(Sempre que falamos sobre os primeiros filósofos, esquecemos de Xenófanes, mas sua visão era bastante própria e interessante)
Olá!
Os campinhos do Disparada e dos Veteranos, o quarteirão da
Doces Santa Fé, as chácaras nas margens do Córrego da Moóca, as bordas da
ferrovia Santos-Jundiaí, o caminho que acompanhava a adutora do Rio Claro, o
quintal da Dona Lúcia, a rua da minha casa. Estes eram os lugares onde
eu-menino respectivamente jogava bola, empinava pipas, roubava amoras, cortava
caminho, ia para a escola, buscava ovos e, claro, saía de casa. De comum, todos
estes lugares tinham o piso: terra, a terra batida típica das cidades que
transitam de um ar ainda rural para a definitiva metropolização. Aquela terra
já pobre, dura, cheia de formigueiros, e que criam uma espécie de camada
saponificada quando cai a garoa, dando a ilusão de rinque de patinação
indesejado a quem sai por compromisso.
Minha casa ‘inda tinha daqueles raspa-barros no portão, peça
encontrável nos bairros mais antigos até hoje como um monumento aos incidentes
de outrora, e minha mãe mantinha um pano de chão bem ao lado da torneira, para
eu dar uma “tirada no excesso” assim que chegasse da rua com terra além dos
sapatos. Fazia isso para evitar o rastro que chegava até o banheiro, e também
não ter que me aplicar um dos seus inúmeros corretivos.
Naquelas pegadas, havia histórias de vida, como essas que eu
conto agora. Era a terra que veio sendo cada vez mais afastada de nossos pés
imundos, sempre sujeitos a cortes e vermes, mas que hoje estão protegidos por
camadas de impermeabilização e tênis de marca. A mesma terra socada está
embaixo do asfalto e do cimento, isolada das calçadas por muros tão altos que
nem conseguimos supor se ainda há alguma flor que se plante nela, fora dos
vasos que ficam nos parapeitos das janelas.
Esse é o painel que já meus filhos tinham para se relacionar
com a terra, embora ainda na infância deles houvessem alguns poucos terrenos
que hoje estão com prédios em cima. Essa terra que ainda é muito visível nas
cidades do interior virou quase um artigo de exposição em Terra da Garoa e outras
capitais, e é óbvio que esta relação tão telúrica em outros tempos está
completamente diferente hoje em dia.
Sinto falta da terra? Olha, sinto falta é da minha infância,
mas não posso deixar de sopesar custos e benefícios. Por um lado, era o inferno
quando chovia e precisávamos chegar de aventais brancos na escola, porque os
respingos eram inevitáveis, mas isso garantia matéria-prima para as boas
guerras de lama no retorno. Asfalto representa piso decente para colocar o
carro, assim como aumenta o perigo de atropelamentos de nós-crianças brincando
nas ruas. Era garantia de espaço para brincar, assim como das doenças de
barriga, que nos obrigavam ao dia do “salamargo”, uma mistura de ritual com
higiene, quando nossas avós deixavam o medicamento exposto ao sereno, para no
dia seguinte fazer a purgação. Não estão entendendo? Tinha um dia todo santo
ano em que éramos vermifugados, com sal amargo, licor de cacau ou limonada
purgativa, qualquer um dos três, que funcionavam de maneira similar: o purgante
dava uma caganeira daquelas, o que fazia com que os intestinos ficassem
“depurados”, ou seja, tudo se esvaísse das tripas, incluindo os vermes. Acho
que funcionava, porque eu estou vivo até hoje.
Então é muito complexo dizer se era melhor ou não o tempo da
terra nas barras das calças. Tudo vai depender de se achar isso uma sujeira
indesejável ou um romântico distintivo dos tempos. Tendo a acompanhar o tempo
que passa, e prefiro as coisas como estão, desde que preservados os devidos
espaços para o equilíbrio pluvial de nossas cidades.
Falo tudo isso porque estou inspirado pela terra e pelo
irrigador de plástico que instalei no meu quintal. É a prova maior de que coisas
baratas não são sinônimos de coisas ruins. Gastei exatos vinte reais em um
treco desses, que fica espetado na terra e girando de acordo com as regulagens,
o que é uma autêntica mão na roda. É ligar a mangueira e contar dez minutos
para que todo o projeto de horta fique devidamente molhado, sem qualquer tipo
de esforço.
Vendo que deu certo, vou colocar mais uma dessas na diagonal oposta do quintal e cobrir o terreno com mais precisão e menos força necessária, economizando água. Aproveitei o calorão infernal do Vale e tomei um banho de aspersão, como não fazia há muito tempo.
Ficar na chuva simulada, enchendo os pés do antigo barro da
minha infância me fez passar pela cabeça pensamentos igualmente infantis, como
aquela velha assertiva bíblica – tu és pó e ao pó tornarás. Como seria se
desmanchássemos ao contato com a água? Fiquei pensando nos filósofos da physis, aqueles cujo grande propósito
era encontrar a arché, o fundamento
de toda a realidade, conforme esmiucei aqui.
É sempre fácil lembrar de Tales,
Empédocles,
Anaximandro,
Demócrito
e outros, mas poucos mandam de cara Xenófanes de Cólofon, talvez porque ele
tenha eleito a terra como elemento primordial, o mais simples de todos, o mais
ordinário, o mais, digamos, sem graça. Só que seu pensamento foi muito mais
sofisticado do que essa constatação pode fazer crer, a ponto de ser uma espécie
de pioneiro do monoteísmo. Vamos falar sobre ele.
A questão da arché em nosso herói ficará para o final. Seu
principal pensamento tem a ver com a concepção que os antigos gregos tinham
sobre suas divindades. A religião pública grega era caracterizada por deuses
idênticos aos humanos, com duas diferenças fundamentais: a imortalidade e o
poderio. De resto, tudo igualzinho, seja no físico, seja nos temperamentos,
seja nos costumes e por aí vai. O deus grego é tal e qual um grego. Xenófanes
observa que os deuses etíopes são negros e com os narizes largos, assim como os
deuses trácios são ruivos e de olhos azuis, repetindo o mesmo fenômeno que
ocorria na Grécia: os deuses locais são reproduções dos homens locais. Ele
chegou à conclusão de que, se os animais possuíssem discernimento suficiente
para moldar seus deuses, também o fariam à sua imagem e semelhança, com poucos
diferenciais.
Isso tudo levou Xenófanes a se contrapor às teogonias de
Hesíodo e de Homero, que nada mais faziam do que sistematizar o pensamento
teológico do grego comum: os deuses nada mais são do que homens privilegiados,
e que assim são porque cada cultura molda seu deus, como sintetizaria muitos
séculos mais tarde o alemão Ludwig
Feuerbach, que afirmava ser a Teologia uma forma de Antropologia, onde os
deuses de uma cultura dizem muito sobre a consistência dos homens desta mesma
cultura. Sendo que este último influenciou decisivamente na tese marxista da
alienação, poderíamos dizer que Xenófanes era um pré-comunistão?
É forçar muito a barra, né? Até mesmo porque, se Xenófanes era
contrário ao pensamento teológico helênico, isso não queria dizer que ele mesmo
não tivesse suas próprias ideias com relação ao assunto. É um pensamento
bastante inovador para a época, que abandonava a antropomorfização dos
fenômenos e descarregava das divindades as paixões humanas e seus consequentes
defeitos, dando rumo a uma forma de monoteísmo por um lado, de panteísmo por
outro.
As réguas humanas são ineficazes para mensurar os deuses. Uma
coletânea de deuses feitas a partir dos fenômenos que observamos no cosmos,
como era de rigor no paganismo grego, era uma simples forma de suprimir a falta
de reconhecimento que a divindade está em outra espécie de dimensão. Isso
acontece porque, segundo Xenófanes, o universo é uno e deus é uno,
identificando-se um com o outro. Não uma magna
comitante caterva olímpica, como diriam os gregos, ou uma Asgard nórdica,
ou qualquer outra forma de residência divina, porque a deidade não está aqui ou
ali, ela se espraia pelo universo inteiro e é o próprio universo inteiro, ideia
que mais tarde veio trazer problemas a gente como Giordano
Bruno e Espinoza.
Notem que a proposta de Xenófanes é ao mesmo tempo
monoteísta, porque preconiza que apenas um deus existe, e não vários; e
panteísta, porque sendo deus o universo inteiro, tudo é deus, imutável porque
pleno, irremovível porque alocado nos fundamentos. Esse é o principal ponto do
frágil vínculo que os historiadores da Filosofia fazem com os demais eleatas,
Parmênides à frente. Entretanto, os filósofos de Eleia eram fundamentalmente
ontológicos, enquanto Xenófanes busca uma resposta cosmológica, como veremos
adiante.
Diferenciar o monoteísmo do panteísmo parece simples, mas
não é. Pelo ordinário estudo etimológico, um seria significado de “deus único”,
enquanto o outro seria "tudo é deus", mas é plenamente possível fazer
coincidir ambas as visões. Se esse tudo que significa o pan grego se referir a um único deus que se revela em vários
aspectos e de múltiplas formas, então teremos uma coincidência de significados.
Isso pode parecer estranho porque estamos acostumados a monoteísmos com um deus
que se aparta – ele cria o universo e os homens, mas não se identifica com
nenhum deles. Já esse panteísmo de um deus só é uma inovação clara, na medida
em que a própria substância divina é a arché: tudo emana dela e permanece nela.
Esse é o modelo de deidade tremendamente mais sofisticado que os deuses
antropomórficos dos gregos, fortemente vinculados às características físicas e
psicológicas dos humanos.
O que não está explícito atrás dessa maneira de pensar é uma
epistemologia. Não é dado ao homem compreender toda a dimensão do universo, e
por este motivo ele tem necessidade de fazer adaptações. A majoração das
propriedades humanas para emular deuses é uma mostra de que temos um impulso em
cobrir buracos cognitivos, o que fazemos até hoje (vide aqui
e aqui).
Essas teses que criamos tem a aparência de verdade, mas são apenas opiniões. O
universo como algo imóvel e imutável é impossível de perceber, e somente pode
ser deduzido através do intelecto. Olhando através dos sentidos sempre se terá
a sensação de mudança e transformação, no que é o principal ponto de contato de
Xenófanes com os eleatas.
Xenófanes ainda tinha uma concepção original com relação à arché. Diferentemente dos demais filósofos-físicos, o elemento que ele entendia ser a essência primordial limitava-se ao próprio planeta, distinguindo-se do uno no sentido de que, dentro de sua esfera, era o princípio originador. Nisso não há contradição, porque o uno dá origem a essa arché, que, por sua vez, é basilar na constituição de tudo o que existe nesta combalida bola azul. Esse elemento era a terra.
E por que ela? Xenófanes faz observações muito interessantes
para chegar a esta conclusão. Primeiramente, observa que, apesar da imensa área
marítima que circundava o mundo conhecido, sempre ela era fundeada por terra,
por mais profunda que se encontrasse. O fundo de um rio era terra, de um lago,
de um poço, do oceano. A água se fazia misturar com a terra, até o limite onde
somente ela existia. Além disso, e o que é mais astuto, nosso amigo de Cólofon
observava que era possível encontrar conchas e fósseis de peixes em lugares
muito distantes das margens oceânicas. Isso o fazia concluir que esses lugares
um dia estivessem cobertos de água, e por isso esses fragmentos se encontravam
lá. A presença destes restos de seres vivos era uma maneira de antever seu
retorno para o elemento fundamental, o que reforçava sua tese.
E é isso. Vou aproveitar o calorão e relembrar um pouco mais dos tempos
de criança. Agora no cair da noite é o momento ideal para regar o quintal e
tomar um banhão com essa nova mangueira coxinha que eu arrumei. Bons ventos a
todos!
Recomendação de canal:
Vou recomendar o canal Parabólica, do professor Pedro Rennó, que contém boas séries sobre Filosofia, incluindo os pré-socráticos que costumo abordar neste blog.
https://www.youtube.com/c/Parab%C3%B3lica
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