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terça-feira, 11 de julho de 2017

Navegar é preciso viver - 5ª ancoragem: Campos de Jordão e a música que se abraça à metafísica

Olá!


Chegava-se próximo do feriado prolongado do Dia do Trabalho. Como se sabe, cidades turísticas costumam encher até a tampa nesses momentos, e, dado o frio repentino e inesperado destes dias, seu maior atrativo, ir a Campos do Jordão talvez não fosse uma boa ideia. Mas não há como ir ao sul da Mantiqueira e deixar de passar por lá. Portanto, eu e a patroa convencionamos a sexta-feira como dia bem adequado para subir ao ponto mais alto da serra (e de todo o estado de São Paulo também), com a intenção de não voltar tão tarde, e pegar um fondue no retorno a Santo Antonio do Pinhal. Acontece que a vida tem dessas coisas, e tivemos um bom motivo para ficar até tarde na cidade, como veremos daqui a pouco.


Campos do Jordão é bem maior que todas as cidades circunstantes, e, como tal, possui suas vantagens e mazelas. No primeiro tópico, é preciso dizer que quase tudo naquele lugar é muito bonito, sendo que o próprio portal de entrada já é considerado, por si só, um atrativo turístico.


Mas é um lugar serrano, como eu já falei, e a neblina é algo que fica gravado no subconsciente quando se vai para lá. Mais que isso, pegamos um dia de nevoeiro espesso desde cedo, e muitas das fotos que ornarão este texto estarão devidamente preenchidas por estas partículas de água disseminadas no ar, como no valezinho abaixo. Outrossim, o mesmo fenômeno ocorrido em São Bento do Sapucaí e Sapucaí-mirim se deu por aqui: tudo o que possuísse mais de cinco metros de altura estava invisível. Com isso, teleférico do Morro do Elefante e Pedra do Baú estavam riscados do meu mapa turístico particular.


A arquitetura de Campos do Jordão é bem conhecida: influência europeia. Mas, ao contrário dos sobradinhos portugueses da Vila Maria e das casas operárias italianas da Mooca, o que temos aqui são as construções de tipo enxaimel, típicas da Alemanha, Suíça, Áustria, Bélgica e outros países do norte da Europa. São caras prá burro, mas lindas de morrer.


Fomos dar umas bandas pelo bairro do Capivari, especialmente festivo naquele dia, em vista da festa do Pinhão (que também ocorria na vizinha Santo Antonio do Pinhal). O aspecto das pessoas encapuzadas dava a dimensão da temperatura de então.


Imaginávamos que, caso quiséssemos comprar algum tipo de roupa, teríamos os olhos furados, mas não. Sim, isso era perfeitamente possível, mas com um pouco de paciência foi possível escavar roupas de lã com um preço nem tão para Deus, nem tão para o diabo.


Ao cair da noite, todos os restaurantes de Capivari acendem seus réchauds; tanto os pequenos, para derreter os fondues, quanto os grandes, para manter nossos enrijecidos cadáveres razoavelmente aquecidos. Além dos já mencionados queijos, há também algumas churrascarias e outros típicos da culinária alemã.


Na região do Alto da Boa Vista, visitamos o Palácio Boa Vista, residência de inverno do governador de São Paulo. Foi construído e inaugurado por Ademar de Barros, que, muito antes de Paulo Maluf, já carregava o pouco honorável epíteto de “rouba mas faz”. Óbvio que nosso ex-governante o fez para uso próprio, a toque de caixa, sob o esfarrapo de que se tratava de um lugar digno para um cargo digno, e que a casa não era para ele, mas para todos os governadores em exercício. Bem... a parte disso, a casa é realmente muito bonita, repleta de obras de arte, só que é proibido fotografar seu interior, por alegadas questões de segurança.


Na sequência, fomos ao Museu Felícia Leirner, no mesmo espaço físico onde fica o auditório Cláudio Santoro, aquele do célebre Festival de Inverno. O lugar fica situado em um morro de onde se pode avistar com privilégio a Pedra do Baú, desde que não haja tanta neblina.


Felícia Leirner, como explicou o guia do espaço, foi uma escultora polonesa radicada no Brasil, casada com um industrial da área têxtil. Após a morte do marido, passou a se dedicar à arte da escultura, utilizando os mais diferentes suportes e passando por vários estilos, que constituíram fases em sua carreira, refletidas na divisão a céu aberto das alas do museu.


Foi aqui que ocorreu um fato que mudou a rota do meu rolê. O mesmo guia que nos atendeu informou que haveria uma apresentação GRATUITA da Orquestra Jazz Sinfônica naquela noite no auditório. Será que eu me interessaria?


Só que faltavam muitas horas para o concerto, e o jeito foi continuar fazendo visitas a outros locais. Como já havia vindo aqui quando criança, busquei pela memória minhas passagens, e a que estava mais presente era a Ducha de Prata, onde há muitas lojas e uma corredeira um tanto artificializada, além de uma pequena trilha que leva a uma paisagem com menos interferências.


Apesar de ainda ser sexta-feira, a cidade já estava bastante movimentada, como podia ser observado na Vila Abernéssia, no centro. Passamos meio que voando pela igreja matriz, dedicada a Santa Terezinha...


... e pela praça do chafariz, onde, nas proximidades, encostamo-nos para almoçar.


Logo após, fomos à Casa da Xilogravura, um museu particular dedicado a ensinar aos leigos o nobre ofício da impressão. É instalada em uma grande residência do bairro Jaguaribe.


O espaço é simbolizado por um cachorro, como pode ser visto na pedra talhada na entrada do museu.


Qual seu sentido? É que havia um cão, chamado de Chiquinho, que vivia pelas redondezas, virando uma espécie de mascote da casa. Quando morreu, seu corpo foi enterrado no quintal. A pedra é, portanto, uma lápide. Está tudo bem explicado em um memorial do museu.


Xilogravura, para quem não sabe, é uma técnica em que o artista entalha imagens em madeira para embebê-la em tinta e reproduzi-las em papel ou outro suporte, de maneira idêntica a um desses carimbos de repartição pública. É sobejamente utilizada em literatura de cordel, porque é barata e permite a reprodução de várias cópias, mas a técnica também pode ser utilizada para produzir obras de grande tamanho, como várias das que estão expostas.


Tivemos a oportunidade de conhecer o dono do espaço, o escritor e pesquisador Antonio Fernando Costella, que já legou o museu à USP após sua morte. Estava cuidando do transporte de mais uma obra com sua esposa, por isso não quisemos tomar muito do seu tempo.


Bem ao lado da Casa da Xilogravura, fica situada mais uma igreja, essa dedicada a Nossa Senhora da Saúde, bem mais sóbria que a matriz.


Com a proximidade da noite, tratamos de nos achegar novamente ao auditório Cláudio Santoro, desta vez para assistir ao concerto programado. No foyer, ao invés de um mero café, optamos pelas clássicas sopas locais. No caso, de abóbora.


Já na sala de concertos, como pede a voz da mocinha, nenhum uso de celular após os toques da campainha de Moliére, para respeito à nobre arte da música. Um último flash só para registro, já sabendo que versaria sobre este tema no presente texto.


Devo confessar uma completa emoção já nos primeiros acordes da orquestra regida pelo maestro Fábio Prado, que tem como propósito trazer para o formato sinfonia os clássicos da MPB. Não há como comparar a audição de uma orquestra ao vivo com uma gravação. É a mesma diferença de assistir um jogo de futebol no estádio ou na televisão de sua casa.

Não quero usar aqui a expressão “música de verdade”, porque não é meu direito arbitrar o que é arte e o que não é (vide este texto), mas é somente em uma sala de concertos que podemos notar certas características musicais, como a tridimensionalidade sonora, algo impossível com os paredões acústicos dos grandes shows, com o espaço limitado dos barzinhos ou com os individualistas fones de ouvido. Do primeiro, é possível explorar a potência sonora; do segundo o intimismo e, do terceiro, o isolamento. Mas só no auditório temos a percepção das diferentes profundidades que o som musical pode obter. Uma orquestra é distribuída de modo às diferentes intensidades instrumentais fazerem parte do tecido sonoro, nada está lá por acaso. Percebemos, por exemplo, os sons da tuba vindos de uma direção, os dos timbales vindos de outra, e a tapeçaria de violinos guarnecendo todas as partes, como se fosse possível tocá-los. Isso não é possível de obter em estruturas cuja emissão de som seja concêntrica. E é impressionante como isso faz toda a diferença, inclusive na dramaticidade das peças.

Por isso, não é só uma questão de ser música clássica (até mesmo porque, aqui, temos uma adaptação advinda do popular). É um fato que precisa ser presencial para ser percebido. Outra coisa: somente ao vivo conseguimos ter uma dimensão mais exata da importância de um maestro. A regência é imperceptível no som gravado, e subestimável quando vista pela TV, dando aparência de uma tradição ou dogma, e não de um papel realmente vital. Já no próprio auditório, consegue-se entender sua função quase pastoral, de conduzir seu rebanho musical de forma a ditar-lhe o ritmo, a elevar-lhe a intensidade, a conferir-lhe uniformidade, a destacar-lhe o detalhe. Assistir a um concerto é uma experiência única e necessária.

Mas é preciso tentar entender porque as artes, e a música em especial, exercem em nós tanto fascínio. A música, notadamente a instrumental, não pode nos parecer vazia de sentido? Por que dizemos que uma melodia é triste, heroica, irrompedora, cômica, se ela não diz nada e se nos momentos em que ocorrem fatos tristes, heroicos, irrompedores ou cômicos não há nenhuma música em seu substrato? Vamos tentar entender com Schopenhauer, meu filósofo favorito, mas passando primeiro por Kant.

Racionalistas e empiristas viviam às turras desde os fins da Idade Média. Os primeiros diziam que todo o conhecimento partia do intelecto, enquanto os outros achavam que nascia da observação. Kant resolve a charada, dizendo que os racionalistas tinham razão no que diz respeito à estrutura da mente, que tem a capacidade para receber e processar informações, e que os empiristas estavam corretos ao afirmar que a mente não é nada sem conteúdos. Desta forma, o processamento é racional, e o dado é empírico. No entanto, Kant não deixa de dar uma certa primazia ao processo empírico, porque o homem não é capaz de observar a coisa-em-si, o objeto essencial, o noumeno. O que é possível observar é o particular, o acidental, um exemplar existente, o fenômeno. E por que?

Porque todos os homens são, antes de mais nada, indivíduos. E, como tal, possuem uma perspectiva única sobre as coisas, o que não se resume a uma questão de opinião, como pode parecer. Temos todo um ambiente que influencia nossa formação, fornecendo usos e costumes, temos contingências fisiológicas que podem modificar o modo como apreendemos os objetos, e temos um modo particularíssimo de exercer nossa percepção que é simplesmente impossível de ser constatado pelas demais pessoas. Para entender melhor, imagine o que é a percepção das cores. Pense como eu, você, seu vizinho e todas as pessoas do mundo enxergam a cor azul. Será que todos a vemos igual? É perfeitamente possível que aquilo que é azul para mim, é verde para você. Não se trata de um tipo de daltonismo, onde há um erro na percepção de certas cores. Se absolutamente tudo o que é azul para mim for verde para você, então estaremos de acordo que o objeto é azul e pronto, acabou. Mas qual seria a cor-em-si da coisa-em-si? O meu azul ou o seu azul (que para mim é verde, apesar de não notar)? Percebem como é impossível alcançar o noumeno?

A inovação de Arthur Schopenhauer é a seguinte: sendo um materialista convicto, remove qualquer componente idealista da equação imaginada por Kant. Na sua dimensão ontológica, o mundo é regido pela vontade. Já discuti essa questão neste texto, mas é necessário que me aprofunde um pouco mais para as coisas ficarem claras. A vontade, na concepção schopenhaueriana, é a verdadeira essência do mundo. Trata-se de uma força disforme, incontrolável e que não tem outro objetivo a não ser continuar a existir. Não precisamos perder tempo para tentar imaginar como é a vontade, ela é simplesmente inatingível. É dela que partem todos os desejos e impulsos, por mais ilógicos que sejam, já que na sua dimensão não há causalidade necessária, não há tempo transcorrido e não há espaço preenchido, coisas características dos fenômenos.

Como a vontade se manifesta, se ela é cega e informe? Na forma de representação. Todas as vezes que a vontade nos guia para um desejo, ela passa a ser representada pelo mesmo, de acordo com a circunstância fenomênica. Se tenho fome, a vontade toma a representação de uma picanha. Após ser devorada, outra vez a vontade buscará uma representação, agora na forma de rede para dormir; ao acordar, mais uma vez a vontade será representada por outra coisa, e outra, e outra, e outra... A vontade é um ciclo infinito de representações, que se repetirão insaciavelmente até a morte. Captaram que o noumeno e o fenômeno de Kant são a vontade e a representação de Schopenhauer? A novidade está na dinâmica deste último, que coloca materialidade à ontologia do noumeno e à tangibilidade do fenômeno.

Acontece que tudo isso é agonizante. O desejo infinito impulsionado pela vontade não dá descanso para um ser humano, e, passados anos e mais anos de frustrações causadas pela não satisfação dos anseios desta vontade ou pelo tédio de sua concreção, o que resta é a angústia e uma sensação de impotência e irrealização. Como sair desse círculo vicioso? Schopenhauer dá dois caminhos.

O primeiro é a ascese. Schopenhauer era um estudioso de doutrinas orientais, especialmente do Budismo. A prática contemplativa dos monges, para quem é mais desejável um descolamento do mundo do que o enlace vigoroso aos bens e às vaidades, é um modelo a ser seguido. Para resistir aos imperativos da vontade, é preciso voltar as costas às suas representações. É um processo que requer um costume, doloroso a princípio, dada a intensa sensação de perda, mas que aos poucos se solidifica, na forma de indiferença.

A outra chave é a contemplação estética, atingindo seu apogeu com a música. Schopenhauer entende que as artes possuem o condão de fugir do grilhão da vontade justamente por não se focar em causalidade ou temporalidade, necessárias para formar a representação. A experiência estética é uma maneira de fazer uma intuição direta dos sedimentos que ficam por trás do mundo experienciável, sem passar pelo crivo da individuação. De fato, se notarmos que a apreciação da obra de arte tem o viés de escapar do fenômeno que é apresentado diante do apreciador, poderemos perceber o alto nível de abstração que temos como atingir. E a primazia da música vem justamente disso: enquanto manifestações como a arquitetura, a escultura, a pintura, o teatro e a literatura lançam mão de objetos concretos para suportar seu sentido subjetivo, a música prescinde disso. Seu único ponto de concretude é o som, e nada mais. A música consegue transcender a razão, dispensando a formação de conceitos que, em tese, desvirtuariam o acesso direto à vontade, transformando-a novamente em representação. É como eu já falei mais acima – sem adicionar nenhum tipo de ideia ou linguagem, a música consegue trazer expressão aos mais diversos sentimentos, sem que consigamos explicar o porquê. Justamente porque sintoniza a vontade sem a atenuação da lógica, do sentido, da razão. A música plasma a própria vontade.

Desta forma, enquanto a ascese é uma solução que volta as costas para a vontade, a música a encara nos olhos, mesmo que não seja um fármaco permanente para o problema do sofrimento causado pela sua eterna pulsão. O absurdo da existência, portanto, é atenuado por essa panaceia, e não extinto.

Percebam como Schopenhauer precede um monte de gente. Os existencialistas lhe são tributários pela expressão da angústia. Nietzsche importa e concorda com a vontade nas camadas inferiores da consciência (ainda que mais tarde passe a discordar de sua posição), e Freud traz dele o conceito de inconsciente que rege as ações e desejos. É pouco?

Incluam uma audição em sala de concertos naqueles projetos para fazer antes de morrer, nem que seja para discordar verticalmente de mim. E, se possível, aproveitem para aquecer o estômago e o coração na fria região da Mantiqueira.

Recomendação de leitura:

Já recomendei anteriormente o capolavoro de Schopenhauer, por isso recomendarei outra obra, na verdade um extrato de seu imenso livro Parerga e Paralipomena, em que são reproduzidas suas aulas na Universidade de Berlim relacionadas à arte.

SCHOPENHAUER, Arthur. A Metafísica do Belo. São Paulo: Unesp, 2003.

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