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quarta-feira, 14 de março de 2018

Sobre histórias em quadrinhos e grafite: reminiscências infantis e apreciações sobre a intersecção artística entre ambos

Olá!

Um dos indicativos que as coisas iam bem ou mal em casa acontecia nos domingos, pela manhã. Isso se meu avô já não tivesse sumido comigo para um desses campos de várzea da vida. Era o seguinte: meu pai não era exatamente um grande literato, mas, dada sua condição de operário, até que o danado gostava de ler. Isso incluía o jornal dominical, que era um calhamaço cheio de cadernos disso e daquilo, incluindo até um suplemento infantil e outro feminino, como se apenas reportagens sobre maquiagens e panelas interessassem às mulheres. Mas era, naturalmente, a edição mais cara da semana. Nos tempos de aperto, meu pai limitava-se a comprar meio quilo de batatas na quitanda do seo Minoru, às vezes acompanhado de um pé de alface. Quando as coisas estavam melhores, ia à feira, que ficava um bocado longe, principalmente se levarmos em conta a longa e íngreme ladeira que precisávamos vencer logo de cara, para chegar à rua do Toco. Eu ia a tiracolo, para carregar as coisas mais leves, porém volumosas, como as verduras. “É coisa de homem”, dizia o velho.

A coisa compensava porque o melhor estava na volta. Sacolas devidamente cheias, parávamos na banca de jornal que ficava de frente à precitada ladeira, onde meu pai comprava a Folha. Sempre que isso acontecia, sobrava para mim um gibi qualquer, e, com isso, a empreitada já tinha valido a pena. Quem não gostava muito era minha mãe, já que meu pai era dado a espalhar jornal por todos os móveis e pelo chão da sala, que chegava ao caos quando o vento maroto arrastava as leves e grandes folhas pelo cômodo inteiro. Menos mal que uma edição fornecia um mês de reposição para a gaiola dos passarinhos.

Isso tudo parece uma bobagem qualquer que se passa na vida de quase todo mundo, mas não é só uma memória afetiva. Na verdade, a leitura de gibis foi, no meu caso, um grande meio de incentivo à leitura. Modéstia à parte, leio muito bem, provavelmente melhor que a média no Brasil. E, embora tenha diminuído muito o costume de comprar gibis, os quadrinhos foram propedêuticos no meu gosto pela leitura, e continuo a preferi-los aos semanários (nem tão) jornalísticos nos consultórios de dentista. Ou seja, a visão que se tem dos quadrinhos como mero entretenimento é uma grande bobagem. Isso acontece com muitas outras coisas, como se verá.

Isso posto, um tempinho atrás, algum artista anônimo instalou bem na esquina da rua de casa uma série de quadros dispostos sequencialmente, dissecando algumas considerações filosóficas e sociais de um mendigo que tramita pelo centro desta desvairada pauliceia. Uma história em quadrões! Ela já não está mais lá, evidentemente, surrada pelo clima maluco e açoitada pelo vandalismo, e finalmente arrancada pela prefeitura, que construiu umas casinhas no terreno ao lado.


Entre as dissertações do morador de rua que caminha sarcástico com sua meia dúzia de pertences e as historinhas da minha infância há uma distância abissal. Destas últimas, extraímos apenas a função de entreter, mas há sempre algo a mais que podemos retirar de uma manifestação cultural, ainda que destinada precipuamente a crianças, como também é o caso dos desenhos animados. Vamos tentar ver isso.

Quais eram as revistas que meu pai me comprava? Sempre uma por vez, flutuava entre Turma da Mônica e Disney, com raras exceções, porque eram as mais em conta. Gostava de ambas, mas o meu personagem favorito disparado era o Zé Carioca.

Se fizermos uma análise bem crítica, é um personagem dos mais politicamente incorretos, porque sua construção reforça o estereótipo maldoso que temos do carioca. Por um lado, é um vagabundo, a quem a palavra “trabalho” causa calafrios. Por outro, é um aproveitador, o malandro romântico que dá a volta no mundo para conseguir algum tipo de vantagem, principalmente aproveitando da ingenuidade de seus amigos e da complacência de sua namorada Rosinha. Sabemos que esse estigma nasce das ideias mirabolantes de um dos presidentes mais bem conceituados do país, Juscelino Kubitschek, ídolo mineiro (como consta deste texto) que mudou a capital federal do Rio de Janeiro para Brasília. O grande problema (além do consumo de recursos exorbitante) é que o Rio deixou de ser a sede administrativa do país sem um plano para encontrar uma nova vocação econômica, mesmo com todo o seu potencial turístico. Desta forma, a fama de cidade inoperacional foi se fixando perniciosamente, sem que a sua população tivesse exata noção do que fazer. O mais interessante a notar aqui é que a figura do bonachão desinteressado pelo labor não foi construída pelos seus criadores ianques. Sua apresentação original foi a de um anfitrião hospitaleiro, dado sim a prazeres, mas por aquilo que de paradisíaco seu ambiente apresentava. Eram épocas da política da boa vizinhança e nada muito polêmico seria mesmo elaborado. A personalidade que nos é apresentada foi esculpida por brasileiros, quando assumiram a personagem para redigir argumentos próprios. O pior é quando nos é apresentado o Zé Paulista, seu exato contraponto. Um executivo sempre com pressa e afazeres concomitantes, é a antítese da vida vivida prazerosamente. Ambos se dão mal, em geral, nos desfechos de suas aventuras, mas que há um reforço imenso nos estereótipos, isso há mesmo.

Com relação à Turma da Mônica, gostava ma non troppo. Eu sempre tive a impressão de que o Cascão era um menino pobre, em oposição à classe média baixa do restante da turma, e achava legal isso, porque não havia nenhuma nota de comiseração para tornar a história panfletária. Pelo menos no que eu percebia, o Cascão era como uma espécie de primo pobre, e não um mero detrator dos banhos. O que não impedia seu convívio com os demais meninos da turma. Também gostava do Penadinho, com suas estórias do pós-vida, uma maneira didática de se lidar com a imprevisibilidade da morte. Eram historinhas feitas com um pouco mais de delicadeza, apesar das dolorosas coelhadas da famosa dentuça.

Ora, se os quadrinhos da Turma da Mônica têm uma qualidade intrínseca superior aos do Zé Carioca, por qual motivo prefiro este último? Pela simples razão de que o conterrâneo de Machado e Vinicius é mais divertido, só isso. No que diz respeito ao humor, ele é melhor, punto e finito. Ele tem o mesmo temperamento transgressivo do Pica-pau das antigas, que confrontava claramente a lei e as regras sociais ianques: roubava gasolina, não pagava ingressos, desafiava as autoridades com rachas e quedas de cascatas, com os policiais sendo apresentados como autênticos idiotas. Beijava na boca meninos e meninas, sem se insurgir contra figurinos femininos. Era vingativo, desonesto e péssimo inquilino, uma autêntica medula de todo o hedonismo, contraindicado para ensinar bons modos às nossas crianças. Em suma: as histórias das primeiras versões do Pica-pau mostravam um personagem prenhe da vontade de ser livre, e nisso o Zé Carioca é o representante tupiniquim, ainda que por outras vias, menos exacerbadas. Nestes chatos tempos onde a incorreção política é prerrogativa obrigatória do pensamento dito de direita e a defesa dos direitos sociais só fazem parte da pauta à esquerda*, o Zé Carioca se coloca como uma contradição: ao mesmo tempo em que é um reforçador de estereótipos, é também um signo dos caminhos que o pobre adota para viver minimamente. Também ele é transgressivo e se defende como pode da miséria. Seus amigos não acompanham sua modorra e quase compulsividade pelo não-trabalho, e continuam tão pobres quanto ele, vivendo no morro despossuído da Vila Xurupita. Eles são um belo contramodelo da atual onda de meritocracia.

Mas esse é só o aspecto mais analítico da coisa, e não quero me perder em divagações didáticas. Obviamente, com o passar do tempo meu gosto quadrinístico foi se diversificando. Mafalda, Calvin, Hagar o Horrível, os belgas Hergé e Leloup (de Timtim e Yoko Tsuno), a descoberta da Gibiteca do Centro Cultural São Paulo e de leituras adultas de Robert Crumb e Gilbert Sheldon, além de outros que não vou lembrar agora. Depois, as graphic novels da Marvel e a série Watchmen da DC Comics foram me dando uma noção mais apurada dos quadrinhos como categoria artística. Uma miscelânea da capacidade narrativa da Literatura, da captação do instante da Fotografia e da abstração inventiva da Pintura.

Vejo os quadrinhos como uma espécie de vingança da Pintura contra a Fotografia. Com efeito, esta última, apesar de não ocupar obrigatoriamente o espaço da primeira, veio lhe retirar uma função pragmática importante: a de retratar. Antigamente a pintura (e o desenho, seu consequente facultativo) era o recurso disponível para espelhar a aparência de pessoas, objetos e paisagens, e consistia em ofício que demandava grande técnica, o que a reservava para poucos. O advento da fotografia mudou esse estado de coisas. A habilidade do artista é transferida para a tecnologia embarcada em equipamentos cada vez mais modernos, com a capacidade cada vez maior de reproduzir a realidade circunstante de maneira fidedigna. Para o objetivo aletológico de reproduzir, não há como comparar os dois resultados finais. Por melhor que seja a mão de quem delineia, sempre haverá o filtro dos seus olhos. Com as máquinas, não. A não ser que o objetivo seja artístico, e o fotógrafo interfira no modo como se fotografa, no filme (ou nos chips de memória) estará uma reprodução acrítica, sem interferências, e esse é o melhor resultado possível para quem deseja obter um retrato fiel. Podem observar como a partir da evolução da fotografia os pintores retrativos passaram a ser tratados como artistas menores, que impressionam nas feiras, mas que não tem lugar nas galerias**.

Pois bem. Observem que os quadrinhos se valem da estrutura fotográfica para cumprir sua função. Inclusive, se observarmos um filme físico à moda antiga, veremos que ele se vale do mesmo sequencialismo que é aplicado à HQ. Ainda que de forma ficcional, os quadrinhos têm a mesma função da fotografia – retratar. E aqui com uma impossibilidade para a fotografia, a de resgatar a abstração pessoal do artista. Cada quadro é uma pequena obra de arte que não depende de uma existência concreta para acontecer. A banda desenhada rouba a retratividade da Fotografia e a devolve, de certa forma, à Pintura, por ter com ela mais elementos em comum: a técnica do traço, os jogos de cores, a liberdade abstrata.

Os aficionados pela Fotografia hão de pensar: “Quanta merda junta”. Os dos Quadrinhos: “Onde esse cara enxergou isso aí?”. Os da Pintura: “Que pobreza comparar pintura com uns desenhinhos”. Paciência, é impossível agradar todo mundo, e, às vezes, até mesmo a poucos. Mas tive essas impressões e queria manifestá-las, e não hierarquizar nenhuma das três. A Fotografia não nasce de um objetivo estético e, no final das contas, dá à Pintura o benefício de deixar de ser um ofício para virar arte pura, e mesmo ela pode e deve ser desvinculada do pragmatismo.

Mas ainda há mais um ponto que eu gostaria de desenvolver, e por isso peço a paciência de todos. Quando consideramos o gênero quadrinhos como um todo, não estamos falando apenas da banda desenhada, as histórias em tiras. Há também as charges, que levam esse nome por conta da carga satírica que lhe caracterizam, e os cartuns, onde há reforço nas caricaturas e muita paródia. Bem, bem... Nesse sentido, não podemos incluir o grafite nessa festa? Comparado a estes dois últimos, seus maiores diferenciais estão no grande formato e no critério subjetivo, mais descolado do real palpável. A mídia é outra, enorme e exposta, mas traslada inúmeros elementos expressivos das charges e dos cartuns, como a aproximação ao Expressionismo, o sarcasmo intenso, o universo urbano, a rapidez na interação com o apreciador, a síntese da mensagem, a menor importância da palavra escrita comparada com a imagem.


O grafite vai no comboio da arte de rua, que tem como principal representante a cultura hip-hop, sendo um dos seus pilares (ao lado do rap, do break e dos MC’s). Quando observado friamente, percebemos o quanto o grafite é embebido politicamente e o quanto causa de espanto para uns, de admiração para outros e de indignação para muitos. Isso acontece porque é uma modalidade que escancara, em espaço público, verdades que não gostamos de ver. Os muros são o lugar de fala possível para toda uma geração que tem talento e não tem espaço expressivo possível.


E é um lugar imenso, impossível de esconder. Lembro quando, já há muito tempo, eu acompanhava da janela do ônibus 314V (Almeida Jr-Vila Ema) os estranhos personagens amarelos que começavam a surgir a partir da entrada do Cambuci. Em um deles, um nordestino mirrado de chapéu típico desfalece no colo de uma mulher em prantos. Em outro, uma gorda disforme se adorna para disfarçar sua feiúra. Era o embrião da arte dos irmãos Pandolfo, conhecidos como OsGemeos, os principais nomes do país. Se levarmos em conta que a escola paulistana de grafite é uma das mais respeitadas do mundo, teremos uma dimensão mais exata do que ambos representam, ao lado de outros ícones como Nina, Nunca, Mari, Vitché, Rodrigo Branco, Kobra, Finok, Zezão e tantos outros.


Esse “enfiar de dedo na cara” da sociedade faz com que seja frequente vermos grafite e pichação serem jogados na mesma vala comum da marginalidade. Há dois pontos a serem observados:

1. Vemos governantes que afirmam privilegiar o trabalho dos grafiteiros. O que deve ser eliminado é o vandalismo das pichações. Porém, sempre que se lança um programa de eliminação destas últimas (Cidade Limpa, Cidade Linda), acaba sobrando para os grafites também. A justificativa é sempre a mesma: os agentes não têm tirocínio necessário para diferenciar ambos. É uma desculpa tão cambaia que se torna inaceitável. Se os agentes não têm preparo, que sejam preparados ANTES de mandá-los às ruas, ora pois. E é impossível que um agente, por mais energúmeno que seja, não tenha nenhuma dúvida em apagar um painel de quase 700 m2, como na medíocre foto que tirei do carro e como é mostrado no ótimo documentário Cidade Cinza, indicado abaixo;


2. Até que ponto a pichação não é, também ela, uma manifestação de quem não tem lugar de fala no espaço público, ainda mais por não ter o mesmo talento dos grafiteiros? Não será sua coragem irresponsável um grito para ser ouvido, ao menos? Não sou um cara que gostaria de abrir minha porta e ver as paredes do meu prédio todas rabiscadas (já são), acho efetivamente atos de vandalismo a sujeira aprontada especialmente em monumentos e patrimônio histórico, porque aqui se confunde protesto e significação do equipamento, e por isso mesmo não estou aqui defendendo os pichadores. Mas entendo que, embora a maioria deles só esteja atrás de “ibope”, é preciso nos perguntar porque essa utilização destrutiva do espaço público. Pensem no seguinte: a primeira pessoa que instalou uma grade na janela ao invés de tentar entender o porquê de ter sido vítima de roubo ajudou a decretar nosso modus vivendi atual. Trancou-se em si e não olhou para o seu redor, não buscou as causas da violência, e apenas se esconder dela. Se o tivesse feito, não teria restringido a própria liberdade de deitar os cotovelos na janela. Deveria ter lutado pelo direito de manter suas janelas sem grades, isso sim, denunciando a falta de eficiência das políticas públicas de segurança e de inclusão da época. É bom não repetir o mesmo erro.


Recomendações:

O livro abaixo é a coleção completa de uma história lançada originalmente em capítulos, que dá uma boa dimensão do poder dos quadrinhos em pinçar fragmentos da História e de aplicar emblemas para gravarmos em nossas cabeças. Trata-se de um ótimo exemplo dos quadrinhos a serviço do público adulto, contando em uma narrativa recheada de simbolismo como o holocausto judeu influenciou até mesmo na vida íntima das pessoas que o vivenciaram.

SPIEGELMAN, Art. Maus. A História de um sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

O documentário Cidade Cinza está (ainda) disponível no Netflix, e ganha o jogo ao mostrar, mais do que a indignação dos grafiteiros que veem seu trabalho perdido e sua reconstrução, o total despreparo de quem é encarregado da tarefa de distinguir arte e garatuja.

MESQUITA, Marcelo; VALIENGO, Guilherme. Cidade Cinza. Filme. Brasil, 2013. Cor. 80 min.

* Leiam aqui minha posição sobre essa guerra imbecil.

** Podem me chamar de ignorante ou quadrado o quanto quiserem, mas discordo veementemente desta posição. Gosto da abstração, mas não aquela em que a principal característica é ser incompreensível. Sinceramente, penso que são casos em que o crítico é mais criativo que o próprio artista. Há muitos anos atrás, fui a uma exposição no Centro Cultural São Paulo chamada “14/30”, onde uma artista cujo nome esqueci pintou dezessete telas de grande porte, contendo bolas, bolas pretas de nanquim. Não eram bolas perfeitas, pareciam aqueles círculos que tentamos desenhar sem compasso. O primeiro quadro tinha 14 bolas, o segundo tinha 15, o terceiro, 16; e assim sucessivamente, até chegar ao último, com 30 bolas. A coisa era bem pouco diferente do seguinte:


Não entendi nada, mas tive uma salvaguarda: um folder na saída da exposição, onde um entendedor esmiuçava o trabalho de cima a baixo, falando sobre minimalismo, vacuidade, descontinuidade e reelaboração, causando tensão no apreciador, a artista se posicionando como partícipe da estupefação de sua audiência e esta sentindo a progressiva ausência que tem o efeito de catalisá-la à própria obra. Ou seja, o crítico ligou o gerador de lero-lero com tal magistralidade que, se não conseguiu dar sentido à obra, ao menos executou ele mesmo a obra-prima da tentativa de tirar um produto impenetrável de seu hermetismo. A peça estava tão bem feita que resolvi guardá-la, e o fiz tão bem que não consigo mais encontrá-la. Quando eu trombar com ela por uma destas pastas da vida, prometo escaneá-la e anexá-la aqui.

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