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quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Sobre nomes de ruas e perda de identidade

Olá!

Nem só de grandes problemas vive o homem, mas de toda frivolidade que passa diante de si. Pensar nos grandes eventos universais nasce da observação das pequenas coisas, e a observação detalhada exigida pelo pensar filosófico se origina desta prática. Nenhum sistema nasce completo nas cabeças dos gênios. Eles vão sendo depurados através dos detalhes, dos pequenos acontecimentos, das mínimas idéias. Pensar criticamente é pensar em miudezas, na “afiação” da percepção, em levar a sério coisas que pareceriam, em um primeiro olhar, insignificantes. Para fazê-lo, é preciso seguir a regra desejada pelo Professor Paulo Ghiraldelli – vamos desbanalizar o banal.


Farei isso, então. Uma questão bastante pequena, que passa em nosso dia-a-dia de maneira bastante despercebida, diz respeito à nomenclatura das ruas de nossa cidade. Sabemos que o imaginário popular tende a atribuir nomes que elucidam, ao menos parcialmente, a história dos lugares em que vivemos. Esse fenômeno pode ser percebido em nossas conversas e indicações, ao tentar atribuir um referencial aos locais de nosso convívio. 

Quando eu era pequeno, por exemplo, morei em um logradouro conhecido como “rua do Toco”. Pincelando a memória dos mais antigos, descobri que a inusitada denominação se dava por conta de um imenso toco de uma igualmente imensa árvore, sei lá qual, abatida por ocasião do delineamento dos lotes, que tomava a rua de fora a fora, o que dificultava sua travessia, até mesmo a cavalo. Ainda hoje, estas pessoas relembram-se do fato e do toco, e, nesse sentido, o nome da rua acabava por contar uma parte significativa de seu passado, com uma referência bastante forte. Hoje, o nome oficial da rua é Antônio Gomes, que descobri se tratar do antigo proprietário daquelas glebas. Ainda assim há uma parte da história a se desvendar através deste nome, mas temos de convir que de maneira muito mais difusa; menos particularizada, portanto. As novas gerações não sabem da história do toco, e com isso parte da memória da coletividade se vai.

Vejam só outro exemplo: o conhecido Largo do Paissandu era denominado “Tanque do Zuninga”. Daí, logo de cara podemos obter duas informações: que lá havia um tanque utilizado para que os animais dos tropeiros bebessem água e para lavagem do barro que imundiciava as pessoas, e que lá havia algo chamado Zuninga (a designação não permite uma interpretação definitiva: pode tanto se referir a uma pessoa com esse apelido como ao significado da palavra – uma das alcunhas para a popular cachaça). E o nome atual, o que nos diz? Qual a importância que uma batalha da Guerra do Paraguai possui em um local a milhares de quilômetros dali? Certo, este evento foi altamente significativo, teve grande importância histórica para o país inteiro, mas, no miúdo, a história mais direta da comunidade foi simplesmente esquecida. E, dessa forma, a trajetória direta das pessoas, a referência vivencial é deixada para trás, o registro fica sobejamente mais pobre.

Esses nomes nascidos no seio da comunidade a credencia como partícipe da coletividade maior: a cidade. E como o faz?

No post em que comentei sobre o Dia das Mães, já procurei pensar sobre a importância da transmissão da experiência, e do quanto isso é gratificante, demonstrando que a vida possui uma história e um sentido. A única diferença é que o alcance está no conjunto abstrato comunitário: é como se fosse um organismo composto que fizesse o papel da mãe que conta sua história aos filhos, orgulha-se dela e a transmite também aos netos, sobrinhos e filhos dos outros.

Como eu disse, é uma questão menor, mas disso podemos extrair perguntas e lançar argumentos, pensando no porquê de nosso patrimônio histórico ter sido tão vilipendiado com o correr dos tempos: não há incentivo para a manutenção de nossa memória.

As coisas funcionam assim em nossa cidade, infelizmente. São cortes abruptos, sem defesa nem reação. Eu não gostaria que as páginas da minha vida fossem arrancadas desta forma, mas são. Parece pouca coisa. Não é. Suprimir a história é ocultá-la, como se nos causasse vergonha.

Gosto das ruas com nomes como da Várzea, do Curtume, do Seminário, Orfanato (vejam que lindo: o orfanato ainda existe, escondido entre um banco e uma agência de automóveis). O costume popular ainda tenta fazer com que os registros não se apaguem, mas são casos raros - o da Igreja de Santa Ifigênia, que não é de Santa Ifigênia, mas de Nossa Senhora da Conceição, é um exemplo clássico. O poder público, da maneira que age, vem como um autêntico invasor, interpondo em nosso ambiente uma denominação externa, de personalidades totalmente estranhas ao local, e opomos bem pouca resistência a ele, provavelmente por se tratar de aparentes bugigangas.

O que faremos, então? Vamos ocultar no futuro que tivemos um país de população pobre, onde as crianças morriam subnutridas em meio à maior reserva ecológica do planeta? Onde ficará armazenada a dicotomia entre lembrança e resistência preconizada por Adorno? Nesse sentido, a adulteração pura e simples de algo tão banal, como o nome de uma rua, é alienante; principalmente porque tal mecanismo age inicialmente mesmo nessas pequenas amenidades, e extrapolam os limites de nosso senso crítico. Quando vemos, já não sabemos mais de onde viemos e para onde vamos, e muito menos porque sofremos tanto.

Ufa! Bem, espero que com esse pequeno texto eu tenha conseguido comprovar que coisas aparentemente sem importância dizem sobre nós muito mais do que poderíamos supor, se não utilizarmos nosso olhar crítico e devidamente aguçado.

Recomendação de navegação:

Já há algum tempo, a prefeitura de São Paulo disponibilizou um site contendo a origem dos nomes das ruas da cidade. O conteúdo é riquíssimo, e permite que se interaja para o seu aprimoramento. Vale a visita. Se você é de São Paulo, procure descobrir quem foi o patrono de sua rua ou a origem do nome utilizado.

http://www.dicionarioderuas.prefeitura.sp.gov.br

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