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terça-feira, 30 de maio de 2017

Considerações sobre consciência e corpo que nos vinculam à realidade (Sobre alpercatas e quepes confederados)

Basta a garoa começar
Que eu já percebo a enxurrada
E morro acima sobe o fardo

E da ladeira vi restar
As minhas velhas alpercatas
E meu quepe confederado

Já não sei mais o que lembrar
Na pedra não tem pegadas
Nem remissão se não há pecado

E vejo tarde enevoar
As minhas velhas alpercatas
E meu quepe confederado

Saí de lá, saí de lá
Eu vim a pé, saí de lá
Enquanto ainda via rolar os dados

E a memória da ladeira
Saí de lá mas vim de lá
E o tempo foge sem deixar recado

Mas há uma culpa a pagar
De cada memória apagada
Um pouco prá trás é deixado

No horizonte vão distar
As minhas velhas alpercatas
E meu quepe confederado

Pelo arredor eu vou olhar
Prá encontrar somente nada
Nem mais real, nem mais sonhado

Já não há mais o que acreditar
Nem minhas velhas alpercatas
Nem meu quepe confederado

Refrão


Olá!

Estes versinhos não são de nenhum poeta obscuro. Ou melhor, na verdade são. São meus. É uma música chamada Ladeira da Memória. Contarei melhor essa história em oportunidade mais adequada, mas, apenas para constar, também eu fui jovem um dia, dia este cada vez mais distante, e também eu quis gritar aos quatro cantos minhas dores e minhas revoltas, bem como causar admiração em algumas menininhas. Sabendo rudimentos de contrabaixo, passei por algumas bandas, o que fez vicejar minha verve poética. Os versos acima não chegaram a ser ensaiados em nenhuma delas, mas é daquelas que eu gosto, que ainda hoje faço questão de assinar embaixo (ao contrário de tantas outras, das quais morro de vergonha).

Explicar uma poesia é tão sem graça quanto explicar uma piada e tão frustrante quanto dançar com a irmã, mas este espaço tenta elucidar algumas coisas, e não as piorar. Sendo assim, vou cometer o desatino de fazê-lo, para o bem da temática que pretendo abordar.

A ladeira é uma óbvia referência à vida, que vai ficando cada vez mais complicada de viver à medida em que envelhecemos, e a memória vai ficando cada vez mais para trás, significando cada vez menos (eu tinha algo entre 18 e 20 anos à época). Reiteradas vezes falo de velhas alpercatas e boné confederado. Eles existiram de fato, e, por vezes, eram as últimas coisas que eu tirava antes de dormir, antes de penetrar no domínio do onírico. A alpercata era, na verdade, um velho chinelão, usado até ficar podre, porque é nesse momento que ele fica mais confortável, como este abaixo:


Já o chapéu confederado era um chapéu confederado, ora bolas! A aba recurvada, a frente amassada, o distintivo de rifles, a cor azul:


Tem gente que critica o uso destes elementos (a bandeira confederada também é muito conhecida), porque os confederados eram escravistas, tal e coisa. Garanto a vocês que eu o usava por um único motivo: achava esteticamente legal, como acho até hoje, e ponto.

Bem... Sendo os últimos objetos que eu contactava antes de dormir, eram também meu vínculo último com a realidade. Acontece que, na letra, há uma progressiva perda da noção exata se mesmo eles são reais, até o completo desprendimento entre concreto e simbólico. O eu-lírico já não consegue distinguir o que o prende ao mundo. Já não tem nada que afiance algum tipo de enraizamento ou de laço. Não é legal?

O vínculo exato entre nossa consciência e a realidade é algo bem complexo, principalmente quando levamos em conta que o domínio do simbólico é inerente à espécie. Já nascemos fazendo entrelaçamentos entre concreto e simbólico, e sua principal expressão é a linguagem, que faz uso tão farto de codificações que, às vezes, dá a clara impressão de uma existência autônoma. E eis que, fazendo uma determinada pesquisa para outro tema, dou de cara com um tópico conhecido como desrealização, e sua prima-irmã, a despersonalização. Leio assustado que, de todos os transtornos de natureza psíquica, é o que mais causa sofrimento ao desgraçado que o porta, uma espécie de cólica renal na mente. Ao ler sua descrição, as gavetas da minha memória são jogadas ladeira abaixo e relembro imediatamente de minha velha e angustiada canção, apesar da batida animada. E percebo que fica difícil por vezes diferenciar o que é um mero estro poético de uma patologia.

Mas o que é a tal desrealização? Há algumas associações que o termo nos permite fazer de imediato, intuitivamente. Há sempre muitas coisas que queremos, maldito desejo! E sempre poucas coisas que conseguimos. Nós idealizamos demais a vida, este é o problema. Quando planejamos uma viagem, pensamos nas paisagens, nos passeios, no conforto e na aventura; não ficamos remoendo pneus furados, febres, tempo chuvoso, deslizamento de barreiras. Mas pneus furam, febres vêm, chuva cai e barreiras deslizam. Achamo-nos perseguidos pelo destino, e que a realidade é muito diferente das expectativas. Só que pode parar: isso é frustração, não é desrealização.

Outra coisa. Às vezes somos compelidos a participar de palestras chatas, reuniões intermináveis, escrituração de livros contábeis, aulas de Cálculo (perdoem-me os professores de matemática). É estranho. Nós estamos em qualquer outro mundo, em sensação de intensa narcolepsia, mas há gente atenta, fazendo perguntas, dando risadas. Você é o peixe fora do aquário. Mas isso é desinteresse, não é desrealização.

Ainda outra coisa. Há certos casos em que temos uma distorção da realidade. Os prédios estão tortos, as paredes desfiguradas, cheias de bichos. As cores das coisas estão trocadas, os sons mudaram, o que é pacífico se torna amedrontador. Seres míticos e fabulescos parecem estar diante de nós e, por vezes, nos sentimos apavorados, como se vivêssemos em um filme do expressionismo alemão. Mas isso é alucinação. Desrealização é outra coisa.

Mais uma. Às vezes dizemos: “sinto-me realizado”. Isso acontece quando atingimos objetivos, quando nos formamos, quando completamos a construção da casa, quando trocamos de carro, ou até mesmo quando levamos à cabo uma vingança, por que não? O contrário disso é sentir-se desrealizado? Absolutamente não.

A desrealização, na verdade, é uma perda do elo que nos prende ao mundo, pelo estranhamento e distanciamento da realidade ao nosso redor. É como se vivêssemos no interior de um quadro, onde toda a realidade é produção de nossa mente, mas sem que a própria realidade seja alterada. O intenso sofrimento vem do fato de se perder a confiança naquilo que é captado pelos próprios sentidos. Por esse viés, a despersonalização é tão ruim quanto, porque produz a sensação de “estranho no espelho”. Aqui, já não é o objeto que se perde, mas o próprio sujeito. Em ambas, a mesma sensação: observamos a realidade, mas não nos percebemos como partícipes dela. Estamos em um limbo e de lá vemos a vida passar, inclusive a nossa, mas sem crer nesse transcurso.

Para termos uma leve, mas mui leve ideia do que são esses transtornos dissociativos, podemos pensar naquelas mortes de pessoas muito caras a nós. Nos seus velórios, ouvimos: “parece mentira, parece mentira”... É isso. Parece mentira mesmo. E, com isso, temos uma superficialíssima amostra do que sente o desrealizado, só que com uma constância e permanência perturbadoras.

Notem bem a sutileza dessas síndromes. Elas não dão uma percepção distorcida da realidade, como é o caso da precitada alucinação, nem produz estados imaginários como ocorre com a esquizofrenia. A percepção está absolutamente intacta. O problema está no vínculo, está na associação da imagem percebida como real. Eu percebo o boné confederado, mas no giro da minha consciência não consigo diferenciá-lo do campo imaginativo, como se eu não diferenciasse o sonho do real tangível. Se o objeto de dissociação é o mundo percebido, temos a desrealização; se é o indivíduo que percebe, temos a despersonalização.

Clinicamente, é importante conhecer as causas destes distúrbios porque seu diagnóstico é obtido a partir da exclusão de outras etiologias. Podem ser derivadas de outras síndromes, como o transtorno do pânico e estresse agudo, ou pode estar associado ao consumo de drogas, bem como a patologias neurológicas físicas. Nestes casos, não há o enquadramento da moléstia, cabendo a ela o enquadramento como sintoma. Também não são consideradas patológicas as ocorrências episódicas, principalmente quando ocorrem logo após eventos traumáticos (a sensação de “parece mentira” estendida à realidade como um todo). Portanto, só temos a desrealização quando, tudo isso posto à parte, ainda resta o alheamento.

Tudo bem. Podemos sempre buscar causas físicas ou analisar a psique de alguém para justificar transtornos tão dolorosos quanto a desrealização e a despersonalização, mas onde fica a raiz filosófica de tudo isso? Por que algo que não fura, que não arde, que não sangra, que não lateja pode causar tanto sofrimento? Vou tentar buscar respostas na fenomenologia e no existencialismo, especialmente do francês Maurice Merleau-Ponty.

A fenomenologia entra em voga com muita força na academia filosófica a partir do início do século XX (já falei sobre esta metodologia neste texto). É uma época em que mais e mais teorias no campo psicológico vão sendo desenvolvidas, de modo a se concluir que a mente não é um mero atributo de uma suposta alma, e que exerce sua função de processar as captações dos sentidos para formar uma consciência. Husserl, criador da metodologia, percebe que não existe algo como uma consciência em repouso. Toda consciência tem um objeto, seja ele real ou imaginário, e é influenciada por n fatores. É mais ou menos como afirmar que é impossível pensar sem existir um objeto para o qual o pensamento se volte. É impossível “pensar em nada”. A consciência sempre se volta para alguma coisa, por isso ela possui o que se chama de intencionalidade.

Este termo pode causar certa confusão, porque dá a impressão de que a consciência somente funciona para os objetos que ela quer, o que empiricamente notamos não ser verdade. É que a palavra se origina do termo latino intendere, que significa tender a, voltar-se para. Dessa forma, a palavra intencionalidade, na fenomenologia, não tem o significado de querer fazer, mas de sempre estar voltada para algo.

A Filosofia do século XX passou a lidar com as ciências dos processos mentais, que dá explicações neurológicas e psicológicas que suprimem, cada vez mais, o dualismo corpo-alma, tão caro até então. No entanto, a elaboração da consciência passa a noção de um fenômeno tão subjetivo e tão etéreo que faz parecer que a dicotomia ainda permanece, com a consciência e seus conteúdos de um lado, a ser a sede do verdadeiro eu, e o corpo do outro, como um mero invólucro onde esses decursos psíquicos encontrariam meios para se propagar. É contra essa forma de “espiritualização” que renova a função da alma que Merleau-Ponty se insurge.

Como pensa nosso caro francês, a percepção foi relegada a um segundo plano porque ela, apesar de ser nosso contato imediato com o mundo, possui a característica de ser facilmente ludibriada. Não é preciso ir longe – ilusões de ótica e de audição são tremendamente comuns. O escopo final da busca pelo conhecimento é obtê-lo com perfeição, sem deixar margem para contestações, e os “furos” sensoriais constituem o que há de mais danoso para isso. É preciso, portanto, que a intelectualização retire tudo o que há de sujeira nas imagens que apreendemos dos objetos. Este é um dos grandes motores da fenomenologia: como se o objeto do conhecimento fosse uma grande cebola, é preciso remover todas as ramas, gavinhas e cascas para chegar em seu âmago. Só assim se chega à verdadeira cebola, a cebola que importa, que arde na boca e nos olhos.

Só que há um grande problema nisso tudo. O racionalismo exacerbado tende a aperfeiçoar tanto a verdade que acaba por fugir dela. A verdade, assim como as percepções, é imperfeita. Segundo Ponty, o corpo – elemento que percebe – não pode ser excluído da relação de conhecimento. Todo o corpo é sujeito, conjuntamente com a consciência. É um corpo “vivido”, em suas próprias palavras. O homem não é pura cognição. A consciência habita um corpo, um corpo que sente, um corpo que percebe e se situa. Este corpo é partícipe da consciência. Afinal, não há existência sem corpo. E mais. Cada um vê o mundo através de seu prisma, então o referencial da realidade não está nos outros, mas no modo como cada um colige experiências. E isso é obtido através dos sentidos do corpo, em suma.

Daí que nasce a fenomenologia da percepção, a partir da constatação de que os fenômenos, antes de serem elaborados pelo intelecto, passam pela máquina da sensibilidade em contato com o real. Desde muito tempo, muitos filósofos aderiram à epistemologia de Kant, que estabelece certos conhecimentos apriorísticos, nos quais se inserem as noções de tempo e de espaço – ninguém precisa aprender o que são eles, já que são conhecimentos inatos. Mas, novamente, ainda que já nasçamos com as estruturas mentais que permitem ter consciência de espaço e tempo, é o corpo quem os “traz para dentro”. É o corpo que se situa no espaço e que se projeta no tempo, e a partir daí ambos penetram no fluxo de nossa consciência. Simplesmente não há como remover o corpo físico desta relação. E Ponty ensina que todo fenômeno (a manifestação de qualquer objeto à consciência) foi antes uma percepção. Não existe fenômeno sem percepção. De certa forma, é o mesmo que diziam os filósofos empiristas, ao notar que nenhum conhecimento chega à mente sem antes passar pelos sentidos.

Pois muito bem. A consciência, dessa forma, é como se fosse mais um órgão do corpo. Não no sentido de ser algo como um fígado ou um pâncreas, já que sua sede é o cérebro, mas como um processo inerente ao organismo, como a circulação e a digestão. E, da mesma forma que temos problemas circulatórios e digestivos, também nossa consciência pode apresentar problemas e sufocos vários. O próprio Ponty aponta o estranho fenômeno dos membros fantasmas. São casos de pessoas que, pelos mais diversos motivos, perderam um braço ou uma perna, e, mesmo assim, continuam a ter sensações de dor ou coceira no membro perdido. Isso acontece porque o corpo, como um todo, tem a intuição não só de uma presença física do membro, mas também de uma configuração funcional, algo semelhante ao que ocorre com os instintos, o piloto automático do cérebro.

Se o processo digestivo pode ter defeitos, e o alimento que outrora nos nutria agora pode nos causar desconforto, também o processo consciencial pode se debilitar. É corpo, e, como tal, também adoece. O que era alimento para o estômago, agora não é mais; o que era real para a consciência, agora não é mais. A consciência e o corpo são um conjunto na ideação de si próprios, e a quebra do processo onde um percebe e o outro elabora mentalmente produz uma discrepância de efeitos inimagináveis, inclusive a perda de si mesmo ou do ambiente que nos rodeia.

Recomendação de leitura:

Merleau-Ponty é importante em três frentes: fenomenologia (apesar da crítica aqui descrita), existencialismo e marxismo. Por isso, é um escritor dos mais significativos do século XX. No que abordo no presente texto, o livro abaixo é o de melhor ilustração.


MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

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