Olá!
Anteriormente, não havia nada mais do que o fundo branco e
as letras azuis de um dos templates do Blogspot. Quando publiquei neste espaço o meu 100º post, criei uma pequena identidade visual, que consiste,
basicamente, em uma chave enfiada num tijolo. Como já expliquei, nada mais é do
que uma alegoria para as dúvidas intransponíveis que encontramos em nossa
frente, as tais das aporias, que nominam este meu cancioneiro. Mas como o
banner de entrada apresenta um muro, algumas pessoas me questionaram se há
algum tipo de inspiração no álbum “The Wall” do Pink Floyd.
Não, não há. Ao menos conscientemente, não tive isso quando
bolei a marca do blog. Mas, pensando bem, não é nada difícil que, no fundinho
do meu subconsciente, estivesse um Pink desmontando as paredes das minhas
certezas, de tão provocativos e marcantes que são o álbum e o filme.
Sim, é verdade. Já fui fã de hard rock e heavy metal (ainda
sou, para dizer a verdade), mas eu curto muito rock progressivo, e ainda que eu
não goste de me prender a rótulos, devo dizer que já de algum tempo é o meu
estilo de música favorito, por mais que seja difícil enquadrar confortavelmente
o que seja progressivo. Mas vou tentar.
Primeiro vou falar rapidinho do álbum e do filme “The Wall”,
que são meio que um dicionário que resume a tendência. Sabem aquelas listas de
100 coisas para fazer antes de morrer? Inclua ambos.
Trata-se da complexa história de Pink, cuja narrativa
desvela, desde a infância, a construção de uma mente doentia, a construção de
uma personalidade esquizofrênica, a construção de uma dialética da opressão, a
construção de um personagem fechado em si mesmo, a construção de um muro – e de
como a demolição deste muro é a demolição de si próprio.
A arte gráfica do filme, tocada por Gerald Scarfe, é um caso
a parte, plena de linguagem simbólica e de concatenações surreais, com efeito
psicológico. Não vou falar mais que isso. É o caso de assistir e interpretar.
Os diretores retratam as alterações psicológicas do
personagem principal através de sua atitude política, e conseguem catalisar
três vertentes em um só movimento. A retórica e a disposição militar é
fascista; a simbologia é comunista – vide os dois martelos; e a plateia inflamada,
que assiste ao mote político como um show, é uma crítica clara ao capitalismo.
Em síntese, qualquer ideologia só é aplicável pela imagem que se forma dela,
mais importante que seu próprio conteúdo. Por isso mesmo, a construção do muro
e a construção do mito são um mesmo e único ato. Na medida em que se constrói
uma ideologia, é erguido também o muro que lhe serve de fachada e proteção, e
que provoca o isolamento entre o ego e o mundo, entre eu e os outros. Este é o
filme, e o álbum é sua trilha sonora.
Mas o que é o tal rock progressivo? Por que leva este nome e
qual foi o caldo de cultura do qual emergiu o estilo? O que tudo isso tem a ver
com Filosofia?
Começando pelo começo. O rock progressivo é filhote direto
da psicodelia dos anos 60, que produz arte a partir das alterações mentais
obtidas pelo consumo de drogas. Isso não era propriamente novidade. Gente como
Nostradamus confessadamente obtinha suas revelações através da inalação de
certos vapores, que tinham efeito entorpecente. Outro exemplo eram os poetas do
simbolismo francês, como Rimbaud, Verlaine e Baudelaire, todos consumidores de
ópio. O diferencial eram as drogas sintéticas, capazes de alterar a percepção
da realidade a ponto de fazer o tão querido Absinto dos literatos parecer uma
mera cafungadinha de lança-perfume. Surgia o ácido lisérgico, mais conhecido
pela sigla inglesa LSD, propugnado à exaustão pelo neurocientista e professor
Timothy Leary, que acreditava ser possível fazer uso terapêutico de
alucinógenos. Seu principal argumento era o de que as alucinações não eram
exatamente distorções da realidade, mas uma nova perspectiva desta mesma
realidade que era refreada pelas instâncias psíquicas superiores. A retenção
destas perspectivas causavam as tão conhecidas neuroses, e, sob este ponto de
vista, o uso destas moléculas marotas poderia ser considerado profilaxia. Não
deixa de ter sua lógica, mas o fato é que alucinações não são algo que se
controle, podendo ser angustiantes ou violentas. Sem contar que, às vezes, a
realidade parece muito mais lisérgica que o sonho mais virado de todos.
Voltando para o campo histórico, o LSD e outras drogas
fizeram a cabeça de muita gente aflita por criatividade, inclusive de um grupo
que, até o momento em que tomou contato com as mesmas, era dedicado a um pop
romântico com estrondoso sucesso: os Beatles. E, para ser bem sincero, é a
partir daí que eles se tornaram geniais, chegando ao ápice psicodélico com o
álbum Sgt. Pepper’s Lonely
Hearts Club Band, com o filme Magical Mystery Tour e com a animação Yellow
Submarine. A partir daí, a psicodelia virou estilo e várias bandas
passaram a se dedicar a ela: Grateful Dead, Jefferson Airplane, Velvet
Underground, The Doors, e, novamente, o Pink Floyd da primeira fase.
As maluquices dos psicodélicos exigiam a obtenção de
sonoridades impossíveis de conseguir pelos clássicos conjuntos de
guitarra-baixo-bateria. Para ampliar o leque, era preciso lançar mão de
teclados, como os incomparáveis órgãos Hammond e de um instrumento hoje
obsoleto e quase extinto: o mellotron.
A rápida mudança das tecnologias dos últimos tempos torna difícil explicar o
funcionamento desta engenhoca para os mais jovens, mas nada impede que eu tente.
Em primeiro lugar, vamos abstrair a existência de computadores, celulares, cd’s
e mp3. Tínhamos então basicamente duas mídias disponíveis: o vinil e a fita
magnética, sendo que esta última era regravável. O mellotron nada mais era do
que um aparelho que continha vários cabeçotes magnéticos, com um teclado onde
cada tecla acionava uma fita magnética contínua. Cada fita podia ser gravada
com o som que se quisesse: um instrumento exótico, uma voz, uma orquestra, um
coral, um cachorro, vidro se despedaçando... o que a criatividade e a loucura
permitisse. Havia limitações técnicas típicas de processos mecânicos, mas, em
contrapartida, abria-se um horizonte de possibilidades infinitas.
Essa sanha exploratória faz com que os músicos se tornem
cada vez mais ligados às tecnologias mais recentes de então, o que explica o
termo “progressivo”. Talvez se chamasse “rock nerd” hoje em dia. Perceba-se,
portanto, que o nome do estilo tem mais a ver com a atitude do que com a
sonoridade propriamente dita, que é composta da mescla de inúmeras tendências,
e qualquer ritmo pode compor uma peça, como se pode perceber pelos vários
sub-estilos que se desenvolveram a partir desta raiz psicodélica.
Por exemplo: com o leque aberto pelo mellotron e com a
qualidade dos músicos que aderiram à tendência, a música psicodélica começa a
se estruturar como uma sinfonia, em que há longos movimentos que se encadeiam
entre si, e peças que se dividem em parte, como em uma suíte. Surge um álbum
emblemático, “Days of a Future Passed”, do Moody Blues. Sua música pode ser
facilmente confundida com uma trilha sonora orquestral, ou seja, há um liame
que une todo o álbum, dando-lhe a sensação de um continuum, de um conceito que permeia toda a obra. Nascia o
progressivo como conhecemos, o progressivo sinfônico. Dessa vertente saíram os
principais grupos que se tornaram mais conhecidos: Genesis, Yes, Emerson Lake
and Palmer, King Crimson, Gentle Giant, Renaissance e os inúmeros italianos que
mergulharam de cabeça na onda – Premiata Forneria Marconi, Banco del Mutuo
Soccorso, Le Orme.
Mas é evidente que da psicodelia não sairiam apenas os
sinfônicos. Outros se mantiveram na lisergia, produzindo uma sonoridade mais
etérea e ligada ao sensório, privilegiando a ambientação. Ligaram suas
temáticas à ficção científica e estenderam suas viagens alucinógenas ao cosmos,
criando o Space Rock, cujos melhores representantes são o Pink Floyd da segunda
fase, o Nektar e o Alan Parsons Project. Uma corrente alemã aprofundou as
características do Space Rock, acrescentando detalhes que intensificavam os
efeitos mentais da música sobre o cérebro, como a repetitividade dos ciclos
(efeito hipnótico), o minimalismo e os tratamentos eletrônicos dados à música.
Era o Krautrock (literalmente rock chucrute, em alusão irônica à sua origem),
que é bem representada por Can, Amon Düül, Agitation Free.
A exacerbação da viagem levou ao extremo do cenário francês.
A proposta de busca pela novidade, de afastamento da realidade e criação de uma
ficção científica que pudesse ser plenamente absorvida pelos sentidos levou à
criação de uma linguagem própria, o Kobaïan! Era o Zeuhl, subgênero criado por
Christian Vander, baterista do grupo Magma, maior expoente do estilo. Seus
elementos incluem uma certa aproximação ao jazz, mas com forte marcação
rítmica, vocalização tresloucada, ambiente opressivo e um saborzinho
militaresco. Outros representantes são o Dün, o Eskaton e o japonês
Koenjihyakkei.
O apreço pela moderna tecnologia fez com que muitos músicos
fossem buscar suas sonoridades ainda mais adiante. Na medida em que os
computadores puderam se tornar minimamente acessíveis a partir da década de 70,
mais e mais passaram a ser utilizados na música. O progressivo eletrônico surge
com sons sintéticos e com uma temática apegada à modernidade, discutindo o que
é o homem frente a uma máquina que é cada vez mais capaz de se comunicar
autonomamente. É a vez de bandas com componentes que mais parecem programadores
do que músicos, como o Kraftwerk, o Automat e o Tangerine Dream.
Por outro lado, o progressivo sai das sendas tecnológicas e
busca ampliar seus horizontes levando a pesquisa para as origens musicais das
nações onde surgem, resgatando elementos que fogem ao padrão cultural vigente.
São totalmente variados entre si, uma vez que os folclores dos diferentes
países são, evidentemente, diferentes uns aos outros. O grande papa desta
tendência é o escocês Jethro Tull, acompanhado, por exemplo, do irlandês
Mushroom, do italiano Delirium e do brasileiro Terreno Baldio!
Com um escopo tão abrangente, era de se esperar que fossem
criadas “zonas de transição” entre estilos, em especial aqueles em que há
exigência de algum grau de virtuosismo por parte dos músicos. Um dos estilos
que mais bem se integrou à sonoridade progressiva foi o jazz, primo-irmão do
mesmo, dadas a sua inventividade e a sua experimentação típica. Temos aqui duas
escolas que se assemelham muito na abordagem. Por um lado, quando a música é um
jazz que se aproxima do progressivo, temos o Fusion, defendido por bandas como
Mahavishnu Orchestra, Area, Colosseum e Weather Report. Por outro, quando temos
um rock progressivo que utiliza fortemente os elementos do jazz, vamos ter o
Canterbury, nome derivado da cidade inglesa onde a vertente surgiu, e que tem
entre seus vates o Soft Machine, o Caravan, o Picchio dal Pozzo e o National
Health.
Outro estilo que buscou aproximações ao progressivo foi o
Hard Rock, que aumentou o volume das guitarras e manteve a sua pegada distorcida,
com os amplificadores Marshall acionado no último, sem esquecer-se das
inovações tecnológicas e das tecladeiras tipicamente progressivas. Militaram
nessa área o Rush, o Uriah Heep, o Atomic Rooster e o tupiniquim Módulo 1000.
A exacerbação do hardão setentista levou ao Heavy Metal,
como bem sabemos. Muitas bandas metaleiras já tinham uma roupagem que podem
denunciar um approach ao rock
progressivo, como a utilização das longas histórias contadas pelo Iron Maiden e
pelas constantes quebradas do Metallica, mas quem formalizou o Prog Metal foram
bandas como o Dream Theater, o Anekdoten e o Tool, com muita distorção e vocal
gutural/extremado, além da introdução do sintetizador ao seu som.
É claro que, com tanta diversidade e abertura a tendências,
muitos outros estilos buscaram elementos do rock progressivo para incrementar
suas produções. A regra geral era produzir música de boa qualidade, ainda que
sem se afastar de suas propostas originais. Desta forma, toda vertente que
lançasse mão de alta tecnologia e produção elaborada foi colocada em uma
designação genérica, denominada Art Rock. Muito embora seja uma designação que
conglomerou muita porcaria, o fato é quem tem muita gente boa enquadrada como
tal, casos de Supertramp, Electric Light Orchestra, Terço e Styx.
Como todo movimento, o progressivo como tal teve um início e
um fim. Este se deu com o impasse produzido pelos seus próprios excessos –
ganhou o incômodo estatuto de música chata, complicada, interminável. Música
para poucos, em resumo, tanto para produzir quanto para ouvir. Diante desse
beco sem saída, duas propostas apareceram no horizonte: uma que deu uma guinada
na filosofia progressiva (e, no rigor, a matou) e outra que foi buscar
propostas ainda mais longe. A primeira foi o punk, que trazia como lema a
liberdade anárquica, um desprendimento dos cânones não só musicais, mas
políticos e sociais como um todo. Produzir música significava uma atitude de
protesto, em um formato meio que democrático que dizia ser possível e desejável
fazer música com dois ou três acordes, renovando o modelo
baixo-guitarra-bateria. A tese básica é a seguinte: de que adianta falar sobre
tirania e opressão se o custo de um tecladinho mequetrefe corresponde a meses
de trabalho de um operário? Se para tocar uma música é preciso anos e anos de
formação integral de alguém que passa o dia inteiro em uma fábrica? O punk
expôs as contradições do progressivo e sua alienação, e, paradoxalmente, ele
mesmo tomou um lugar no mainstream
que tanto combatia, mas isso é outra história, para outro momento.
A segunda foi o RIO – Rock in Opposition – muito menos
impactante, que trouxe elementos ainda mais complexos da música clássica, como
o dodecafonismo, o serialismo, o pontilhismo e o minimalismo de gente como
Schoenberg, Stravinski e Stockhausen. São obras ainda mais difíceis de digerir,
com altíssimo grau de experimentalismo, incluindo instrumentos exóticos ou
objetos transformados em instrumentos, causando a mesma impressão de abstração
que temos diante de uma pintura surrealista, por exemplo. A intenção, no final
das contas, era tirar o rock dos palcos e colocá-lo nas salas de concerto. Foi
disseminada por gente como Univers Zero, Samla Mammas Manna, Henry Cow, Gatto
Marte e Stormy Six. Alguns caras do Brasil que apontaram para esse caminho,
muito embora haja dificuldade em acomodá-los na escola, foram Hermeto Paschoal,
Arrigo Barnabé e vários nomes da vanguarda paulistana.
Bom, no final da década de 70 o progressivo declinou. E cede
de vez quando observamos o seguinte fenômeno: o Genesis sempre foi um dos
carros-chefe do estilo, e não à toa. São músicos absolutamente geniais,
produzindo música de qualidade no auge de sua forma. Produzem um primeiro álbum
meio fraco, ainda na esteira da beatlemania pré-Rubber Soul, por gosto do
produtor e a contragosto deles próprios. Daí por diante, são lançados álbuns
cada vez melhores, mais elaborados e criativos – tanto na musicação quanto na
lírica das letras, repletas de figuras de linguagens e alegorias. Chegam a
produzir um álbum duplo apenas para contar a história de Rael, um fictício
malandro latino que é atirado em uma dimensão alternativa. Diminuem sua
formação para quatro e depois três membros, arrefecendo o intrincamento, mas
ainda muito sofisticados. Até chegar o ano da graça de 1980, quando lançam o
álbum Duke. Era um disco de muito boa
qualidade, bem feito e inegavelmente mostrando o trio Banks-Rutherford-Collins
em boa forma. Mas, pela primeira vez na carreira, já não havia nenhum resquício
do antigo som progressivo da banda. Era um disco pop, com sucessos como Turn it on Again, Misunderstanding e
Duchess.
O resultado: Duke
vendeu mais do que todos os álbuns de estúdio progressivos do Genesis JUNTOS. O
primado de From Genesis to Revelation,
o misticismo de Trespass, o exotismo
de Nursery Crime, Foxtrot e sua longa suíte Supper’s Ready, a crítica social de Selling England by the Pound, o
surrealismo de The Lamb Lies Down on
Broadway, o ecletismo de A Trick of
the Tail, o técnico Wind and
Wuthering e o transicional And Then
There Were Three... Nenhum deles teve características para vender nem de
perto do que conseguiu Duke, o álbum
comercial. A última música do último álbum da fase progressiva já apontava para
esse sentido, mas não creio que fosse possível supor tanto estrépito.
Inclusive, muitos dos meus amigos imaginavam que esta fase do Genesis é a que
representava o verdadeiro som progressivo. Junte a isso músicas como Owner of a Lonely Hearth do Yes, Dust in the Wind do Kansas e Heartbeat do King Crimson e teremos o
rock progressivo como um pop cheio de teclados, e nada mais.
O progressivo está morto? Viva o progressivo! Simplificando
as estripulias dos anos 70, uma turma retomou o estilo em meados da década de
80. Pode-se dizer que houve uma grande pasteurização nas músicas e que não tínhamos
uma pegada com o mesmo nível de outrora, mas o Neoprog estava na ativa com
Marillion, Arena, Asia e Quidam, o que permitiu um elo com escolas mais
contemporâneas. Estas se formaram basicamente em duas vertentes: uma que
importa o mal-de-siécle do gótico e a
experimentação do RIO, canalizando indumentária do rock para um tipo de música
não propriamente rockeiro, o que foi chamado de Post Rock, onde se situam
Radiohead, Sigur Rós e Godspeed You! Black Emperor. A outra aposta em
sonoridades sequenciadas, que derivam de formulações matemáticas. São formações
harmônicas cíclicas e mudanças abruptas de andamento que a caracterizam mais
evidentemente. É o Math Rock, de predominância norte-americana, e que traz os
comboios Don Caballero, Keelhaul e For Carnation.
Arre, égua... Chega de História e vamos para a Filosofia! O
pano de fundo do rock progressivo, pelo que pudemos ver, é um tecido formado
pela exaltação à tecnologia e um aproveitamento das possibilidades propiciadas
pela mesma. Desde o final do século XIX, o progresso tecnológico colocou o
mundo em um estado de otimismo que somente pode ser eclipsado pelas dimensões
bélicas que puderam ser atingidas pelo mesmo processo de desenvolvimento
tecnológico e científico. Eram o verso e o reverso da medalha: a mão que
balança o berço é a mesma que aperta o pescoço. O remédio que cura é a arma que
envenena. Por isso mesmo, o avanço técnico é algo que causa deslumbramento e
temor; porque nos move, abre-nos perspectivas e tira-nos do lugar. Isso mexe
com nossa verve progressista, porque nos faz buscar mais e mais o novo, mas
também atiça nossa veia conservadora, porque nos faz pensar se nossas
convicções estavam erradas, se vale a pena sair do lugar.
Como lidar com a tecnologia que nos surpreende? Olho ao
redor no parque e vejo uma bela dezena de jovens correndo atrás de seus
pokémons. O que estaria eu fazendo no lugar deles, fosse também eu jovem?
Tocando violão? Talvez sim. Ou poderia ter baixado no celular um aplicativo de
música, que registrasse minhas tentativas de novas composições. Quando eu era
rapaz, ficava repetindo ad nauseam
uma melodia que viesse à minha cabeça, para não esquecê-la, fato que seria
resolvido instantaneamente pelo know-how
hodierno.
Não vejo mal na tecnologia. Não tenho neuroses com os pokémons go da vida. Não acho demônios
embaixo dessa cama. Basta saber que, ao atravessar a rua (mundo real), preciso
olhar para os dois lados antes. Imagino que era algo semelhante a isso que os
proggers pensavam ao se defrontar com a moderna tecnologia da época, e por isso
mesmo a exaltavam, da mesma forma que fazemos hoje com os nossos celulares.
Portanto, não vejo uma cena em que milhares de músicos se
colocam ajoelhados diante da estátua de um deus-teclado, mas que preferem
levá-lo a tiracolo, de modo a trazer para o seu lado o que a tecnologia tem de
bom: propiciar o que seria impossível sem ela. Há lado ruim fazendo a
contraposição dialética? Há, sempre há. Mas cabe a todos nós enxergá-lo e tirar
um suco-síntese dessa combinação de doces e amargos. É preciso saber reconhecer
o quanto a tecnologia nos tira de humanidade e lidar com essa situação sem
demonizá-la. No sentido musical, os proggers o fizeram, até o esgotamento do
seu próprio modelo e acomodação a uma nova realidade.
Por fim, algumas considerações de ordem estética. Muito
embora o título da presente postagem seja uma provocação, e que seja complicado estabelecer normas para a arte (conforme eu e meu
amigo Vítor já pudemos debater neste mesmo espaço), não há como ocultar
que a dinâmica progressiva exige muito mais conhecimento técnico do que outros
estilos em geral. São bastante raros os casos de músicos limitados que militam
nessa área, e, quando acontece, há consenso dentro da própria banda que tal
elemento não deve se destacar. É o que acontece, por exemplo, com as partes
vocais. Com raras exceções (Yes, Renaissance, Bacamarte) o cuidado na
composição é todo voltado para a instrumentação, não se procurando grandes
virtuoses na garganta. Como o rock progressivo está a meio caminho do popular e
do clássico, não há dúvidas que o mesmo é propedêutico com relação à música
mais fortemente elaborada, podendo servir, portanto, para tornar as sinfonias
mais palatáveis ao gosto do público.
Não é música para ouvir chacoalhando no ônibus (óbvio exagero,
eu mesmo fiz muito disso). É preciso atenção e um gosto especial pelo detalhe,
que são muitos. Um dos fatos que explica isso é o seu universalismo, porque
nenhum instrumento ou estilo é extravagante demais para integrar uma obra
progressiva. Para dar um exemplo, será muito raro ouvir uma flauta em um Heavy
Metal, ou um oboé em um reggae. No progressivo, tudo isso é comum. Por isso
mesmo, é um estilo mais aberto e de difícil definição. É fato que os punks
tinham razão: além da alienação dos temas futuristas ou ficcionais (que não são
regra – a maior parte dos progressivos italianos é engajada politicamente), às
vezes as viagens vão para tão longe que tornam tanto a execução quanto a
audição um ato de hermetismo, mas isso não é razão para se desistir sem se
tentar. Afinal, é uma escola que costuma ter o respeito de quase todas as
outras, dada especialmente sua alta qualidade e de sua aproximação ao conceito
de arte pela arte.
Recomendações:
Todas as bandas que mencionei aqui merecem uma cuidadosa
audição. Existe um site excelente, que possui amostras de músicas de quase
todas elas. Chama-se Progarchives, e
segue seu endereço:
http://www.progarchives.com/
O filme e o álbum The Wall são essenciais para uma boa
compreensão da sonoridade progressiva, além de serem belíssimas obras de arte.
Seguem as indicações dos mesmos.
EZRIN, Bob; GILMOUR, David; GUTHRIE, James; WATERS, Roger. The Wall. Londres: Harvest Records,
1979. 81:09.
PARKER,
Alan. The Wall. Filme. Londres: Metro-Goldwyn-Mayer, 1982. Colorido. 95 min.
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