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terça-feira, 9 de agosto de 2016

Heliocentrismo e geocentrismo, mais um Fla-Flu para nosso dia-a-dia (Pequeno guia das grandes falácias - 30º tomo: o apelo à crença [argumentum ad fidem])

Olá!


Que no mundo se vê toda sorte de malucos eu já sabia. Mas desta eu não esperava: há uma vertente de “iniciados” que são denominados como terraplanistas, que acreditam naquilo que seu nome indica: que a terra é plana. Vi alguns videozinhos que apresentam como provas de suas alegações o fato de que o horizonte de uma praia, por exemplo, pode ser visto aprumado e paralelo a um objeto reto, como uma régua. Este é um deles. Mas há muitos outros, desenvolvendo outras teses, inclusive envolvendo a Nasa.

É a retomada do ideário da antiga International Flat Earth Research Society, que achava que a principal prova para a correção de suas teses era a mais simples de todas – basta olhar para o horizonte e perceber que ele é plano.

Bom, a quantidade de maneiras de se comprovar o contrário é tão vasta que vou me limitar a uma só, ao alcance de quem presencie um eclipse: a sombra projetada da Terra na Lua denuncia um objeto esférico. Ah, mas a Terra pode ser redonda e chata. Tá bom, vai outro: os fusos horários. Como pode ser noite agora e ser dia no Japão? O fato de que vemos o horizonte como algo plano se dá pela infinitesimal proporção do nosso humano tamanho com o da Terra. Nada mais e nada menos.

Mas ao mesmo tempo em que esse tipo de doideira provoca mais risos do que atenção, há outras discussões que acabam se pondo mais sérias por conta de outros fatores, ainda que igualmente polêmicos. Falo especificamente do confronto geocentrismo X heliocentrismo. Dichavemos.

(Acreditem se quiser: neste EXATO momento acabei de ouvir no sacolão em que me encontro que é ruim para as mulheres comer muitas frutas, porque isso ESFRIA o útero!!! Predições da macrobiótica. Ahmaria! Atenção, febris! Frutas podem substituir a Dipirona com vantagens! Atenção, ninfomaníacas! Usem frutas quando se sentirem insaciáveis!! Método natural de moralidade).

O geocentrismo foi uma doutrina tremendamente persistente porque parte de elementos perceptivos, que eram os únicos que a humanidade teve ao seu dispor por longos e longos séculos. Imagine no que consistia observar o céu: olhar para todos os lados em todos os dias do ano e ver basicamente a mesma coisa – estrelas à noite, nuvens de dia, o Sol e a Lua. Sim, havia uma variação de posições, mas que não ocorria como em uma dança; era como um relógio. Uma estrutura repetitiva cíclica, como se os astros realmente girassem em torno do planetinha azul. Foi parte mesmo da genialidade humana perceber esse mecanismo e chegar às suas deduções.

Os ciclos astronômicos passaram a fazer parte das diferentes religiões, que começaram a marcar eventos importantes da história de seus cultuadores como se houvesse um laço entre si. É assim, por exemplo, que nasce a astrologia, dando função divinatória à mecânica celeste. Sabemos hoje que isso não funciona (muito embora exista quem não ponha o pé para fora de casa sem ler seu horóscopo), mas em uma época na qual as contingências sazonais traziam mudanças muito mais significativas no quotidiano das pessoas, também é facilmente compreensível o desenho dessa lógica.

Também sob o aspecto simbólico o geocentrismo tinha um forte motivador. A Terra, morada da humanidade, o néctar da criação divina, era o centro do universo inteiro, para onde convergiam e apontavam todos os seus componentes. O universo existia em função dos homens, e a Terra era o núcleo imanente daquilo que em Deus se encontrava o cerne transcendente: o planeta plasmava para o Homem, imagem e semelhança de Deus, aquilo que já desde o infinito existia em termos espirituais. Esse pensamento se tornou tão arraigado que foi parar nos livros sagrados, ganhando estatuto de lei divina. E, para exemplificarmos através do Cristianismo, trouxe grandes problemas àqueles que divergiram deste postulado, como se pode ver na Inquisição.

Somente no século XVI uma visão nova sobre o cosmos terá seu nascimento. Nicolau Copérnico, astrônomo polonês, começa a construir o modelo que faria colapsar a tese geocêntrica. Ele percebeu que os modelos propostos até então, em especial o de Aristóteles e o de Ptolomeu, eram bastante adequados para explicar as mudanças na configuração dos céus, mas precisava de intensos malabarismos para justificar as órbitas planetárias. Havia um movimento retrógrado dos planetas com relação à Terra que fazia com que estes aparentassem estar andando para trás. Pela perspectiva geocêntrica, seria necessário estabelecer órbitas espirais para explicar esse fenômeno, gerando um movimento denominado “epiciclo”, além de estabelecer uma certa excentricidade da posição da Terra em relação ao centro exato do sistema. A Terra continuaria a ser o objeto circundado por todos os demais astros, mas não estaria exatamente no miolo geométrico, e sim um pouquinho deslocado para um dos lados. Copérnico fez algo simples e genial para resolver o problema, como sabemos: tirou a Terra do centro e colocou o Sol em seu lugar, a famosa teoria heliocêntrica. O problema do movimento retrógrado foi resolvido instantaneamente, sem nenhuma espécie de forçamento de barra: a impressão que se tem de movimento inverso se explica simplesmente pela diferença de velocidade entre os planetas. É a mesma coisa que acontece quando estamos acotovelados em um semáforo no trânsito intenso. Quando o trânsito anda, temos a ilusão de que somos nós que estamos andando para trás, como se tivéssemos soltado o pedal do freio inadvertidamente, mas o fato é que são os carros ao nosso redor que estão se deslocando para diante, enquanto nos mantemos parados. Portanto, como a Terra se desloca em um raio em torno do Sol mais curto do que Marte, há a impressão de que este se desloca para trás. Se imaginarmos a Terra parada, ficamos com a difícil missão de compreender que tipo de movimento é este. Mas se a colocamos também em movimento, tudo fica absurdamente mais simples (e factível).

Ainda assim, a teoria precisou de ajustes, o que veio com as órbitas elípticas de Johannes Kepler, mas isso é história para contar em outro momento. De qualquer forma, a Terra foi vítima de rebaixamento para a quarta divisão. Triste destino para um time tantas vezes campeão.

E vejam vocês, hoje em dia sabemos que também a doutrina heliocêntrica não está completamente correta. De fato, o Sol é centro do Sistema Solar, mas não é nem ao menos o centro de um complexo maior, a Via Láctea! Se pensarmos em centro do universo, temos alguns desafios a enfrentar:

Um. Se o universo é infinito, vamos discutir sobre bobagens, porque algo infinito não tem centro, ou, sendo extremamente concessivos, qualquer coisa é centro do universo, seja qual for o ponto que adotarmos: a Terra, o Sol, a Lua, uma estrela, um cometa, nós mesmos;

Dois. Se o universo é finito, hoje não temos instrumentos nem métrica para saber. Desta forma, não temos como nos situar – se estamos próximos ao centro, na beirada ou a meio caminho de ambos;

Três. E se a tese do multiverso* estiver correta? Sim, sabemos que essa proposta ainda está no campo da metafísica, mas e se de fato nosso universo conhecido for apenas mais um entre muitos? Qual será a natureza destes outros universos e como saberemos se há algum conceito de centralidade possível?

Portanto, mesmo a teoria heliocêntrica é furada em certos sentidos. Mas é uma alternativa melhor que a opção geocêntrica, ao menos para a compreensão de nosso âmbito local, o sistema solar.

Só que a galera do geocentrismo não desiste. E o faz porque as descobertas científicas e as novas especulações metafísicas vão de encontro aos seus ditames sagrados. Dizem que preferem acreditar naquilo que é revelado divinamente, e não em contraposições de origem humana. Bem, isso é falacioso? Vamos com calma nessa hora.

Já discuti muitas vezes neste espaço que Ciência e Religião têm focos diferentes, e quando uma tenta penetrar no terreno da outra, bicam-se mais que galinhas no cio (galinhas no cio se bicam?). A Religião sempre parte mais da intuição; e a Ciência, da evidência. Mas quando falamos em Filosofia, partimos do suposto que devemos enfrentar o desafio da Lógica que é interposta em nossos argumentos. Vamos montar um exemplo.

A Filosofia teocêntrica da Idade Média (da qual se fala muito sobre sua aridez, o que não é uma verdade absoluta, como já discorri aqui) teve por um de seus propósitos mais fortes estabelecer uma conexão entre fé e razão. Como o item primordial para dar consistência à primeira era fundamentá-la robustamente, era necessário estabelecer uma lógica que tornasse Deus possível (ou, no mínimo, aceitável). Muitos dos filósofos da época tentaram montar suas teses, começando pela patrística de Santo Agostinho e passando por Santo Anselmo, Mestre Eckart, Nicolau de Cusa e outros, até chegar ao ápice com a escolástica de São Tomás de Aquino, que foi buscar em Aristóteles a estrutura necessária para solidificar suas proposições. Falo das leis de causa e efeito, cujo exemplo maior desemboca no Primeiro Motor Imóvel. Já falei sobre este argumento antes, no mesmo texto já citado, mas vou repeti-lo rapidamente. Tudo o que está em movimento no universo foi impulsionado por alguma coisa. A caneta que escreve estas linhas é movida por mim, que sou movido pela queima de nutrientes que há em meu corpo, que foram produzidos pela força germinativa da terra, que tem origem na deterioração de plantas, que extraem sua fotossíntese da luz do Sol, que é originada das reações nucleares de seu interior e assim ad infinitum.

Mas não há sentido em pensar que tudo é movido por uma força anterior se não for estabelecido um movimento inicial, que fez toda essa roda girar sem que ela mesma tenha sido movida. Ela impulsionou sem ter sido impulsionada. Essa força é chamada por Aristóteles de Primeiro Motor Imóvel. Primeiro por não haver nada anterior. Motor porque fez com que tudo a partir dele se pusesse em movimento. Imóvel porque, sendo causa sem ser efeito, não pode ser, ele mesmo, objeto de movimento.

Pois muito bem. Certo ou errado, o pensamento aristotélico é muito bem construído, porque dá uma resposta lógica à lei de causa e efeito. Mas o que é o Primeiro Motor Imóvel? Para São Tomás de Aquino, é Deus. Na doutrina escolástica, há dois modos de se chegar a uma verdade: a via da revelação natural e a da revelação sobrenatural. A primeira é manifestada pela análise do cosmos que nos cerca. Analisamos o mundo e o universo em si mesmos e descobrimos seus propósitos e funcionamentos. Esse é o âmbito que a razão atua: conceber e conhecer o mundo tangível. A partir do ponto em que se esgota o alcance da razão, temos a segunda via entrando em ação. E é nela que se pode reconhecer o Primeiro Motor como Deus: através da fé, que é intuitiva e que chega a locais onde a razão parou antes no caminho. Pode-se pensar em outro motor que não seja Deus? Pode-se. Mas também essa atribuição será matéria de fé, até o momento em que a razão tenha instrumentos suficientes para chegar a ela através da revelação natural.

Ufa! Tudo isso para demonstrar que um argumento que leve em conta uma crença não é necessariamente falacioso. Poder-se-ia falar em um Deus das Lacunas, mas, neste caso, o argumento colocaria um Deus simplesmente onde não há nada que explique melhor. No caso, como Deus está nas premissas, o argumento está construído para embasar a própria existência de um Deus, o que o torna indissociável do mesmo.


A crença é forte ferramenta para contrapor a razão, para o bem e para o mal

Mas há de fato algo chamado de apelo à crença e o mesmo pode ser confortavelmente falacioso. Basta que siga as regrinhas básicas do apelo: produzir dispersão e introduzir material irrelevante à discussão. É exatamente o que ocorre quando, à vista das provas do furo do geocentrismo, argumenta-se que os desígnios divinos não podem ser descritos pelo homem, e, portanto, não podem ser contestados. Essa é uma doença daqueles que abusam de interpretações literais dos seus livros sagrados, engessando o horizonte de quem busca pesquisas mais aprofundadas. Um bom exemplo vem dos mitos de criação das mais diversas religiões. Quando a Ciência demonstra a origem da vida através de uma mecânica natural, não está excluindo obrigatoriamente Deus da parada, mas está contestando a descrição ipsis litteris do processo constante no livro sagrado. Não se apela à crença quando se coloca Deus como um engenheiro que disparou essa mecânica ou como um maestro que a harmoniza, mas quando se diz que a Ciência mente pelo simples fato de que não há correspondência entre a descrição sagrada e a pesquisa científica.

Talvez essas pessoas ainda estejam muito imbuídas do mesmo sentimento que existia na marotíssima aposta de Pascal. Este filósofo, físico e matemático francês, de quem já dei uma palhinha neste texto, tem uma tese prá lá de pragmática para exercer uma opção sobre a existência ou não de Deus. Suas proposições são:
  • Se Deus existir e você acreditar nisso, seu ganho será infinito;
  • Se Deus existir e você não acreditar nisso, sua perda será infinita;
  • Se Deus não existir e você acreditar nisso, seu ganho será finito;
  • Se Deus não existir e você não acreditar nisso, sua perda será finita.
Traduzindo em miúdos, entre a eternidade do gozo ou da pena, seria melhor optar pelo primeiro. Se Deus não existir, pouco se ganha ou perde. Ou seja, se seguirmos à risca essas premissas, veremos que somente será verdadeiramente vantajosa a primeira, e, desta forma, o melhor mesmo é acreditar, garantindo passe livre ao céu (se houver). Se as divindades aguentarem essa esparrela, tudo bem. Mas, se o macete for mal visto, aí é um outro departamento.

Para finalizar, o pessoal que é adepto das Ciências pode discordar ponto a ponto do que eu falei aqui, mas este é um espaço da Filosofia, ou seja, da livre especulação. Isso inclui Deus. E o mesmo se aplica aos religiosos.

Recomendações:

A Suma Teológica é o conjunto de escritos de São Tomás de Aquino. É enorme e muito rica, redigida por um religioso extremamente culto, mas não é leitura fácil, dada sua erudição e extensão. Faz parte. Filosofia tem dessas coisas.

AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. 9 volumes. São Paulo: Loyola, 2006.

Copérnico escreveu o livro onde descreve o heliocentrismo em latim, sob o garboso nome de De Revolutionibus Orbium Coelestium. Em português, temos a seguinte edição:

COPÉRNICO, Nicolau. As Revoluções das Orbes Celestes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1984.

Um canal do Youtube que gosto muito é o Primata Falante, tocado pelo estudante de Física David Simões. Os links abaixo são, respectivamente, de um vídeo onde ele disseca as provas de que a terra é redonda e da entrada do seu canal. Curtam porque é bom.


O livro de Pascal onde está descrita sua aposta é o mesmo que já está recomendado no texto do link que mencionei acima. Consultem lá.

* O termo Multiverso está ainda na metafísica das teorias cósmicas. Na medida em que algumas teorias vão ficando cada vez mais consistentes, como é o caso do Big Bang ou dos buracos negros, novas formulações começam a ser especuladas. Algumas perguntas como “o que havia antes do Big Bang?”, “quem impulsionou o Big Bang?”, “onde deságua a energia e a matéria absorvida por um buraco negro?” fazem com que se creia que o universo observável não é único, e que o mesmo processo que gerou nosso universo pode ter gerado tantos outros, cada um com suas peculiaridades. O tema é instigante e voltarei a ele, com toda a certeza.

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