Olá!
Chegava-se próximo do feriado prolongado do Dia do Trabalho.
Como se sabe, cidades turísticas costumam encher até a tampa nesses momentos,
e, dado o frio repentino e inesperado destes dias, seu maior atrativo, ir a
Campos do Jordão talvez não fosse uma boa ideia. Mas não há como ir ao sul da
Mantiqueira e deixar de passar por lá. Portanto, eu e a patroa convencionamos a
sexta-feira como dia bem adequado para subir ao ponto mais alto da serra (e de
todo o estado de São Paulo também), com a intenção de não voltar tão tarde, e
pegar um fondue no retorno a Santo
Antonio do Pinhal. Acontece que a vida tem dessas coisas, e tivemos um bom
motivo para ficar até tarde na cidade, como veremos daqui a pouco.
Campos do Jordão é bem maior que todas as cidades
circunstantes, e, como tal, possui suas vantagens e mazelas. No primeiro
tópico, é preciso dizer que quase tudo naquele lugar é muito bonito, sendo que
o próprio portal de entrada já é considerado, por si só, um atrativo turístico.
Mas é um lugar serrano, como eu já falei, e a neblina é algo
que fica gravado no subconsciente quando se vai para lá. Mais que isso, pegamos
um dia de nevoeiro espesso desde cedo, e muitas das fotos que ornarão este
texto estarão devidamente preenchidas por estas partículas de água disseminadas
no ar, como no valezinho abaixo. Outrossim, o mesmo fenômeno ocorrido em São
Bento do Sapucaí e Sapucaí-mirim se deu por aqui: tudo o que possuísse mais de
cinco metros de altura estava invisível. Com isso, teleférico do Morro do
Elefante e Pedra do Baú estavam riscados do meu mapa turístico particular.
A arquitetura de Campos do Jordão é bem conhecida:
influência europeia. Mas, ao contrário dos sobradinhos portugueses da Vila
Maria e das casas operárias italianas da Mooca, o que temos aqui são as
construções de tipo enxaimel, típicas
da Alemanha, Suíça, Áustria, Bélgica e outros países do norte da Europa. São
caras prá burro, mas lindas de morrer.
Fomos dar umas bandas pelo bairro do Capivari, especialmente
festivo naquele dia, em vista da festa do Pinhão (que também ocorria na vizinha
Santo Antonio do Pinhal). O aspecto das pessoas encapuzadas dava a dimensão da
temperatura de então.
Imaginávamos que, caso quiséssemos comprar algum tipo de
roupa, teríamos os olhos furados, mas não. Sim, isso era perfeitamente
possível, mas com um pouco de paciência foi possível escavar roupas de lã com
um preço nem tão para Deus, nem tão para o diabo.
Ao cair da noite, todos os restaurantes de Capivari acendem
seus réchauds; tanto os pequenos,
para derreter os fondues, quanto os
grandes, para manter nossos enrijecidos cadáveres razoavelmente aquecidos. Além
dos já mencionados queijos, há também algumas churrascarias e outros típicos da
culinária alemã.
Na região do Alto da Boa Vista, visitamos o Palácio Boa
Vista, residência de inverno do governador de São Paulo. Foi construído e
inaugurado por Ademar de Barros, que, muito antes de Paulo Maluf, já carregava
o pouco honorável epíteto de “rouba mas faz”. Óbvio que nosso ex-governante o
fez para uso próprio, a toque de caixa, sob o esfarrapo de que se tratava de um
lugar digno para um cargo digno, e que a casa não era para ele, mas para todos
os governadores em exercício. Bem... a parte disso, a casa é realmente muito
bonita, repleta de obras de arte, só que é proibido fotografar seu interior,
por alegadas questões de segurança.
Na sequência, fomos ao Museu Felícia Leirner, no mesmo
espaço físico onde fica o auditório Cláudio Santoro, aquele do célebre Festival
de Inverno. O lugar fica situado em um morro de onde se pode avistar com
privilégio a Pedra do Baú, desde que não haja tanta neblina.
Felícia Leirner, como explicou o guia do espaço, foi uma
escultora polonesa radicada no Brasil, casada com um industrial da área têxtil.
Após a morte do marido, passou a se dedicar à arte da escultura, utilizando os
mais diferentes suportes e passando por vários estilos, que constituíram fases
em sua carreira, refletidas na divisão a céu aberto das alas do museu.
Foi aqui que ocorreu um fato que mudou a rota do meu rolê. O
mesmo guia que nos atendeu informou que haveria uma apresentação GRATUITA da
Orquestra Jazz Sinfônica naquela noite no auditório. Será que eu me
interessaria?
Só que faltavam muitas horas para o concerto, e o jeito foi
continuar fazendo visitas a outros locais. Como já havia vindo aqui quando
criança, busquei pela memória minhas passagens, e a que estava mais presente
era a Ducha de Prata, onde há muitas lojas e uma corredeira um tanto
artificializada, além de uma pequena trilha que leva a uma paisagem com menos
interferências.
Apesar de ainda ser sexta-feira, a cidade já estava bastante
movimentada, como podia ser observado na Vila Abernéssia, no centro. Passamos
meio que voando pela igreja matriz, dedicada a Santa Terezinha...
... e pela praça do chafariz, onde, nas proximidades,
encostamo-nos para almoçar.
Logo após, fomos à Casa da Xilogravura, um museu particular
dedicado a ensinar aos leigos o nobre ofício da impressão. É instalada em uma
grande residência do bairro Jaguaribe.
O espaço é simbolizado por um cachorro, como pode ser visto
na pedra talhada na entrada do museu.
Qual seu sentido? É que havia um cão, chamado de Chiquinho,
que vivia pelas redondezas, virando uma espécie de mascote da casa. Quando
morreu, seu corpo foi enterrado no quintal. A pedra é, portanto, uma lápide.
Está tudo bem explicado em um memorial do museu.
Xilogravura, para quem não sabe, é uma técnica em que o
artista entalha imagens em madeira para embebê-la em tinta e reproduzi-las em
papel ou outro suporte, de maneira idêntica a um desses carimbos de repartição
pública. É sobejamente utilizada em literatura de cordel, porque é barata e
permite a reprodução de várias cópias, mas a técnica também pode ser utilizada
para produzir obras de grande tamanho, como várias das que estão expostas.
Tivemos a oportunidade de conhecer o dono do espaço, o
escritor e pesquisador Antonio Fernando Costella, que já legou o museu à USP
após sua morte. Estava cuidando do transporte de mais uma obra com sua esposa,
por isso não quisemos tomar muito do seu tempo.
Bem ao lado da Casa da Xilogravura, fica situada mais uma
igreja, essa dedicada a Nossa Senhora da Saúde, bem mais sóbria que a matriz.
Com a proximidade da noite, tratamos de nos achegar
novamente ao auditório Cláudio Santoro, desta vez para assistir ao concerto
programado. No foyer, ao invés de um
mero café, optamos pelas clássicas sopas locais. No caso, de abóbora.
Já na sala de concertos, como pede a voz da mocinha, nenhum
uso de celular após os toques da campainha de Moliére, para respeito à nobre
arte da música. Um último flash só para registro, já sabendo que versaria sobre
este tema no presente texto.
Devo confessar uma completa emoção já nos primeiros acordes
da orquestra regida pelo maestro Fábio Prado, que tem como propósito trazer
para o formato sinfonia os clássicos da MPB. Não há como comparar a audição de
uma orquestra ao vivo com uma gravação. É a mesma diferença de assistir um jogo
de futebol no estádio ou na televisão de sua casa.
Não quero usar aqui a expressão “música de verdade”, porque
não é meu direito arbitrar o que é arte e o que não é (vide este texto),
mas é somente em uma sala de concertos que podemos notar certas características
musicais, como a tridimensionalidade sonora, algo impossível com os paredões
acústicos dos grandes shows, com o espaço limitado dos barzinhos ou com os
individualistas fones de ouvido. Do primeiro, é possível explorar a potência
sonora; do segundo o intimismo e, do terceiro, o isolamento. Mas só no
auditório temos a percepção das diferentes profundidades que o som musical pode
obter. Uma orquestra é distribuída de modo às diferentes intensidades
instrumentais fazerem parte do tecido sonoro, nada está lá por acaso. Percebemos,
por exemplo, os sons da tuba vindos de uma direção, os dos timbales vindos de
outra, e a tapeçaria de violinos guarnecendo todas as partes, como se fosse
possível tocá-los. Isso não é
possível de obter em estruturas cuja emissão de som seja concêntrica. E é
impressionante como isso faz toda a diferença, inclusive na dramaticidade das
peças.
Por isso, não é só uma questão de ser música clássica (até
mesmo porque, aqui, temos uma adaptação advinda do popular). É um fato que
precisa ser presencial para ser percebido. Outra coisa: somente ao vivo
conseguimos ter uma dimensão mais exata da importância de um maestro. A
regência é imperceptível no som gravado, e subestimável quando vista pela TV,
dando aparência de uma tradição ou dogma, e não de um papel realmente vital. Já
no próprio auditório, consegue-se entender sua função quase pastoral, de
conduzir seu rebanho musical de forma a ditar-lhe o ritmo, a elevar-lhe a
intensidade, a conferir-lhe uniformidade, a destacar-lhe o detalhe. Assistir a
um concerto é uma experiência única e necessária.
Mas é preciso tentar entender porque as artes, e a música em
especial, exercem em nós tanto fascínio. A música, notadamente a instrumental,
não pode nos parecer vazia de sentido? Por que dizemos que uma melodia é
triste, heroica, irrompedora, cômica, se ela não diz nada e se nos momentos em
que ocorrem fatos tristes, heroicos, irrompedores ou cômicos não há nenhuma
música em seu substrato? Vamos tentar entender com Schopenhauer, meu filósofo
favorito, mas passando primeiro por Kant.
Racionalistas e empiristas viviam às turras desde os fins da
Idade Média. Os primeiros diziam que todo o conhecimento partia do intelecto,
enquanto os outros achavam que nascia da observação. Kant resolve a charada,
dizendo que os racionalistas tinham razão no que diz respeito à estrutura da
mente, que tem a capacidade para receber e processar informações, e que os
empiristas estavam corretos ao afirmar que a mente não é nada sem conteúdos.
Desta forma, o processamento é racional, e o dado é empírico. No entanto, Kant
não deixa de dar uma certa primazia ao processo empírico, porque o homem não é
capaz de observar a coisa-em-si, o objeto essencial, o noumeno. O que é possível observar é o particular, o acidental, um
exemplar existente, o fenômeno. E por
que?
Porque todos os homens são, antes de mais nada, indivíduos.
E, como tal, possuem uma perspectiva única sobre as coisas, o que não se resume
a uma questão de opinião, como pode parecer. Temos todo um ambiente que
influencia nossa formação, fornecendo usos e costumes, temos contingências fisiológicas
que podem modificar o modo como apreendemos os objetos, e temos um modo
particularíssimo de exercer nossa percepção que é simplesmente impossível de
ser constatado pelas demais pessoas. Para entender melhor, imagine o que é a
percepção das cores. Pense como eu, você, seu vizinho e todas as pessoas do
mundo enxergam a cor azul. Será que todos a vemos igual? É perfeitamente
possível que aquilo que é azul para mim, é verde para você. Não se trata de um
tipo de daltonismo, onde há um erro na percepção de certas cores. Se
absolutamente tudo o que é azul para mim for verde para você, então estaremos
de acordo que o objeto é azul e pronto, acabou. Mas qual seria a cor-em-si da
coisa-em-si? O meu azul ou o seu azul (que para mim é verde, apesar de não
notar)? Percebem como é impossível alcançar o noumeno?
A inovação de Arthur Schopenhauer é a seguinte: sendo um
materialista convicto, remove qualquer componente idealista da equação
imaginada por Kant. Na sua dimensão ontológica, o mundo é regido pela vontade. Já discuti essa questão neste texto, mas é necessário que me aprofunde um pouco mais para as coisas
ficarem claras. A vontade, na concepção schopenhaueriana, é a verdadeira
essência do mundo. Trata-se de uma força disforme, incontrolável e que não tem
outro objetivo a não ser continuar a existir. Não precisamos perder tempo para
tentar imaginar como é a vontade, ela é simplesmente inatingível. É dela que
partem todos os desejos e impulsos, por mais ilógicos que sejam, já que na sua
dimensão não há causalidade necessária, não há tempo transcorrido e não há
espaço preenchido, coisas características dos fenômenos.
Como a vontade se manifesta, se ela é cega e informe? Na
forma de representação. Todas as
vezes que a vontade nos guia para um desejo, ela passa a ser representada pelo
mesmo, de acordo com a circunstância fenomênica. Se tenho fome, a vontade toma
a representação de uma picanha. Após ser devorada, outra vez a vontade buscará
uma representação, agora na forma de rede para dormir; ao acordar, mais uma vez
a vontade será representada por outra coisa, e outra, e outra, e outra... A
vontade é um ciclo infinito de representações, que se repetirão insaciavelmente
até a morte. Captaram que o noumeno e
o fenômeno de Kant são a vontade e a representação de Schopenhauer? A novidade
está na dinâmica deste último, que coloca materialidade à ontologia do noumeno e à tangibilidade do fenômeno.
Acontece que tudo isso é agonizante. O desejo infinito
impulsionado pela vontade não dá descanso para um ser humano, e, passados anos
e mais anos de frustrações causadas pela não satisfação dos anseios desta
vontade ou pelo tédio de sua concreção, o que resta é a angústia e uma sensação
de impotência e irrealização. Como sair desse círculo vicioso? Schopenhauer dá
dois caminhos.
O primeiro é a ascese. Schopenhauer era um estudioso de doutrinas
orientais, especialmente do Budismo. A prática contemplativa dos monges, para
quem é mais desejável um descolamento do mundo do que o enlace vigoroso aos
bens e às vaidades, é um modelo a ser seguido. Para resistir aos imperativos da
vontade, é preciso voltar as costas às suas representações. É um processo que
requer um costume, doloroso a princípio, dada a intensa sensação de perda, mas
que aos poucos se solidifica, na forma de indiferença.
A outra chave é a contemplação estética, atingindo seu
apogeu com a música. Schopenhauer entende que as artes possuem o condão de
fugir do grilhão da vontade justamente por não se focar em causalidade ou
temporalidade, necessárias para formar a representação. A experiência estética
é uma maneira de fazer uma intuição direta dos sedimentos que ficam por trás do
mundo experienciável, sem passar pelo crivo da individuação. De fato, se
notarmos que a apreciação da obra de arte tem o viés de escapar do fenômeno que
é apresentado diante do apreciador, poderemos perceber o alto nível de
abstração que temos como atingir. E a primazia da música vem justamente disso:
enquanto manifestações como a arquitetura, a escultura, a pintura, o teatro e a
literatura lançam mão de objetos concretos para suportar seu sentido subjetivo,
a música prescinde disso. Seu único ponto de concretude é o som, e nada mais. A
música consegue transcender a razão, dispensando a formação de conceitos que,
em tese, desvirtuariam o acesso direto à vontade, transformando-a novamente em
representação. É como eu já falei mais acima – sem adicionar nenhum tipo de
ideia ou linguagem, a música consegue trazer expressão aos mais diversos
sentimentos, sem que consigamos explicar o porquê. Justamente porque sintoniza a
vontade sem a atenuação da lógica, do sentido, da razão. A música plasma a
própria vontade.
Desta forma, enquanto a ascese é uma solução que volta as
costas para a vontade, a música a encara nos olhos, mesmo que não seja um
fármaco permanente para o problema do sofrimento causado pela sua eterna
pulsão. O absurdo da existência, portanto, é atenuado por essa panaceia, e não
extinto.
Percebam como Schopenhauer precede um monte de gente. Os
existencialistas lhe são tributários pela expressão da angústia. Nietzsche
importa e concorda com a vontade nas camadas inferiores da consciência (ainda
que mais tarde passe a discordar de sua posição), e Freud traz dele o conceito
de inconsciente que rege as ações e desejos. É pouco?
Incluam uma audição em sala de concertos naqueles projetos
para fazer antes de morrer, nem que seja para discordar verticalmente de mim.
E, se possível, aproveitem para aquecer o estômago e o coração na fria região
da Mantiqueira.
Recomendação de leitura:
Já recomendei anteriormente o capolavoro de Schopenhauer, por isso recomendarei outra obra, na
verdade um extrato de seu imenso livro Parerga e Paralipomena, em que são
reproduzidas suas aulas na Universidade de Berlim relacionadas à arte.
SCHOPENHAUER, Arthur. A Metafísica do Belo. São Paulo:
Unesp, 2003.
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