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quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - 6º sopro: São Lourenço e as armadilhas do desencantamento do mundo

Olá!

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Ainda em recuperação das emoções e desventuras no antiquário em Cambuquira, a articulação para os rumos a serem tomados no dia seguinte apontaram minha barca para a maior cidade da região, que é o polo por onde toda a redondeza orbita, já que é significativamente mais populosa e, por efeito, mais equipada de comércio e serviços. Trata-se de São Lourenço.


O nome remete ao padroeiro da cidade, dada a sua data de criação, que coincide com a suposta ocasião de seu martírio. Conta-se que, a exemplo de tantos cristãos dos primeiros séculos, o diácono Lourenço não quis renegar sua fé, o que, à época, representava uma sentença de morte. O ponto notável é que, embora tendo sido morto queimado, novamente como outros tantos, não foi exposto diretamente às chamas, mas colocado em uma espécie de grelha. Morbidamente: ao invés de cristão na brasa, temos aqui cristão na chapa. Minha liberdade na brincadeira tem eco no próprio relato de sua paixão, onde se diz que o mesmo Lourenço, ao já se encontrar bastante queimado de um lado, sugeriu aos carrascos que o virassem do outro, para assar por igual. Quem disse que o bom humor não pode estar presente até nos momentos difíceis? Sua basílica é essa aí:


Ainda no campo da religiosidade, tenho mais duas observações a fazer. Na primeira, temos um curioso templo, de uma entidade da qual eu nunca havia ouvido falar: a Sociedade Brasileira de Eubiose. É uma instituição daquelas que costumamos chamar de esotéricas, apesar da flagrante generalização. Eubiose significa algo como “bom modo de viver”, e junta ciência, filosofia e religião. À parte disso tudo, é um lugar bem belo, com um jeitão meio grego, eu achei.


A outra diz respeito a uma singela capela dedicada a Nhá Chica, nas cercanias do perímetro urbano. Há inúmeras representações de santos em estilo naïf, tornando a construção uma coisa única, formando uma coleção de mosaicos de cacos de ladrilhos. A princípio, eu tinha entendido que a capela tinha sido erigida pela própria beata, mas depois vi que não. Bem, no momento certo falarei mais sobre ela.


São Lourenço extravasa muito da questão da religiosidade. Um dos mais admiráveis equipamentos culturais de lá é o sistema ferroviário, que preserva bem conservados uma estação inaugurada em 1884...


... e uma linha operante de caráter turístico, ligando São Lourenço ao município de Soledade de Minas, com preço assombroso (o que não foi exatamente um problema, dada sua operação unicamente em fins de semana). É tudo à moda antiga, com locomotivas a vapor. Esta da foto já foi aposentada, sendo apresentada apenas como objeto museológico.


Ainda nas vizinhanças da estação, fica situado o Educandário São Lourenço, uma escola ainda ativa que funciona em prédio histórico, gerida pela Igreja Católica, dando uniformidade ao conjunto arquitetônico da região.


Históricas também são as árvores da praça. Segundo se diz, são as mesmas que a florestaram na ocasião da construção da gare. As raízes de concreto, que se estendem em forma de mão na direção delas representam a proteção à natureza e à história, e foram idealizadas pelos alunos do educandário retro.


Só que São Lourenço tem um elemento turístico ainda mais característico – o gigantesco Parque de Águas, que abraça mais de 400 mil metros quadrados de paisagismo, área verde, lagoas e fontes, além de outras veredas, como o caminho do bambuzal.


Um dos principais equipamentos do parque, sem dúvida, é o balneário, onde a água é utilizada para práticas estéticas e medicinais. O prédio é imponente, regendo toda a área do lago.


O lago, aliás, não só é morada de uma montanha de garças e patos, mas é ponto de lazer, porque é navegável. Há diversidade – pedalinhos, caiaques, miniescuna e botes...


... como o que eu e a patroa fretamos por uma hora. Não sou atleta, longe disso, e é meio confuso nas primeiras remadas, mas depois pega-se o jeito e dá para fazer altos rolês pelas águas, sempre bem acompanhados.


Também aqui dentro há lugar para as manifestações religiosas. Além de uma imagem tida como milagrosa de Nossa Senhora dos Remédios, cheia de ex-votos e agradecimentos, o parque é sede da ermida do Bom Jesus do Monte, onde moram religiosos, e por isso seu acesso é restrito. Mas há um elevatório onde os fiéis podes dirigir suas preces ao céu e ter uma visão um pouco mais ampla daquele setor.


Dentro do parque, há alguns animais que vivem soltos, como vários passarinhos, borboletas e alguns macaquinhos sauá, com sua longa cauda preênsil. Alguns deles são expeditos o bastante para se aproximar dos caminhos artificiais e ganhar suas frutas.


O centro das atenções, naturalmente, está nas fontes. O parque tem nove delas, entre gasosas, sulfurosas, magnesianas e etc. Todas elas ficam acomodadas em construções semelhantes a quiosques, e são canalizadas por bicas, de acordo com suas propriedades medicinais. Ficam espalhadas por toda parte, para dar uma melhor dinâmica na caminhada.


Há fartas descrições das propriedades de cada uma delas, em painéis explicativos, o que é muito legal. Há inclusive avisos para aquelas que precisam ser consumidas com parcimônia. A fonte ferruginosa, por exemplo, chega a ter a água levemente turva, o que indica grande quantidade de elementos em suspensão. É bom não ir com muita sede à fonte (ai!).


Em um dos quiosques, há uma curiosidade: um bico de gás, que muitas pessoas procuram alegando benesses respiratórias. Algumas reclamam se sentir mal ao respirar, outras dizem sentir uma renovação do fluxo de energia. Eu e a patroa demos nossa cafungada, e somos unânimes: ainda que por somatização (vide), dá um levíssimo barato.


Todas as cabanas que guarnecem as fontes são de bela feitura. Pudera. Há uma Nestlé por trás da sua manutenção, sem crítica. Esta aqui é uma das mais visitadas:


Há também um “lado de lá” do parque. Acessível por intermédio de um túnel, um novo quarteirão está sendo formatado para expandir a obra. Por ora, há um jardim japonês já completo...


... e uma fonte sulfurosa, cuja água, por motivos óbvios, tem um cheirinho meio demoníaco. Esta é a parte do parque II que ainda está sofrendo um processo de ajuste na paisagem. De fato, a fonte está apenas funcional, ao contrário do que acontece na gleba principal.


Falando em projeto paisagístico, este parque é mais complexo do que o de Lambari, minimalista, e o de Cambuquira, bucólico. Como o espaço permite, o pessoal que cuidou desse aspecto teve mais liberdade e pode viajar mais na maionese. Foram buscar na mitologia grega as figuras das ninfas, divindades menores, todas elas femininas e que representam os espíritos da natureza.


As ninfas não representam uma classe uniforme. Há várias espécies delas, sempre de forma etérea, como se constituíssem a alma do ambiente em que habitam. Há ninfas das selvas, das montanhas, dos vales, dos ventos e de tudo o que se pensar em termos de ambiente. Aquelas que povoam os mundos aquáticos, como as que temos aqui, são chamadas de náiades.


Também as náiades não são um bloco fechado. Como os ambientes aquáticos são bastante diversos entre si, como oceanos, rios, lagos e etc., existem náiades específicas das fontes, que lhes emprestam os dons de cura e saciedade: as crinéias.


As crinéias mais famosas foram Aganipe, filha do deus-rio Ternesso, mãe de Dânae e habitante da fonte de mesmo nome, no sopé do monte Hélicon; e Salmácis, caso único em que uma divindade feminina tenta violentar um outro deus, Hermafrodito, o filho de Hermes e Afrodite. São representações da beleza e da perfeita integração entre homem e natureza, como as demais ninfas.


Como são interessantes as construções míticas, não? Com poesia e arte, todos os povos sempre buscaram dar explicação não só aos seus sentimentos e aflições, seus destinos e futuros, mas mesmo aos pequenos aspectos práticos de suas vidas. Nesta minha viagem a São Lourenço, enquanto caçava alguma coisa dietética nas abundantes prateleiras de abundantes doces de abundante açúcar, encontrei um pequeno livro (indicado nas recomendações) que conta o mito tupi da criação da Serra da Mantiqueira. Uma história lindíssima, lírica, e que satisfez por muito tempo o imaginário dos povos que o contavam. Não tendo à sua disposição um aporte científico, justificavam a existência de seu meio através de um sistema intrincado de contos e lendas. Em síntese: o Sol vagava pelo mundo em sua eterna alternância com a Lua, quando avistou em um pequeno lugarejo uma mulher linda, pela qual se apaixonou. Diante de tanta beleza, o Sol deixou de se pôr, para contemplar sua paixão, secando os rios e gretando a terra. A Lua, revoltada, foi apelar a Tupã, o deus supremo, que condenou a jovem que se atreveu a apaixonar o Sol. Atirou-a ao fundo de um vale, ao redor do qual havia uma imensa cadeia de montanhas, e a escondeu na escuridão que se formou. O Sol, todas as tardes, avermelhava-se de tristeza e ia se afundar no mar, por detrás do horizonte. Vendo a sua tristeza, também a Lua se comoveu, chorando as estrelas que povoam o céu, enquanto a índia de nome perdido no tempo chorava todas as noites por não mais poder ver o seu amado. Daí, o nome Mantiqueira, a "serra que chora" em língua tupi. Vai dizer que não é bonito?

Mas o mundo moderno, com exceção das religiões fortemente institucionalizadas, abandonou a narrativa mítica, apesar de sua beleza intrínseca. Por que?

Penso que tinha razão nosso caro Nietzsche quando afirmou que o homem perdeu a capacidade de suplantar a si mesmo ao abandonar a formação de uma mitologia nos moldes da tragédia grega (revivida pela pobre Lusa, como descrevi neste texto). Mas o bigodão acha que o sacrifício do pensamento estético se deu por força de uma mudança de paradigma epistemológico, ao se adotar o racionalismo extremo proposto por Sócrates. Mas há mais de um caminho para analisar a questão. Vou seguir o itinerário sociológico de Max Weber para tentar fazer uma outra compreensão do abandono dos mitos.

Weber percebe como a religião morde seu próprio rabo quando surge o novo paradigma proposto pelo Protestantismo. Inicialmente, o Cristianismo baseia-se fortemente na ideia de que o mundo terreno é uma instância passageira, de onde os fiéis deveriam buscar simplesmente ferramentas que pudessem garantir suas salvações: boas ações, boas palavras e bons pensamentos. Este mundo não é o Reino de Deus prometido pelos profetas, em suma. É um terreno de castigo, longínquo do paraíso edênico. Ele tem mais a atrapalhar do que a ajudar, com suas tentações e oferecimentos às vaidades humanas. Além disso, o mundo é um lugar de provação, onde o trabalho é uma atividade vista como um castigo divino: comerás teu pão com o suor do teu rosto. Não à toa, a palavra trabalho tem origem no latim tripalium, três paus, que eram um instrumento de tortura.

Com o advento da Reforma Protestante, há uma mudança na filosofia salvífica e, de embalo, no modus vivendi do cristão. Weber nota que a mudança mais radical se dá através não dos ditames de Lutero, primeiro reformador bem-sucedido, mas da interpretação de Calvino.

Ao contrário do que pensava a corrente dominante do Cristianismo, Calvino entende que a salvação não se dá pelo conjunto da obra de um ser humano, mas da livre vontade de Deus. A tese é a seguinte: Deus é um ser superior a toda a humanidade, que lhe é totalmente subordinada. É impensável que a criatura possa prescrever condições ao seu criador. Sendo assim, Deus admite ao seu lado quem ele bem entender, e não há nada que o homem possa fazer para mudar isso. É a doutrina da predestinação: o homem já tem seu destino escrito e definido.

Mas isso traz uma dificuldade aparentemente insanável. Se já se está marcado por um destino imutável, dependente exclusivamente da vontade divina, como fazer para se ter noção de quem pode ou não ser salvo? Calvino diz que Deus dá “dicas” de suas escolhas – o homem escolhido é próspero, ele tem recompensas já em sua vida terrena. Assim, se os negócios vão bem, se a terra é produtiva, se a freguesia cresce, se os bens se acumulam, isso é manifestação inequívoca da benesse divina. De cara, esse pensamento tira o aspecto pecaminoso que o Catolicismo atribuía ao lucro e à sua variante mais mesquinha, a usura. Sendo a prosperidade uma manifestação da vontade de Deus e o lucro sendo seu principal propulsor, nada há de errado nele.

Essa filosofia religiosa caiu como uma luva para o contemporâneo capitalismo que florescia. Devidamente escusado de seus pecados, os capitalistas encontravam o conforto antes inexistente para a prática de suas atividades, o que, inclusive, desmistificava a visão negativa que se dava ao trabalho.

Weber nota uma coisa interessante, derivada disso tudo: os católicos se preocupam com uma educação humanista, enquanto os protestantes dão maior importância à educação técnica, e uma das consequências aparentes é que os negócios vão todos caindo nas mãos destes últimos. Eles estão melhores acomodados com a posição individualizada da dicotomia protestantismo-capitalismo. Lembrem-se: sendo escolha única de Deus, a salvação se aplica a indivíduos, e não a grupos. A comunidade agora é menos importante do que o indivíduo, que passa a olhar muito mais a si mesmo. O individualismo passa a ser a doutrina subjacente tanto à religião quanto ao sistema econômico, com o trabalho como bandeira a ser carregada. Quase que por uma motivação psicológica, a propensão ao trabalho do protestante vira uma ética do dever laboral – o trabalho não só não é mais um castigo, como ele é uma obrigação, um espaço do qual Deus se utiliza para manifestar suas decisões.

E é aí que nasce o busílis. Ao preconizar um mundo já delineado, cuja única ação tem por propósito dar vazão àquilo que já está decidido, tem-se que praticamente apenas o trabalho é a oferta que se tem a fazer a Deus. Uma vida ascética não tem mais valor, um culto aos santos e a imitação de suas vidas não tem mais valor, incensos e velas não tem mais valor, narrativas míticas (a não ser aquela chancelada pelo seu livro sagrado) não tem mais valor. O mundo perde por completo seu aspecto mágico e passa a se pautar unicamente pela “racionalidade”. É o que Weber chama de desencantamento do mundo, que não tem o sentido de desilusão ou desapontamento que o termo parece dar, mas de exclusão de todo o misticismo.

Só que é exatamente aí que o parafuso quebra na próxima volta. Da mesma forma que o capitalismo encontra no calvinismo sua cara-metade religiosa, também este vai se constituindo em restante do aspecto místico a ser descartado. Em um mundo cada vez mais laico, e com os progressos científicos cada vez mais substituindo a necessidade de orações, e com o paradoxo dos prósperos de outras religiões, e com o malabarismo lógico para conciliar (sem sucesso) predestinação e livre arbítrio, o fato é que a ética do capitalismo baseado no calvinismo aproveita-lhe apenas o esqueleto, como se fosse um fóssil. E a cobra morde o próprio rabo. O desencantamento do mundo mostra ainda mais uma vez suas garras, sufocando o próprio movimento religioso que lhe deu origem.

E nesse meio tempo já se perdeu todo o lirismo das diferentes mitologias... O mundo desencantado de tudo seria o cúmulo da chatice, não fosse a arte, mas isso é tema para outro momento.

Recomendações de leitura:

Basilar na Sociologia, o livro abaixo representa o suprassumo da visão weberiana sobre a influência da Religião na vida da sociedade. Se o assunto interessar, não deixe de ler.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 2000.

Também referenciei o livrinho que encontrei em São Lourenço sobre o mito do surgimento da serra da Mantiqueira. É ótimo para crianças, porque é todo ilustrado pela própria autora, mas que serve muito bem para exemplificar a poética a que me refiro neste texto.

BAJGIELMAN, Selma. Lenda da Mantiqueira. São Lourenço: Novo Mundo, 2014.

2 comentários:

  1. Fico comovida por participar e ser citada em seu blog. Abraços
    Selma Bajgielman

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    1. É um prazer recebê-la aqui. Seu livro é muito lindo, fala de coisas interessantes... Seja sempre bem-vinda.

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