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segunda-feira, 18 de julho de 2022

O café filosófico do quotidiano - Dos aromas aos fundamentos da realidade

(O vaporzinho de café é, basicamente, ar. Algo tão simples pode dar fundamento a tudo o que existe?)

Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio. Nós mesmos somos e não somos.

Olá!

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O brasileiro se considera o habitante da terra do café, um dos poucos orgulhos nacionais. Não é, pelo menos como origem, como já contei para vocês neste texto, mas, se contarmos a quantidade de produção, aí sim, estamos por cima da sacaria. Não é nem o caso de se fazer aquela velha discussão da qualidade que vai para o exterior, e da zurrapa estapafúrdia que nos resta, até porque há ótimos cafés que ficam em Pindorama, bem mais caros, é bom que se diga. Mas é um tal de prensa francesa, cafeteira italiana, filtro japonês, suporte americano, que nem parece que vamos além da velha (e válida) calcinha da véia. Mas é um engano, para nossa alegria. Há alguns métodos bastante interessantes produzidos por aqui, trabalhados com seriedade para obter o melhor de nossos melhores grãos. É o caso do porta-filtro Koar.


Ele é fabricado em vários materiais, mas o que eu tenho aqui em casa é um de cerâmica, trabalhado em fornos de alta temperatura como os produtos fabricados em Cunha. É um método que vem recebendo cada vez mais consideração, entrando como modalidade nos concursos de baristas. Há um bistrô em Taubaté chamado Fryda Café, que não me patrocina, mas que recomendo, cuja principal especialidade é exatamente o artefato tupiniquim, que já lhe rendeu prêmios.


A intenção do Koar não é só ser bonito. A lógica por trás de sua manufatura está no formato serrilhado do cone, para evitar que o filtro fique colado em suas paredes, mesmo quando é escaldado.


Isso faz com que o método tenha duas características singulares. A primeira é possibilitar um by-pass para quem gosta de um café mais aguadinho (carioca, como se diz), sem a necessidade de se adicionar água depois do processo, bastando despejá-la em uma das ranhuras do utensílio.


A segunda, e mais decisiva, é a aeração que o sistema proporciona, já que o ar não está presente apenas pelo percurso da água no próprio pó, mas nas laterais do cone de passagem.


Para quem trata o café com seriedade, sabe que é necessário fazer uma pré-infusão antes da completa percolação. É o que a gente chama de blooming, palavra inglesa que significa algo como “florescer”, e corresponde àquele primeiro contato com a água que libera os aromas mais impactantes do café. No Koar (que não me patrocina também), é quase um estado da arte. A aeração faz uma crema que não é em qualquer lugar que conseguimos.



Nome do utensílio: porta-filtro de cerâmica

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: baixa

Espessura do pó: média

Dinâmica: o pó é despejado em um filtro já saturado com água quente (esta saturação precisa ser lenta para evitar que o filtro cole nas paredes do utensílio). Realiza-se uma pré-infusão de trinta segundos, para depois despejar o restante da água em três ataques.

Resíduos: Nenhum

Temperatura de saída: média

Nível de ritual: médio

São eflúvios, diria um poeta, aquelas sutis emanações que acariciam nossos sentidos. Mesmo quando não são visíveis, são ativadores da nossa percepção mais profunda, aquela ligada ao prazer e ao bem-estar.

Neste pequeno planetinha azul, esférico até onde eu sei, os melhores laboratórios não conseguem reproduzir o vácuo quase absoluto que existe em certos rincões deste universo. É muito estranha a sensação de que não há molécula de nada por milhões e milhões de quilômetros, um vazio tão completo que foge à nossa limitada capacidade de entendimento, na nossa cabecinha descontínua. Especialmente pelo fato de que, por qualquer parte que possamos pensar, o vazio não é de fato vazio. Um quarto fechado, uma garrafa tapada, uma câmara vedada, qualquer uma dessas representações são símbolos de vazio, mas que contém algo de material: o mais comum dos fluidos, o mais presente dos gases: o ar. Se pensarmos em uma lufada de café nas narinas, o que realmente ativa nossos sentidos é uma milésima parte da nuvenzinha. O que mais há é ar mesmo.

Excluídas as metrópoles mais poluídas e as florestas mais devastadas, pensamos no ar como algo que não tem cor, não tem cheiro, não tem gosto. Podemos notá-lo pelo tato ou pela audição, mas mesmo assim sob condições especiais: um vento que se esfrega nas vidraças dos edifícios, uma respirada mais forte na hora agá do… você sabe do que. Só que há tal habitualidade que não nos tocamos da existência do ar, e é com isso que os exercícios de meditação dos orientais trabalham - sinta o ar que penetra nas suas narinas.

Os gregos conjuminavam essas coisas, assim como nós fazemos ainda hoje. A diferença é que temos anemômetros e detectores que permitem saber da existência dos ares por toda parte, enquanto eles usavam a massa cinzenta e toda sua capacidade lógica. Eles se punham a deduzir as coisas sem ter nenhum instrumento à mão, e o faziam não só com uma precisão impressionante, mas com uma elegância quase lírica.

Os primeiros registros dessa aventura vêm de mais de 2500 anos atrás, na região da Jônia, mais especificamente da cidade de Mileto. É verdade que hoje esta cidade fica na Turquia, mas na época pertencia à Magna Grécia que imbuía toda a região com sua cultura. De lá, temos a aurora da coruja de Minerva e sua tríade inicial é composta por Tales, Anaximandro e Anaxímenes, sendo que já tratei mais aprofundadamente dos dois primeiros. Eu não tencionava mais tratar do tema da arché, porque eu mesmo já estou com gastura de tanto falar sobre origens da Filosofia e das coisas do cosmos, mas eu estava em dívida com a última perna do tripé e vou pagá-la agora. Sentem-se e acompanhem, será interessante.

Pensar a arché é transpor a linha que existe entre o que vemos e o que está além dos nossos sentidos. Evidentemente, podemos atribuir os fundamentos da realidade aos deuses, mas desde logo havia gente que se incomodava com soluções fáceis e conformistas, sem respaldo nas experiências que todos podem obter. Percebam, no entanto, que os primeiros filósofos não excluíam o componente metafísico da parada, mas procuravam dados da realidade para responder à pergunta: de que são feitas todas as coisas?

Os três milésios tinham uma hierarquia acadêmica entre si. Tales foi mestre de Anaximandro, que, por sua vez, foi preceptor de Anaxímenes. Isso não impediu que cada um tivesse sua própria concepção sobre os elementos primordiais. O que há de comum: existe um elemento que é subjacente a toda a realidade, que origina todas as coisas, que lhes dá sustentação e para o qual tudo retorna após seu ciclo de existência, independentemente de se tratar de seres vivos ou não. Enfim, há um monismo que lhes põe em acordo: a natureza é redutível a um único elemento. Agora, com relação a qual seria esse elemento, temos discussões. Tales vê que se trata da água, um elemento natural e material. Anaximandro dá sofisticação a ele, e pensa que a própria água tem um substrato, ainda material, mas extremamente mais plástico e indefinido, a quem dá o nome de ápeiron. Já Anaxímenes volta a pensar em um elemento detectável no universo material, mas entende que o ar tem mais predicados para ser esse elemento.

Talvez a proposta do ápeiron de Anaximandro fosse impalpável demais. Uma substância que preenchia todos os espaços, que podia tomar a forma de qualquer elemento e que se estendia do microscópico ao infinito ultrapassava as barreiras do empírico para ser aceita sem saltos lógicos. Entretanto, Anaxímenes aproveita certas características para aplicar ao seu ar, que não é uma mera substituição da água talesiana.

De fato, há algumas semelhanças entre água e ar, como a unicidade da substância, mas o ar de Anaxímenes pode atingir tal sutileza que abarca até mesmo o mundo espiritual. Para ele, a alma é composta por um ar de espessura tão fina que foge da possibilidade de percepção tátil. A prova de que as almas se compõem de ar vem do fato de que respiramos, e enquanto fazemos isso alimentamo-las do sopro que lhes é necessário. Quando um corpo morre, o primeiro efeito é a parada da respiração, que deixa de alimentar a alma pela sua extinção, e é o que chamamos de morte. Todo o processo que vai após isso é um retorno das diversas matérias ao princípio fundamental, deteriorando-se e soltando seus componentes na natureza, até o completo desaparecimento. É o corpo voltando ao ar, que novamente se espalhará e agrupará, para a constituição de novos corpos, em um ciclo sem fim.

Este é um ponto onde o ar se aproxima do ápeiron. Anaxímenes pensa em um ar infinito, que tem a capacidade de se estender para o mais longínquo dos espaços, e lá constituir seus corpos. A diferença fundamental é que as formas que se adotam não se dão por um elemento indefinível, mas que se condensa ou expande de acordo com a necessidade do objeto que se forma. Se o universo é infinito, infinito também é o elemento que lhe preenche.

A escolha do ar como elemento primordial em Anaxímenes está na dinâmica que observamos nos fluidos gasosos. É com ele que nascem os conceitos de distensão e condensação. Quanto mais o ar se condensa, mais ele se solidifica, e um diamante nada mais seria do que ar extremamente denso. Por outro lado, quanto mais se rarefaz, mais se assemelha ao vácuo, passando pelos estados da alma, do fogo e de tudo o que parece vazio, sem o ser. Portanto, há uma graduação: o ar mais adensado se transforma em névoa, em água, em terra, em rocha. Mais rarefeito, em fogo, em alma, em vácuo.

O ar possui, desta maneira, a maior plasticidade possível do universo. Pode ser comprimido em formas diminutas, e estendido a distâncias imensuráveis. Como se observa nos ventos, tem uma mobilidade que nenhum outro elemento consegue ter. Anaxímenes percebe que o ar sai da boca de um ser humano tanto para esfriar quanto para aquecer. Não é bem verdade? Quando damos uma tostada no dedo, a primeira coisa que fazemos é soprá-lo, ou seja, jogar ar. Quando queremos polir uma lente, baforejamos o mesmo ar, agora quente, para proporcionar umidade, conseguindo diferenciar a temperatura unicamente pela velocidade com que é impelido e o formato que adotamos com a boca. Tudo é uma só e mesma coisa, embora sob a aparência das mais distintas substâncias.

Por tudo isso, podemos perceber como Anaxímenes prefigura Heráclito ao dizer que o mundo está em permanente transformação, inclusive com a síntese feita na frase da epígrafe, que poderia ser confundida facilmente em uma prova do Enem. Mas, por outro lado, também antecipa a impressão de Parmênides de que as mudanças e impermanência são meras aparências: o que está por trás de tudo é uma única substância. Ele explica a motricidade universal de um modo que Tales não havia feito e corrige a tendência esotérica de Anaximandro, importada do Orfismo. Desta forma, embora Anaxímenes pareça meio sem graça frente ao pioneirismo de Tales e à sofisticação de Anaximandro, o fato é que, dentre os jônicos, é aquele que melhor utiliza as ferramentas filosóficas, ao fazer uso intenso da lógica, e essa é a verdadeira evolução em seu pensamento: embora a filosofia não se restrinja ao círculo empírico, ainda assim sua especulação não é um livre pensar que se afaste de um mínimo regramento, a perder-se da realidade.

Do ar que se fluidifica ao aroma suave, porém presente de meu icatu vermelho moído em espessura média, vem o aviso de que minha primícia matinal está às portas, cuja sorvedura me trará o mínimo ânimo para combater a preguiça e encara a tragicomédia de mais um dia. Bons ventos (e ares) a todos!

Recomendação de site:

Adivinhem… Anaxímenes produziu uma obra chamada Peri Physeos (De Natura, em latim), mais um de tantos “Sobre a Natureza” que foram produzidos na ocasião, mas que foi quase que completamente perdido. Livra a cara o fato de existirem alguns comentadores contemporâneos, que já mencionei em outros textos deste blog. Sendo assim, vou recomendar um site que contém uma linha do tempo bastante concisa, e que pode ser consultado por quem tem vontade de entender por onde percorrer os primeiros passos da história da Filosofia ocidental. É o NetMundi, cujo endereço está logo aí abaixo.

https://www.netmundi.org/filosofia/2017/linha-do-tempo-filosofia-pre-socraticos/

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