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terça-feira, 31 de março de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 9º tomo - A inversão de causa e efeito (direção inversa)

Olá!
Vai uma diabetezinha aí? Posso assegurar a vocês que não é uma boa ideia aceitar. Quietinha, quietinha, ela vai se infiltrando em todas as instâncias da sua vida. É preciso aposentar os doces, esquecer-se das garapas, tomar cuidado com as massas, evitar cerveja - no que sou peça de resistência... E, com o tempo, dá-lhe antiglicêmicos, substitutos da insulina, inibidores do não sei o quê, antagonistas daquilo e do outro. Tudo isso para evitar a hipertensão, a aterosclerose, a cegueira e a impotência – espero ter saído de campo antes dessas últimas duas.

Diabetes... Não me faltava mais nada

Descobri minha diabete de forma inesperada. Minha mãe, bem antes de se descobrir cancerosa, teve uma bela crise de dor de cabeça e tontura. Tomou a habitual Dipirona, mas não adiantou. Como só piorasse, apelou para o pronto-socorro, onde foi feito um rápido exame com um glicosímetro, aquele aparelhinho que serve para colocar uma gota de sangue extraída da ponta do dedo. Através de uma reação química entre o sangue e o metal da tira de medida, é possível mensurar a quantidade de açúcar no sangue. Com taxa muito alta na ocasião, a ora defunta mãe foi encaminhada ao laboratório para melhores exames. Caixa: estava com diabetes. Como sói acontecer nesses momentos, adquiriu um destes aparelhinhos para deixar em casa. Aí eu resolvi medir minha glicemia. 135 (o máximo é 100). No dia seguinte, respeitando corretamente os prazos de jejum, deu 127. Engoli em seco e marquei uma consulta. Tudo devidamente confirmado. Merda...

Quando uma pessoa está sob suspeita de ser diabética, geralmente os endocrinologistas não se fiam unicamente na glicemia em jejum, exame este de indício, não de confirmação de diagnóstico. Para fechar o quadro, lançam mão de outros exames, como a glicemia pós-prandial, os níveis de frutosamina, a hemoglobina glicada e a polêmica curva glicêmica. Polêmica por quê?

É que o exame consiste no seguinte: estando em jejum por 12 horas, é feita uma primeira extração de sangue do paciente. Logo em seguida, é oferecida ao contribuinte uma solução de glicose doce tão doce mais doce que o doce de batata-doce – uma autêntica bomba calórica. Depois de duas horas, é colhida nova amostra de sangue. A critério do médico, podem ser extraídas amostras após 3 e 4 horas, mas não é o padrão. Essas amostras permitem desenhar uma curva de resposta do organismo ao excesso de glicose, o que é muito mais preciso do que uma mera amostragem em jejum.

Não foi uma, nem duas, nem três pessoas que me disseram isso, mas várias. Muita gente acha que “pegou” diabetes por causa do exame de curva glicêmica. Não e não e não.

Não é o exame de curva glicêmica que causa a diabetes, é a diabetes que faz a curva glicêmica ser alta. Essa crença se dá por conta do velho pensamento enraizado no senso comum de que excesso de consumo de açúcares causa a malfadada doença. Para isso ser verdade, é preciso que tais excessos sejam habituais, e não somente no evento de um exame. Ou seja, o excesso precisa fazer parte da dieta da pessoa, e também é necessário que haja outros problemas de ordem metabólica. O senso comum relaciona diabetes com doce, mas açúcar e carboidratos são praticamente sinônimos. Assim, o diabético precisa ter cuidado com farinhas, com grãos, com tubérculos, etc.

Mas é só do senso comum que nascem estas inversões? Não, absolutamente. A Ciência também, mesmo que apoiada em evidências, pode acreditar em uma tese equivocada, até que a mesma seja falseada (do que já falei aqui).

Vou dar um exemplo bem recente de como algo que acreditamos piamente ser uma causa, na verdade é um efeito (ou pode ser, pelo menos). Várias pesquisas na área médica fizeram perceber que as floras intestinais de obesos têm significativas diferenças em relação às pessoas de peso normal. A correlação era quase óbvia: alimentação diferente produz resíduos diferentes, e cada composição de flora é adaptada para uma ou outra. Mais ainda: as alterações físicas decorrentes da obesidade levariam a uma produção de enzimas e hormônios que alimentariam diferentes tipos de bactérias. Portanto, não seriam só os diferentes hábitos alimentares a causa de colônias próprias, mas também derivações do próprio organismo.

O diabo é que tinha algo que não se encaixava nessa regra. Há obesos que possuem a mesma dieta equilibrada dos magros, que não são diabéticos, hipertensos ou congêneres, e ainda assim suas floras intestinais permanecem as mesmas, ou seja, as floras típicas dos gordos. Por que será isso?

Pesquisadores da Unicamp, capitaneados pelo professor Mario José Adballa Saad, tem conduzido uma pesquisa que busca solucionar este problema, através de uma insólita (e um tanto psicologicamente nojenta) técnica conhecida como transplante de fezes!!! Tá bom, o nome correto é transferência de flora intestinal, mas já sabe qual vai pegar, né?

O procedimento consiste em obter flora convencional de doadores magros e injetá-la nas tripas devidamente purgadas do gordo-cobaia, em uma quantidade muito superior à anteriormente residente, de forma que as novas bactérias se apropriem do ambiente e eliminem quem estava lá.

Bom, qual é o objetivo da transferência de escatologias? É verificar se não tínhamos uma inversão entre causa e efeito. Acredita-se que é a obesidade que ocasiona aquele tipo específico de colônia bacteriana, mas o que se busca aqui é propor se não são, por ventura, as bactérias que causam a obesidade e suas consequências. E cinquina! A maioria dos transplantes foi bem sucedida em ratos, e os gordinhos voluntários têm se tornado mais lépidos e faceiros, mais álacres e pimpões, mais magros que agora estão.

A Ciência é assim mesmo, move-se para lá e para cá, às vezes em rumos inconsuetos, mas (jocosamente a partir de agora) costuma tirar ouro de onde só existe m...! Já pensou? “Para um corpinho de modelo, cápsulas de m... do Dr. Abdalla! À venda nas melhores drogarias”.

Bom, já brinquei, com pedido de perdão incluso. Enquanto na Ciência as inversões de causa e efeito são estudadas para obter explicações, na retórica elas são utilizadas para criar confusões. É uma falácia formal, em que, geralmente, dois eventos concorrentes são tomados um como a causa do outro, quando o que ocorre é exatamente o contrário. Os componentes do raciocínio estão presentes e corretos, mas colocados em posição invertida.

Como pudemos ver acima, há inversões de causa e efeito que não são falaciosas no sentido lato do termo, mas há exemplos em que o erro está no raciocínio em si, não na falta de dados ou experimentos disponíveis. Vamos ao exemplo, naturalmente.

Escuto falar muito que as gerações atuais descuidam com facilidade da construção do seu saber. Se pergunto por que isso ocorre, vem a resposta: É porque são indolentes. E, com ela, a sentença quase axiomática: “É o aluno que faz a escola”. Paremos e pensemos.

Que tipo de escola oferecemos às nossas crianças? É uma escola atrativa, que trata o conhecimento com a nobreza que lhe é devida, ou é um espaço do enjoo, do enfado, onde aprendemos (?) coisas que nunca utilizaremos na vida? No primeiro caso, provavelmente teremos crianças estimuladas a aprender cada vez mais, e no segundo, o único momento agradável será o de ir embora (ou o intervalo, vá lá que seja). A criança, quando vai à escola pelas primeiras vezes, é, na maioria dos casos, uma tabula rasa. Não no sentido do conhecimento, que pode ser provido por outras fontes, mas no relacionamento interpessoal. É na escola, muito provavelmente, que a criança terá seus primeiros contatos com volumes maiores do que a do seu núcleo familiar em uma frequência quase diária. Ou seja, a escola é não só o local onde o aluno receberá conhecimento sistematizado, mas também é sua primeira introdução real na sociedade mais ampla. Não vou me alongar muito, por que já falei sobre o assunto, mas a escola dá forma ao aluno. É a escola que faz o aluno, e não o contrário. A sociedade constitui a escola de determinada maneira, e esta maneira é transmitida ao seu corpo discente, modificando-o. Essa história de que o aluno faz a escola é uma quase mentira. É bem verdade que, por exemplo, de fraquíssimas faculdades possam sair excelentes profissionais, mas percebam como isso é individual e não modifica a escola. É mérito próprio: o cara que viu a insuficiência do que lhe é ofertado e corre atrás de algo melhor por suas próprias pernas (mérito não é meritocracia, sobre isso podemos falar melhor em outro momento). Mas não é o que ocorre na regra: escolas ruins produzem profissionais ruins, bastando pensar no que poderiam fazer essas pérolas raras se tivessem ao seu dispor boas instituições de ensino.

Sacaram? O que é motivado se torna motivador, deturpando a relação entre causa e efeito. No exemplo acima, imputamos uma responsabilidade a quem não é responsável, e notem como isso é perigoso, porque remove a responsabilidade de quem de fato deveria tê-la: a escola construída pela sociedade, incluindo todos os seus componentes: os pais, os professores, os dirigentes, os governantes. Quando dizemos que é o aluno que faz a escola, livramos a cara de todos os demais.

Só para fechar, inversões de causa e efeito são utilizadas profusamente em arte, desta vez conscientemente. Algo como “o canto das cigarras vem trazendo o verão”. Vejam que a questão aqui é uma direção inversa nas sensações. É claro que é o verão que faz com que as cigarras cantem, mas sua chegada é menos perceptível que o alegre zunido dos fabulescos insetos. Isso faz com que o artista a priorize, mas, como estamos no campo da Estética, tal inversão é compreensível. 

Recomendação de leitura:

Desta vez, vou dar uma recomendação diferente. Trata-se do artigo que mencionei neste texto. Desculpem-me, mas está em inglês, que é a língua internacional da Ciência. Estou elaborando um post em que falo do mecanismo de divulgação científica através de artigos publicados em revistas, algo crucial e pouco conhecido. Por enquanto, é importante verificar o quanto há de rigor na investigação científica, para compreender o quanto esta deve ser levada a sério.

SAAD, Mario J. A. et al. Gut microbiota is a key modulator of insulin resistance in TLR 2 Knockout Mice. Disponível em: http://journals.plos.org/plosbiology/article?id=10.1371/journal.pbio.1001212. Acesso em: 20.03.2015.

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