(Dogmatismo e ceticismo são coisas absolutas?)
“As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que a mentira”.
Nietzsche
Olá!
Meus caros, como eu já disse em alguns dos meus textos, nós,
brasileiros, somos uma composição tão heterogênea que parece que contemos todos
os elementos da tabela periódica em nossa composição. Sendo uma terra meio que
perdida para os padrões europeus, para cá acorreram tantas etnias distintas,
além das próprias misturas locais preexistentes, que usar o chavão “geleia
geral” não está de todo errado. Isso valeu para todos os negros, para os
italianos, para os portugueses e mesmo para o pessoal do oriente médio, ditos
turcos*, que se espalharam por todo o território nacional. Há, entretanto,
alguns lugares onde certas etnias são mais, digamos, endógenas. Falar de São
Paulo não vale, porque até colônia nepalesa há por aqui, mas, pensando em
outros locais, são dignos de nota os “bichos d'água” que povoam o Sul,
especialmente pelo clima mais próximo de sua terra de origem. Esse termo é meio
evidente: deriva da pele extremamente branca de seus descendentes. Tem lá um
quê de preconceito, mas não sou eu quem deu a denominação, mas os próprios
europeus de outras paragens, notadamente os italianos. A própria patroa tem seu
percentual de ungaresi.
Estou em Curitiba, mais uma vez em visita ao moleque mais
velho, que evadiu de Metrópole da Solidão (como o tempo voa) há mais de cinco
anos, e sempre que venho por esses lados, dou minhas sapeadas aqui e ali, e a
bola da vez é o lugar onde os poloneses abundantes nessas latitudes rememoram
suas procedências. Estou no Bosque do Papa.
Trata-se de uma antiga chácara que foi desapropriada
justamente para se transformar em um parque, por ocasião da visita do então
papa João Paulo II, em 1980.
Aquela era uma grande novidade, porque havia mais de quatro
séculos que apenas papas italianos saíam dos conclaves. Além disso, e
principalmente, tínhamos a primeira visita de um papa ao maior país católico do
mundo, e isso causou uma comoção geral, principalmente nos locais onde as
etnias suas conterrâneas eram mais numerosas, caso flagrante do Paraná.
Trata-se da combinação de uma reserva de Mata Atlântica com
uma aldeia polonesa. A primeira parte é representada por muitos exemplares da
espécie mais distintiva desta região, que são as araucárias, pseudopinheiro de
forma sui generis e de casca rugosa bastante espessa.
Já as casas são feitas da maneira legítima dos poloneses,
sendo que foram transferidas para cá de outros pontos da cidade. Sua
constituição é típica: troncos desbastados por falquejamento são empilhados e
ajustados por cunhas até fazerem encaixe uns com os outros. São casas que
possuem bom isolamento térmico e são relativamente fáceis de serem
transportadas, caso seja necessário.
O conjunto compõe o Museu da Imigração Polonesa, que tem
muitas coisas interessantes, mas que, por um motivo desconhecido, não permite
que sejam tiradas fotos dos seus interiores. Sendo assim, como um bom cidadão,
de uma família nem tão tradicional, mantive meu celular quietinho no bolso. Uma
das casas é sede do Museu Agrícola, que abriga instrumentos e utensílios do
dia-a-dia dos antigos colonos.
Já o centro de tudo está na capela montada na primeira das casinhas,
onde fica uma imagem da Virgem Negra de Czestochowa, padroeira da Polônia. É um
dos locais onde o papa foi recebido em sua visita, e há muitas fotos do evento
em seu interior.
Junto uma imagem da santa referida por amor à informação e
para deixar um contexto mais claro. Diz a lenda que a imagem foi pintada pelo
próprio evangelista São Lucas, o que é muito improvável. É uma imagem
tipicamente bizantina, que está associada ao cristianismo oriental. A pintura
original é considerada milagrosa, por ter mantido as cicatrizes do rosto de
Nossa Senhora mesmo após a tentativa de retoques, pelo que se diz. Está
disponível na página própria da Wikipédia.
Há ainda uma pequena loja de badulaques e petiscos típicos,
com as mesmas pêssankas que eu já havia visto no Memorial
Ucraniano.
Já dentro do bosque, a diferença de temperatura se torna
sensível. São trilhas de pedra que vão em um sentido de aclive, onde se
encontram várias espécies nativas e é povoado pelos sons de insetos e cantos de
pássaros.
No centro, encontra-se a estátua em homenagem ao papa. Eu
não sou um grande esteta e não quero colocar em causa o talento de ninguém, mas
eu queria dizer que é uma imagem meio… bizarra.
O que manda é a intenção, e os poloneses têm motivos de
sobra para tê-lo em alta conta. É o primeiro e único papa polonês, que lutou
muito contra a ditadura de Wojciech Jaruzelski, ditador polonês nos tempos de
início do papado. Sendo assim, mesmo estranha, a estátua é uma homenagem justa
para eles.
Estupidamente, não registrei em foto a homenagem ao
astrônomo Nicolau Copérnico, igualmente polonês e o mais renomado dos
cientistas polacos. Já falei sobre ele por
aqui, porque é aquele que sistematizou o heliocentrismo, que revolucionou o
conhecimento cósmico que se tinha até então. Novamente, com a devida
referência, coloco uma foto do ilustre cientista.
Embora ambos, o papa e o astrônomo, estejam aqui reunidos
por um elo bastante expressivo, pouco passa de suas nacionalidades. O conjunto
de ideias de Copérnico eram ainda muito incipientes para lhe trazer grandes
transtornos pessoalmente, mas vários de seus sucedâneos foram confrontados pela
mesma igreja liderada pelo papa por abraçar as mesmas ideias, e isso se dá pela
combinação de rigidez ideológica com poder concentrado nas mãos da instituição
religiosa. Novidades não costumam ser bem-vindas para aqueles que sentem a
possibilidade de ferir suas convicções. Mas os polos não são tão opostos assim,
ou, ao menos, uns possuem sabores dos outros, como veremos.
A coisa toda principia filosoficamente, quando discutimos
qual é a possibilidade que a mente humana tem para conhecer. Há toda uma escala
de cores que vão permear o espaço existente entre os dois extremos – o
dogmatismo e o ceticismo, tema que enfrentei em um texto já
bem antigo, mas que pode ser resumido da seguinte forma: diante da pergunta
“é possível conhecer?”, o dogmatismo responde com um gigantesco sim, que
verdades absolutas existem e que podem ser alcançadas por nós, caniços
pensantes. É uma posição fundamentalmente adequada para a religião, que precisa
de bases permanentes para funcionar. Já na outra ponta vamos ter o ceticismo, a
desconfiança total na capacidade humana de absorver realidades. Há sentidos que
nos enganam, há o tempo histórico que transformam convicções, há a perspectiva
de quem vê de ângulos distintos. São tantos os fatores que fazem com que uma
coisa qualquer seja vista de maneiras diferentes e igualmente válidas, que fica
complexo de definir qual vale de verdade. Os céticos estritos estão em
permanente dúvida, o que se adequa à constante necessidade de reformulação do
conhecimento defendido pela ciência, cuja função é se aproximar da verdade, e
não propriamente a alcançar.
Pois muito bem. A pergunta basilar que eu quero especular
aqui é a seguinte: teria a ciência alguma coisa de dogmático, e teria a
religião qualquer coisa de cético? Seriam os princípios gerais de ambas tão
rígidos que não permitiriam imbricações? Ou há, à moda de yin e yang,
um pouquinho de um no outro?
A resposta é sim. Começando por dogmatismo na ciência, e
fora do escopo que eu discuti
anteriormente (que falava sobre o processo de torre-marfinização da
academia), a ciência parte de certos pressupostos para exercer suas tarefas que
podem ser tidos como assunções de verdades.
Quando é elaborada alguma nova hipótese ou mesmo teoria, não
se reescreve a história da roda. O arcabouço já consolidado da ciência é
utilizado sem que seja verificado tudo o que dá base para a proposta. Embora
a ciência tenha o condão de repropor constantemente suas teorias, não faz
sentido que a cada nova hipótese sejam colocados entre parênteses todos os
pressupostos anteriores. As coisas que já são consensuais, não são levantadas
novamente, a não ser que um longo novo estudo esteja pronto a virar uma antiga
consolidação de ponta-cabeça, o que é raro. Como exemplo, toda hipótese que
envolva uma aceleração da gravidade vai levar em consideração os 9,8 Km/h que
já estão consagrados. Dentre todas as variáveis de uma pesquisa, essa é uma que
não precisará ser testada, e servirá como um parâmetro.
Mas não é só. Existem certos pressupostos que são bem
próximos de um dogma, porque são proposituras evidentes em si mesmas, que são
assumidas como verdade mesmo sem nenhuma experiência direta, e que acabam sendo
o fundamento mais remoto de uma hipótese. São axiomas e postulados.
Os axiomas (cuja raiz grega significa “tornar válido”) são
proposições evidentes em si mesmas, mas que não tem como ser demonstradas. Era
uma espécie de pérola dos racionalistas, cuja afirmação era de que tais
princípios estavam contidos inatamente na racionalidade humana. Os empiristas
respondiam a esta tese dizendo que os axiomas nada mais eram do que
generalizações obtidas a partir da experienciação da própria realidade, feitas
tantas vezes que passavam a se tornar evidências absorvidas tão fortemente que
passavam a ser reconhecidas como verdades. Um axioma clássico é o princípio
de identidade de Aristóteles, que diz o seguinte:
A=A
Isso parece muito óbvio, mas todo o fundamento de uma
construção lógica passa pelo princípio de que qualquer coisa é igual a si mesma,
porque é ele que garante que, por exemplo, se mudarmos a denominação dessa
coisa, ela não deixa de ser o que ela é.
Percebem como um axioma é óbvio? Na medida em que suas
derivações vão se multiplicando, ele vai ficando cada vez menos evidente, mas,
se retornado ao seu estado primitivo, vai se perceber como ele está na mesma
base de todo esse conhecimento:
A=2+2
A=2+(4-2)
A=(4-2)*1
A=[2*2+6-(2*3)]+[102-(5*20)]
e assim sucessivamente.
Um postulado é quase a mesma coisa, e muitas vezes é
utilizado como sinônimo de axioma. Como seu próprio nome diz, é uma assertiva
que postula (pede) para ser crida, mesmo que não seja possível demonstrá-la,
por sua própria estrutura lógica, para que possa dar base a uma hipótese
filosófica ou científica. É um pouco mais específico do que um axioma, mas não
deixa de ser uma afirmação que se sustenta por si mesma, sem a necessidade de
demonstrações.
É possível reconhecer um postulado na seguinte proposição da
geometria:
“Uma linha tem comprimento, mas não tem largura”
Esqueça aqui uma linha traçada a lápis com uma régua, que,
na acepção do termo, já não é mais uma linha, porque, neste nosso mundo
tridimensional, mesmo ela tem uma largura, ainda que seja mínima. O conceito de
linha é exatamente a abstração de uma das dimensões espaciais, que são
totalmente conceituais, mas que sabemos existentes pela própria observação do
mundo ao nosso redor. Todas as vezes que olhamos para um elemento no fundo de
um horizonte, traçamos uma alçada de visão que é, na verdade, uma linha, mas
que não temos como materializar, mas que sabemos estar correta. Sendo
abstratas, são realidades mentais, mas não concrescíveis.
Essas proposições estão no mínimo do conhecimento, digamos
que a nível “atômico”, sem o que não há como partir daí para diante, por isso
elas são assumidas mesmo sem a possibilidade de comprovação empírica. E isso
tem todo cheiro e sabor de dogma, mesmo que não o sejam no sentido mais
restritivo da palavra.
Agora, o reverso da medalha. As religiões sempre possuem um
conjunto de dogmas, que são verdades tidas como absolutas, e que compõem todo o
seu corpo de doutrinas e princípios. Eles emanam de diversas fontes, mas
principalmente de livros e do magistério de sacerdotes que representam a
autoridade de uma igreja, cuja palavra tem valor de manifestação da própria
divindade que professam.
Na dependência do que representam para a estrutura da fé,
essas disposições são pouco plásticas, e, dados os atributos de inerrância das
manifestações divinas, costumam não serem passíveis de modificações.
Imaginemos, por exemplo, que no âmbito do Cristianismo surja alguma tese que
conteste a ressurreição de Jesus. Esse é o miolo, o núcleo, a dura-máter, o
centro, a alma, a medula de todo o seu sistema de fé. Se algo for modificado
nisto, todo o sistema desmorona. Imagine, por exemplo, que seja localizado o
túmulo de Jesus. Estaria, naturalmente, derrubada a tese de uma ressurreição. O
primeiro efeito será uma negação generalizada, com declarações de falsificação
as mais várias. Se a tese subsistir, entretanto, ou se abjura da fé, ou se faz
adaptações, mas já não falamos mais da mesma coisa.
Certas filosofias religiosas encaram a doutrina da revelação
progressiva, ou seja, a divindade se revela aos poucos, para que a humanidade,
em suas naturais limitações, vá adquirindo arcabouço intelectivo suficiente
para compreender certas revelações que seriam ininteligíveis em outras eras.
Esta é uma maneira de se refazerem dogmas, mas o fato concreto é que se trata
de prática para criar novas crenças, e não para transformar as já existentes.
Em suma: a atitude geral é de manutenção do dogma.
Entretanto, os componentes que cercam a raiz do corpus
teológico de uma fé podem sofrer adaptações sem que se perca a sua essência. Um
exemplo bastante óbvio diz respeito à teoria da Evolução. Antes de sua
consensualização, era comum que as predisposições bíblicas induzissem a se crer
em uma proposta fixista. Algumas interpretações literalistas não aceitam outra
forma de reconhecer a questão, e veem como fumaça nos olhos qualquer proposta
que não afirme que os seres tenham surgido prontos e acabados. Mas há correntes
que não veem problemas em relativizar os relatos de criação. Um bom exemplo é a
Igreja Católica, que enxerga as mãos divinas na condução do processo evolutivo.
Desta forma, todas as mutações, todas as adaptações, todas as pressões
seletivas são ações divinas sobre sua criação para que ela se modifique. Deus é
o motor da evolução, que usa a seleção natural para fazê-lo. O mesmo se aplica
à teoria heliocêntrica, já mencionada como problema em outros tempos, mas que,
diante das evidências mais que abundantes, acabou por ser absorvida. O
princípio geral é que não afetavam em nada no aspecto teológico, apenas em
certas predisposições tornadas alegóricas que não atrapalham o núcleo da fé.
Em resumo, a porção cética de quem tem por base o dogmatismo
vai depender do calibre do núcleo que precisa ser defendido. Quanto mais for
possível relativizar as fontes originárias de sua fé, maior vai ser a
capacidade de receber novidades de fora e de moldar os paradigmas a elas.
É bastante certo que, se houvesse uma máquina do tempo,
ficaríamos surpresos com o que seria qualquer religião em suas práticas
originais. Isso acontece porque o mundo muda, e junto com ele, vão tecnologias,
vão ambientes, vão demografias, vão ciências, e, vejam vocês, vão princípios
morais. Isso demonstra que há mudanças nas religiões que são até mesmo
necessárias. Imagine-se vestido em uma pele de carneiro porque é uma
preconização de sua fé, que nasceu quando não havia as opções do poliéster ou
do nylon. Faz sentido isso?
O sentido disso tudo é que posições extremadas normalmente
não condizem com condutas verdadeiramente racionais. Os exageros obnubilam a
visão, amarram os braços ou ambas as coisas, e isso não leva a boas coisas.
Bons ventos a todos!
Recomendação de visita:
Bosque João Paulo II e Memorial da Imigração Polonesa
Rua Wellington de Oliveira Viana, 33
Centro Cívico
Curitiba/PR
A aproximadamente 410 Km do centro de São Paulo
*Pouquíssimos turcos de fato vieram para o Brasil. Os
imigrantes que assim eram conhecidos levavam essa nacionalidade porque, quando
não eram foragidos, tinham passaporte do Império Otomano, a atual Turquia. E,
mesmo que fossem foragidos, todos os seus documentos tinham os timbres desse
mesmo império. Chamá-los de turcos, em alguns casos, pode ser considerada uma
ofensa, em razão das guerras de dominação que aconteceram para que os otomanos
dominassem a região. Falo mais sobre esse assunto neste
texto.
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