(A guerra é uma constante na história da humanidade – será que algum dia nós ficamos em paz? A dúvida é se existe alguma que seja justa)
Si vis pacem, para bellum
Provérbio latino
Olá!
Curitiba é conhecida como a Seattle brasileira. Acho um
pouco de exagero, mas a posição geográfica faz com que, de fato, tenhamos um
clima de ameno para baixo combinado com muita nebulosidade. No entanto, o que
eu percebo é uma média geral de dois graus a menos do que em São Paulo e pouca
coisa a mais de diferente. O que muda bastante é a maneira que fazem remissões
aos antepassados e povos que construíram a cidade como ela é. É bem verdade que
não há grandes referências a negros e indígenas, mas esse é um problema do
Brasil, não do Paraná. Com relação às demais etnias, sempre tem alguma coisa
para se ver e se conhecer, como é o caso do Memorial Ucraniano, que fica dentro
do Parque Tingui. Vamos falar um pouco sobre ele.
O Memorial da Imigração Ucraniana nos conta um pouco sobre
uma nação que está encravada na região do Leste Europeu, um grupo de imigrantes
que é bem mais comum em Curitiba do que em São Paulo, por exemplo. Vieram para
cá fugidos da guerra e trazendo suas culturas e tradições. O corpo principal é
composto pela Igreja de São Miguel Arcanjo, reprodução de uma das primeiras
igrejas ortodoxas construídas no Brasil.
Ela é toda construída em madeira de lei e tem cúpula de
metal, reproduzindo o estilo bizantino tão típico da ortodoxia cristã.
O mesmo pode se dizer do seu interior. Os ícones bizantinos
são dos mais identificáveis de toda a arte, baseados na pintura a têmpera e
repleto de figuras alongadas e cores douradas.
Algumas merecem cuidados especiais, caso do quadro do Senhor
Mestre, que está anteparada por uma bela moldura e por cortinas, dado seus
valores artístico, religioso e histórico.
Ainda no interior da igreja, uma mostra de objetos mais
profanos: as pêssankas, ovos enfeitados por pintura de cera que é comum
nos países eslavos.
As pêssankas são muito mais próximas da tradição dos ovos de páscoa do que propriamente a religiosidade cristã, que, na verdade, apropriou-se de seu sentido: a chegada da renovação da vida através da primavera. Há um monumento em forma de pêssanka do lado de fora, apontando para os quatro pontos cardeais e referindo-se, a cada face, a uma das estações do ano, ao que me parece.
Do lado oposto, logo na entrada, há uma casa em estilo
típico ucraniano, construída em madeira e ladeada por uma cruz de pedra. Nela é
que está a loja de souvenires e de guloseimas.
As principais são delícias de nomes difíceis, feitas com
bastante açúcar e manteiga. Também há artesanato e badulaques em geral, sempre
com motivos típicos ucranianos.
Estando, como sabido, em guerra contra a Rússia, os
descendentes de ucranianos se posicionam e deixam isso claro no memorial.
Algumas guerras começam com motivadores claros, e parecem o
desfecho inevitável para posições que se movem como placas tectônicas. O choque
é infalível e o impacto é sempre de grande vulto. Entretanto, outros conflitos
são mais difíceis de se compreender. Este é o caso da atual guerra entre Rússia
e Ucrânia. O motivador direto é o de sempre: o pequenino faz algo que o grandão
não quer, o grandão ameaça o pequenino, que manda o grandão vir para cima e o
pau fecha. Só que as coisas não são exatamente como uma briga de quinta série,
e há bem mais coisas para serem elucidadas. No caso, há um componente histórico
que faz recrudescer os ânimos. É que entre ambos os povos existe um ranço muito
grande, semelhante entre o que há entre turcos e armênios (leia mais aqui),
que recebeu o nome de Holodomor, que, em ucraniano, quer dizer e algo
como "morte pela fome".
Bom… não há como começar a falar sem dar um contexto geral
do que foi o Holodomor, fenômeno complexo que é tido não somente como um
genocídio, mas como modelo canônico do fracasso das coletivizações forçadas na
antiga União Soviética. Vou tentar ser rápido, mas sem promessas. Não vou usar
fontes radicalizadas para nenhum dos lados - nem História Pública, nem Brasil
Paralelo são imparciais o suficiente para trazer informações suficientemente
neutras.
A União Soviética foi uma congregação de países que
orbitavam ao redor da Rússia, o país mais poderoso da federação, e surgiu com a
proposta de um novo regime político, o comunismo.
Em linhas generalíssimas, o comunismo versava sobre a propriedade coletiva dos
meios de produção, o que, em tese, seria feito por um governo central que
traduziria os anseios e necessidades de uma determinada camada da população. As
coletivizações forçadas passaram a fazer parte da pauta stalinista a partir de
1929, e tinha como objetivo declarado melhorar a distribuição de alimentos por
todo o país.
Nos inícios do século XX, embora houvesse um processo de
industrialização em andamento, as repúblicas soviéticas baseavam suas economias
na produção agrícola. A Ucrânia, em especial, era (e ainda é) uma espécie de
celeiro, com uma produção de trigo vastíssima, e ainda com larga produção de
batata e beterraba. Com autossuficiência, houve muita resistência às coletivizações
forçadas, mas elas vieram e abasteciam toda a União Soviética. Nos momentos em
que havia escassez nas demais repúblicas, o que era produzido na Ucrânia se
tornava insuficiente até mesmo para eles. Entretanto, a política central não
poupava os produtores e obrigava a entrega das safras, ainda que a custo de
fome.
Embora a centralidade das decisões fosse basilar nesse
modelo de governo, o fato é que a União Soviética abarcava um território
gigantesco formado pelas mais diversas etnias, com culturas e interesses
dissonantes e, por vezes, antagônicos. Os ucranianos viviam em um país próspero
e fértil, pouco disposto a abrir mão de sua autonomia, o que acabou lhes
trazendo problemas com o vizinho mais poderoso, que, ao usar seus produtos agrícolas,
poderia obter divisas para tocar seu programa de industrialização.
As coisas forçadas não terminam bem. Os ucranianos não
entregavam sua produção de bom grado, principalmente porque o retorno não vinha
de forma compensadora. Com isso, o governo central soviético impôs restrições
cada vez maiores ao povo da região. E o resultado foi fome. Uma fome
avassaladora em um país fértil, que levou um número gigantesco de pessoas para
a morte. Os números variam muito, mas, ainda que na estimativa mínima, é facilmente
caracterizável como um genocídio, com cerca de dois milhões de mortos, mas há
estimativas que ultrapassam os 12 milhões. Como era a república hegemônica da
União Soviética, coube à Rússia a maior parte do peso das acusações.
Hoje, novamente Ucrânia e Rússia se põe em conflito. Quando
fiz os registros das fotos, o confronto estava recém-iniciado, e cheguei a
pensar que não daria tempo de escrever a respeito sem a perda do timing. Hoje,
muita coisa já passou embaixo dessa belicosa ponte, e o confronto continua, sem
resolução.
Certos conflitos são difíceis de entender, eu já disse. É
pouco crível que haveria necessidade de invasões da Rússia na Ucrânia pelo
simples motivo da sua aproximação com a Otan. A Rússia é um país poderoso, que
quase coloca em prática a disposição latina do “se quer paz, prepare-se para a
guerra”, que menciono na epígrafe. Então há mais coisas por trás do discurso
oficial, talvez até mesmo uma forma de manutenção do poder. Mas a pergunta que
fica é quando faz sentido as guerras entre as nações, e se de alguma forma
podemos considerar que tanto sacrifício dos povos se justifiquem. Vamos buscar
uma resposta na Idade Média, para concordar ou não. E vamos procurá-la na Escolástica.
Ora (direis), justamente no meio cristão, que, por dizer se
guiar por uma mensagem divina, deveria se abster das guerras e outras
violências? Justamente por isso, meu imaginário interlocutor. Se há motivos
para defender guerras nesse meio, é algo digno de se refletir filosoficamente.
São Tomás de Aquino entende que a humanidade possui a
capacidade de conhecer racionalmente, mas isso possui limites. Embora a ordem
natural das coisas coloque Deus como o bem supremo, não consegue o homem
atingir a visão beatífica necessária para suplantar suas vontades terrenas.
Sendo assim, seu acesso ao conhecimento se dá em atos e objetos que não são
divinos, e é aí que cabem suas escolhas, seu livre-arbítrio. Neste sentido, São
Tomás adere à visão agostiniana de que o mal é a ausência do bem. Assumindo que
é dada a capacidade de fazer as distinções naturalmente do que é ético e do que
não é, em um processo chamado de sindérese, é possível supor que é
livremente que um ser humano se encaminha para o bem ou para sua ausência. E o
que isso tem a ver com nosso tema?
São Tomás entende que há quatro noções fundamentais que
regem o funcionamento do universo, a quem dá o nome de “leis”. A Lex Divina
é, dentre elas, aquela que depende mais da fé, e menos da razão. Portanto, não
dirá respeito para o que quero tratar aqui. A Lex Aeterna representa a
maneira racional como Deus estruturou todo o universo, que lhe dá funcionamento
e explica tudo aquilo que vemos fenomenicamente. Há uma parte dela, chamada de Lex
Naturalis, que é perceptível pelo ser humano através de sua racionalidade.
Sua máxima mais definidora é a que fundamenta a necessidade de fazer o bem e
repelir o mal. Esse é o mote ético para o ser humano.
A lei natural deveria ser suficiente para regular as
relações humanas. Entretanto, é preciso levar em conta que direitos legítimos
podem ser colocados em confronto mesmo que seguindo a máxima ética que ela
propõe. Para dirimir esses conflitos legítimos, é preciso que as regras humanas
sejam baixadas em escrito, como fazemos hoje no Direito Positivo. São as
soluções de consenso definidas pela própria comunidade ou por aqueles a quem
lhes é dado o cuidado, os governantes. É a chamada Lex Humana.
Se partirmos da premissa de que a lei humana deve derivar da
lei natural, ou seja, seguir seus mesmos princípios e natureza, devemos supor
que a máxima que impera sobre a lex naturalis deve imperar sobre o direito
positivo, dando lhe guia e sentido. E isso significa dizer que seu objetivo é
demover o homem da prática do mal. Em um ser cujo propósito é viver em
sociedade, aqui está a sua pedra de toque: proporcionar regramento justo e
tendente ao cumprimento do mandamus divino. A fixação das leis de
caráter humano, a rigor, não seria de fato necessária, não fosse a presença do
vício entre os homens, e isso leva à necessidade da sistematização de códigos e
normas. Desta forma, teríamos a garantia de que, mesmo movidos por algum
sentimento divergente, a lex naturalis seria seguida de forma indubitável.
Só que estamos carecas de saber que nem sempre isso
acontece, muito pelo contrário. Não só a lex humana representa sempre uma
equivalência à lex naturalis, como também mesmo essa é frequentemente quebrada.
Em ambos os casos, encontram-se as explosões de violência e a ausência do bem. In
extremis, encontramos a guerra.
Notem que a necessidade de leis escritas se deve à regulação
das comunidades. Quando elas chegam no ponto dos tratados internacionais, é
onde podemos encontrar as maiores discrepâncias, tendo em vista que não somente
teremos as diferenças das fronteiras, mas do interesse de grandes massas
populacionais. Nos termos do que vimos até agora, não deveria ser diferente: a
guia é a lei natural. Mas aqui, os desfechos são mais gravosos: o potencial
ofensivo de um indivíduo contra outro não tem medida de comparação com o que
pode um povo contra outro.
E então? Temos um paradoxo aqui? Como lidar com a questão da
guerra? Apanhar em um rosto e dar o outro?
Para São Tomás, não. Há medidas em que a guerra é justa e
pode ser praticada, pautadas, racionalmente, sobre três acentos: intenção
correta, autoridade do soberano e, especialmente, causa justa.
Uma intenção correta é simples: toda guerra já deve iniciar
com o intento de terminar, ou seja, já se deve ir a combate com a intenção
primordial de se restabelecer a paz. Isso garante que a luta não se seguirá
para além de seu objetivo racional. Não pode receber esse qualificativo uma
guerra que pretenda dizimar um povo, dominar seu território ou lhe roubar toda
a sua riqueza.
Com relação à autoridade do príncipe, não se trata de um
mero reconhecimento hierárquico, mas da necessidade de que tal decisão seja
tomada por aquele que representa aquela nação, e não por uma pessoa qualquer
que se indisponha com um país em beligerância. Hoje, com os conceitos
democráticos em prática*, pode parecer estranho que se dirija a um soberano tal
decisão, mas São Tomás vive em um tempo em que ainda se cria que o governante
era um escolhido de Deus e, portanto, representante legítimo de um país.
Por fim, a causa justa é o principal norte a ser seguido. O
primeiro é que não se lute por um motivo vão, mas que encontre mais benefício
em ser guerrear do que deixar que se prossiga um determinado estado de coisas.
Outra questão é que as motivações não podem ser pessoais do soberano, em busca
de vantagens para si ou para outrem que lhe convenham, mas com vistas à
população da qual é representante. A causa justa é, prioritariamente, uma
predisposição moral, onde se constata que há mais mal em não guerrear do que
pegar em armas.
No fim, a pauta cristã, em tese, deveria sempre buscar a
preservação da vida. Isso se aplica à guerra, de forma que, por vezes, ela
seria o exato caminho que ajudaria nessa preservação. Não se deve guerrear
preventivamente, mas defensivamente. Prevenir, nesse sentido, significa tentar
adivinhar o futuro, o que não é dado aos seres humanos. Entretanto, mesmo a
defesa deve ser racional. Não adianta se arvorar em exército de Brancaleone e
se lançar em defesas suicidas, quando é evidente que não há esse tipo de
possibilidade. Nesse caso, fazer o que, o melhor é se entregar.
A Ucrânia, se formos olhar sobre o prisma da São Tomás,
parece combater a guerra justa, já que se defende de um inimigo que insiste em
não revogar a História e manter o espírito belicoso. Isso é o que se percebe
por esse ângulo. Entretanto, há perigos. A bandeira com o símbolo tridentino
não prenuncia que estejamos diante de santos que estão sendo alvejados
inocentemente, porque, embora os diplomatas ucranianos expliquem que se trata
de um símbolo nacional que vem dos tempos passados, há uma apropriação da sua
simbologia por uma camada radical dos políticos do país, e isso é algo a ser
tratado com muito cuidado.
Por fim, é importante que haja manifestações, para que
possamos lembram que a guerra é fundamentalmente composta de horror e desrespeito
a direitos. Para além disso, o lugar é bonito à beça e merece visitas que vão
além do aspecto político, mas sem esquecê-lo, jamais. Bons ventos a todos,
especialmente para os lados dos bálcãs.
Recomendações:
Vou relembrar da principal obra de São Tomás de Aquino:
AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. 9 volumes. São Paulo: Loyola, 2006.
E também repasso o endereço do Memorial, que fica dentro do
Parque Tingui e fica em um bairro muito bonito de Curitiba:
Memorial Ucrianiano
Av. Fredolin Wolf, 1870 (dentro do Parque Tingui
Pilarzinho
Curitiba/PR
A aproximadamente 420 Km do centro de São Paulo
*Apesar das ondas autoritárias que temos vivido ultimamente,
não dá para dizer que é a mesma coisa que um mundo onde o padrão - quando não a
totalidade - eram regimes de autocracia. Se a participação popular ainda hoje
pode ser relativizada, o fato é que ela se limitava a ser bucha de canhão na
Idade Média.
Nenhum comentário:
Postar um comentário