(A Alemanha é uma das maiores fornecedoras de autores para a Filosofia de todos os tempos, somente comparável à Grécia antiga. Vamos tentar entender quem foram os "pais" dessa galera toda, e porque influenciaram tanta gente).
Olá!
Não é a primeira vez que eu venho para Curitiba. Logo no
final do verão, eu vim aqui para conhecer o apartamento que o filho mais velho
alugou para exercer seu ofício nesta metrópole mais fria de Terra Brasilis.
Acontece que estávamos em plena fase mais crítica da pandemia que ainda nos
preocupa, e, sendo assim, limitei-me a jogar conversa fora pelos cinco dias em
que lá estive. Desta vez, no entanto, ao invés de cortar a sinuosa estrada que
a liga à Paulicéia Desvairada, pus-me
ineditamente dentro de um avião e, já devidamente transformado em jacaré,
pude conhecer um pouco melhor a cidade, mesmo que ainda com uma boa e
justificada dose de restrições. Além de ir conhecer os três principais estádios
da cidade (sem ver jogos), fui a mais alguns ambientes públicos, o que gostaria
de compartilhar e filosofar com vocês, meus pacientes leitores. O primeiro
deles foi o Bosque Alemão, e é sobre ele que me debruçarei a partir de agora.
Curitiba guarda uma boa dose de semelhanças com São Paulo.
Ambas são cidades são sedes de metrópoles que arrastam sua influência por
muitas cidades, e são relativamente próximas ao litoral, que ficam no cimo da
serra que lhes afasta do nível do mar. Com isso, temos uma quantidade grande de
desníveis compostos por morros e colinas, o que pode ser facilmente observável
neste parque. Também em ambas há uma vasta colonização de povos estrangeiros,
inclusive de alemães. Só que em Curitiba essa presença se faz sentir com mais
peso. Este espaço é todo voltado para a cultura tedesca, sendo que o portal da
parte baixa é a reprodução da Casa Mila, uma antiga construção em estilo
próprio que ficava no centro da cidade. A praça à sua frente pretende ser uma
homenagem aos escritores humanistas alemães.
Este lugar, dividido em duas partes de grande diferença de altura, era uma antiga chácara da família Schaffer, onde há preservado um bom trecho de Mata Atlântica nativa, que pode ser bem observada a partir do seu mirante (falarei sobre ele daqui a pouco) e que permite dar uma olhada em uma boa camada de Curitiba.
Existe algum problema basilar no sentido adotado? Mais ou menos. Se por um lado subir te fará mais exercício às pernas, por outro a história clássica de Joãozinho e Maria, escrita em quadrões de azulejo nos nichos de madeira ao longo da trilha, ficará invertida. Essa fábula é certamente uma das mais conhecidas dos irmãos Grimm, e versa sobre um casal de irmãos que se perde na floresta e vai buscar refúgio na casa de uma bruxa. Mais não digo, para não dar spoiler.
No meio deste caminho, há uma casinha que abriga uma biblioteca infantil, ainda fechada devido à pandemia, e que representa justamente a casa da tal bruxa, com um lago e uma ponte bem próximos a ela, e é chamada de Casa Encantada. Parte do lugar é todo dedicado ludicamente à feitiçaria.
Na ponta de cima da trilha, há uma praça que constitui um
conjunto que dá toda a razão do parque: um memorial à cultura dos imigrantes
alemães que povoaram a cidade.
A principal edificação é uma antiga igreja de madeira que foi transferida do bairro do Seminário, uma reprodução das igrejas luteranas teutônicas, com a simplicidade e rebuscamento que lhe são peculiares. Aqui, ela foi transformada em um oratório dedicado a Johann Sebastian Bach, onde são executados concertos de música clássica, embora ainda não tenha sido reaberto para este fim.
No material que pesquisei, obtive a informação de que há nascentes neste morro. Não sei se são suficientes para produzir toda a cascata que se esvai morro abaixo, mas foi aproveitado o declive para construir uma escadinha úmida.
Na parte de trás da capela, há uma confeitaria que me trouxe lembranças de infância. Meu avô tinha uma oficina eletrônica, que ficava na garagem alugada por uma alemã, que chamávamos de Dona Cathe. Era muito difícil de conversar com ela, mas ela tinha a linguagem que as crianças melhor entendem: a dos doces. Esses tipos de bolachinha de gengibre eram uma de suas especialidades, além de outros acepipes que usam uma quantidade de mel suficiente para abastecer uma família inteira de ursos.
Mas há a Torre dos Filósofos, e eu preciso falar dela, como
é absolutamente óbvio pela natureza do meu espaço. Trata-se do elemento de
ligação entre a trilha de João e Maria (ou Hänsel und Gretel, no original
germânico), com uma escadaria de madeira que conduz ao topo do mirante, de quem
falei logo aí atrás.
No seu topo, há o teto bicudo, que desemboca na passarela que transpõe a nascente e leva ao oratório e à confeitaria. Não consegui muitos detalhes sobre a homenagem em si, se a arquitetura quer dizer alguma coisa de especial ou mesmo qual é o escopo dos homenageados.
Isso porque a filosofia alemã é imensa, somente comparável aos gregos da época clássica, tanto que os ingleses do Monty Python não perderam tempo em referenciá-los no grande clássico do futebol filosófico mundial, nessa engraçadíssima esquete. Desde que veio o Iluminismo e seu arejamento de ideias, o pensamento alemão veio enriquecendo o cabedal intelectivo até os dias de hoje.
E não são contribuições quaisquer. Foram feitas em
quantidade, mas principalmente em qualidade. Qualquer lista de dez mais incluirá
pelo menos cinco alemães na contagem. Cheguei a pensar em fazer uma lista de
textos de autores alemães que já usei neste espaço, mas concluí que ficaria
trabalhoso para mim e enfadonho para vocês, de tantos itens que resultariam.
Resolvi então botar a bola para funcionar e fazer um
exercício mental: tentar detectar as causas de tanta profusão e traçar um
itinerário para se chegar onde se chegou. E entendo que o fenômeno se deu por
dois filósofos fundantes do pensamento moderno, sendo que um produziu uma
miríade de seguidores, enquanto o outro, de detratores. Trata-se de Kant e
Hegel.
É preciso dar um passinho atrás para entender ambos os casos,
no entanto. Isso acontece porque cada um deles teve seu pensamento influenciado
por um determinado contexto, embora haja vários pontos de intersecção entre si.
Vamos solvendo esse substrato aos poucos, começando pelos caminhos que levaram
a Kant.
Desde a Renascença, duas correntes muito sólidas haviam se
estabelecido na questão da teoria do conhecimento. Havia uma querela em cima de
qual seria a principal fonte cognitiva do raciocínio humano, coisa que já
debati muitas vezes por aqui. Na Europa continental, a principal tendência era
o racionalismo, escola que se caracterizava por um primado da razão na
aquisição de conhecimentos. Grosso modo,
os racionalistas diziam que todo o conhecimento já estava embutido na própria mente
desde o nascimento, e o processo cognitivo era uma característica inerente.
Aprender nada mais era do que despertar conexões que já existiam dentro dos
cérebros, de maneira inata. Já nas Ilhas Britânicas a principal tendência epistemológica
era o empirismo, que dizia ser a mente um grande estoque de informações, que
eram apreendidas através do contato dado através dos sentidos, sem existir nada
de anterior que fosse ativado por um processo cognitivo. O aprendizado, dessa
forma, era aquisição, e não despertar. Na primeira tendência, tínhamos Descartes
à frente; na segunda, Francis
Bacon.
Inicialmente, Kant desejava estabelecer uma visão mais
robusta sobre a Metafísica, especialmente trazendo novos elementos sobre a
monadologia de seu conterrâneo Leibniz.
Entretanto, à medida que ia tomando contato com ideias contrárias ao pensamento
metafísico, em especial ao “despertar do sono dogmático” provocado pela leitura
de Hume,
foi agrupando elementos para fundar sua “revolução copernicana”, abandonando a
leitura inicial pretendida e se voltando para a superação das distinções entre
os modelos de cognição, o que mudaria por completo os rumos da Epistemologia.
Até então, todos os filósofos tinham para si que o processo
de conhecimento se dava em função da análise de um objeto qualquer.
Observávamos uma maçã ou uma pitanga e dela tirávamos conclusões, seja pelo
puro raciocínio (como gostariam os racionalistas), seja pela coleção de
conhecimentos gravados em nossa memória (como deduziam os empiristas). Ou seja,
o objeto está no centro e os sujeitos que o observam ficam ao seu redor. A
metáfora copernicana diz respeito exatamente a este ponto. O astrônomo polonês
fez uma célebre
inversão na posição do planeta Terra com relação ao sistema solar,
tirando-o do centro para colocar o Sol no lugar. Isso resolveu uma série de
problemas na observação das órbitas e na posição do sistema como um todo, e daí
para frente toda a cosmologia recebeu somente aperfeiçoamentos, sem mudar
substancialmente as teorias sobre sua estrutura.
Kant faz uma revolução inédita, que passa a considerar o
sujeito em sua relação com o objeto, que é retirado do centro da relação, assim
como Copérnico fez com o planetinha azul e cada vez mais quente. Todas as
teorias significativas posteriores passaram a levar a influência que o sujeito
doa ao processo cognitivo. Isso pode parecer óbvio hoje em dia, mas é porque a
influência kantiana se faz sentir até hoje.
Destarte, a partir da revolução de Kant, não é mais o objeto
que se apresenta ao sujeito para que este o conheça, mas sim é o sujeito que
concede sentido ao objeto observado, deixando de ser um polo passivo na relação
cognitiva. O sujeito possui suas leis particulares de sensibilidade, o que lhe
dá um modo particular de intuir os objetos de estudo. Os objetos não são mais
coisas em si mesmas, mas coisas em relação ao sujeito, cada um com suas
peculiaridades, e isso faz absolutamente toda diferença do mundo. A razão
inatamente fornece a estrutura do sujeito para a aquisição do conhecimento, o
que bate com o que prega o racionalismo, enquanto a apreensão do mundo exterior
se dá pela via dos sentidos, como queriam os empiristas.
É aqui que surge a noção de noumeno e fenômeno, a grande sacada kantiana.
Como cada sujeito está colocado com suas particularidades na cadeia cognitiva,
cada um terá uma intuição própria dos objetos do conhecimento. O noumeno, que
seria o objeto comum observável por todo e qualquer sujeito, surge a cada um de
uma forma diferente, ainda que sutilmente, porque o sujeito participante desta
relação carrega consigo intuições próprias. A coisa-em-si, portanto, não é observável,
mas apenas os fenômenos, as coisas tais quais se apresentam à uma consciência
em particular, que, além de tudo, tem seu conjunto próprio de sentidos.
Quando Schopenhauer
nos fala sobre a vontade e suas representações, ou Husserl
cria uma metodologia levando em consideração a intencionalidade da consciência,
ou ainda Heidegger
explana sobre as diferenças entre Ser e ente, ou Cassirer
nos traz a filosofia das formas simbólicas, é a Kant que todos eles estão se
referindo. Toda psicologia que se fundeie na ideia de interação entre sujeito e
objeto também lhe é tributária, como bem acontece com a Gestalt
e outras correntes.
Por outro lado, e mesmo que Kant tenha tido bons
contestadores, as coisas para o lado de Hegel foram bem menos confortáveis,
embora ambos tenham formulado sistemas filosóficos completos. Isso
provavelmente se dê porque Hegel tenha se mantido em um plano mais abstrato, e
ainda mais complexo que o filósofo de Königsberg.
O prelúdio para o boom da filosofia na Alemanha vem com um
movimento literário que ficou célebre no mundo inteiro, cada um com suas
variações e peculiaridades: o Romantismo. Como houvessem dado seus primeiros
passos na França, as linhas de pensamento vindas do Iluminismo eram
marcadas por um apelo à racionalidade recorrente, gerando uma reação por parte
dos literatos e demais artistas. Embora possa parecer contraintuitivo que a
liberdade de pensamento preconizada pelo Romantismo conduzisse a um novo
caminho para uma filosofia que buscava se aproximar das ciências, é com esse ethos que é semeado o Idealismo alemão,
cujo poderoso-chefão era Hegel.
O espírito do Romantismo marca uma espécie de conflito
interior que se põe em contraste com a realidade. O mundo exterior nunca é
satisfatório para o romântico, e a aproximação mencionada entre Filosofia e Ciência
retira dele um dos pontos de conformação, porque ambas vão buscar o mesmo
escopo objetivo. Diante disso, o Romantismo busca dar ênfase no ideal, em
contraponto ao real. Schlegel,
Hörderlin, Novalis, Schiller e principalmente Goethe formaram um corpus cuja principal maestria estava em
manter o subjetivismo da sensibilidade.
Hegel, derivando sua Filosofia dessa “imaterialidade”, bem
como pelo resgate e crítica aos estudos de Fichte
e Schelling, indica que a realidade não é algo duro e estanque, como se fosse
descritível nos manuais, mas que possui um dinamismo tal que só pode ser
chamada de “processo” ou de “movimento”, bem ao gosto do que nos contaria o
antiquíssimo Heráclito
com seu devir. A realidade, portanto, não é uma substância, mas Espírito (geist). Dessa forma, a busca por uma
verdade não deve olhar única e exclusivamente para os objetos, mas para toda
transformação que ocorre nas ideias que existem sobre ele, porque não são só as
coisas que mudam, mas também as noções que se tem sobre as coisas.
Vamos explicar um pouco melhor, usando exemplos simples.
Quando eu era rapazola, queria por toda lei fazer uma tatuagem. Eram tempos em
que fazê-la era realmente desafiador, porque carregavam a marca da revolta e da
marginalidade. Eu tinha dessas coisas, mas esse tipo de marca tinha alguns
efeitos imediatos, dificuldade para conseguir emprego à frente. Outra coisa é
que os tatuadores exerciam suas artes e ofícios em antros, quase na
clandestinidade. Hoje em dia, qualquer mocinha de 14 anos imprime seus
ombrinhos e pezinhos com apoio dos pais, também eles tatuados nos shopping
centers em estúdios modernos e cheirosos. O que mudou? Foi alguma lei proibindo
o preconceito contra os tatuados? Não. Mudou o geist dos tempos, e tatuagens, piercings,
alargadores e outras modificações corporais são bem vistas.
Notem que não foi uma única pessoa que mudou sua opinião a
respeito do tema, mas uma espécie de “ar” movido pelo aumento das liberdades e
da importância do corpo, gerando novos costumes, modificações corporais
inclusas. O Espírito ao qual Hegel se refere, portanto, nada tem a ver com transcendentalidade
ou seres divinos, mas com a consciência coletiva. É como qualquer peça de
roupa: a primeira pessoa que a usa é ousada ou excêntrica, mas aos poucos
outras começam a usá-la até ficar bem aceita, e virar moda. As consciências
individuais passaram, pelos mais diferentes motivos, a mudar a maneira como
viam tal peça, até que a mesma vire démodé,
em constante transformação.
Sendo assim, Hegel entende que o movimento do Espírito, e
consequentemente da própria História, é
dialético. O Espírito manifesta-se de três formas. A primeira é o Ser em si
mesmo, a segunda é o Ser do outro e a terceira é o retorno do Ser. Uma planta
qualquer, por exemplo, começa sua vida em forma de semente, o que podemos
chamar de Ser. Em um determinado momento, alguma condição fará com que essa
semente encaminhe sua transformação, e ela deixará de ser o que ela é,
caminhará rumo à sua negação, vai virar outra coisa; até que ela retorna ao
Ser, volta a ser Espírito novamente, já devidamente transformada, na forma de
uma outra planta. Esse processo de tese, antítese e síntese é refletido em tudo
o mais, inclusive na História, no conhecimento e na realidade.
Hegel e seu Idealismo colecionaram seguidores ainda em vida,
mas também se formaram inúmeros opositores. Marx,
Feuerbach
e outros recepcionaram bem parte de suas ideias, mas rechaçaram outras. Bruno
Bauer e Max Stirner colocaram-se à esquerda do que dizia Hegel, discordando
especialmente de sua visão abstrata e de suas posições conservadoras (estranho
isso em um filósofo cuja principal chave de leitura é a transformação). Schopenhauer
era crítico acérrimo do filósofo de Stuttgart, bem como também ocorria com Nietzsche.
Notem como grande parte dos seguidores e detratores destes
dois mestres são alemães ou de países próximos. Estamos em um tempo onde não
existiam computadores e suas redes, nem mesmo rádio, e toda comunicação se dava
através de escritos, o que sem dúvida favoreceu a circunscrição a uma
superfície territorial mais limitada. Mas podem perceber como eles foram
fundamentais para movimentar as ideias e discussões acadêmicas, gerando
produção filosófica rica e abundante até os dias de hoje. Por isso a homenagem
colocada no Bosque Alemão é facilmente compreensível. A filosofia é realmente
um orgulho para os alemães.
De resto, apesar da chuva, mais um lugar para agregar aos
meus registros, aproveitando para matar as saudades do moleque que resolveu ir
para tão longe, junto com sua companheira inseparável, mesmo que ainda de
máscara e com álcool-gel no bolso. Bons ventos a todos!
Recomendação de visitação:
Como já recomendei as principais obras de Kant e Hegel neste
espaço, e ainda espalhei um monte de links pelo texto todo, vou me limitar a
recomendar a visitação do Bosque Alemão para quem estiver pelos arredores de
Curitiba:
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