição de que quem os ouve tem
que se coçar para entender do que se está falando. Mas eles precisam operar com
a lógica de mercado, já que vendem a bons valores suas palestras, e uma empresa
que os contrate não está preocupada com designadores
rígidos ou mônadas,
sejamos francos.
Caras como Foucault, Derrida, Deleuze, Guattari e outros não
só tratam de temas complicados, o que por si só já é um desafio, mas escrevem
de forma complicada, o que piora muito as coisas. Eu lembro bem quando comecei
a ler Kant. Pensei: que tradução ruim! Melhor caçar outra. Vejo outra e penso:
ruim igual. E aí algum professor me fala: não é a tradução que é ruim, é o
texto que é mal escrito. Não no sentido de usar alemão de quinta, mas de ser
muito enrolado, mesmo. São ideias já muito difíceis por si só; se não são
apoiadas por uma expressão muito clara, então lascou. Vira coisa de iniciados.
E aí eu fico pensando: se eu, que fiquei todo o tempo que fiquei na faculdade, e
já possuo um espaço de filosofia há doze anos, tenho tremenda dificuldade em
entender algumas teses e raciocínios, que fará com quem nunca tangenciou com o
tema nem de perto?
Eu tento, dentro das limitações que eu tenho, traduzir
aquilo que consigo para vocês, meus rarefeitos leitores, mas eu não estou
dentro da academia. Alguns divulgadores fazem, e bem, esse trabalho mais
massivamente, mas a sensação que temos é sempre uma só: quem os busca está mais
interessado em passar no ENEM do que aprender novidades das discussões da ágora
filosófica. O que está sendo discutido neste momento em termos de metafísica,
de epistemologia, de estética, até mesmo de ética, algo um pouco mais próximo
do quotidiano das pessoas. A uma primeira vista, parece que é eternamente a
mesma coisa, o que não é verdade. As ideias filosóficas provocam teses
científicas, e estas, uma vez desenvolvidas, retornam novamente à filosofia,
que vai começar a tatear novamente a realidade, para desafiá-la e repropô-la,
fazendo com que a própria existência ganhe novas valorações. Se o mundo é hoje
um lugar um tantinho melhor para viver, foi porque um dia algum filósofo se
perguntou sobre o que era um mundo melhor. Mais ainda: perguntou o que era
mundo e o que era melhor. Por isso, não podemos nos colocar nos confortáveis
assentos da torre de marfim para um dia mais tarde ficar reclamando que as
pessoas acham que a terra é redonda. Não é verdade?
Bons ventos a todos!
Recomendação de canal:
Comecei a acompanhar este canal a pouco tempo. Apesar do uso
extensivo de click baits, seu conteúdo me parece bom e vale a pena ser
acompanhado para se atualizar sobre as novidades no mundo científico.
Olá, Ciência: https://www.youtube.com/@olaciencia
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