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Ainda em recuperação das emoções e desventuras no antiquário
em Cambuquira, a articulação para os rumos a serem tomados no dia
seguinte apontaram minha barca para a maior cidade da região, que é o polo por
onde toda a redondeza orbita, já que é significativamente mais populosa e, por
efeito, mais equipada de comércio e serviços. Trata-se de São Lourenço.
O nome remete ao padroeiro da cidade, dada a sua data de
criação, que coincide com a suposta ocasião de seu martírio. Conta-se que, a
exemplo de tantos cristãos dos primeiros séculos, o diácono Lourenço não quis
renegar sua fé, o que, à época, representava uma sentença de morte. O ponto
notável é que, embora tendo sido morto queimado, novamente como outros tantos,
não foi exposto diretamente às chamas, mas colocado em uma espécie de grelha.
Morbidamente: ao invés de cristão na brasa, temos aqui cristão na chapa. Minha
liberdade na brincadeira tem eco no próprio relato de sua paixão, onde se diz
que o mesmo Lourenço, ao já se encontrar bastante queimado de um lado, sugeriu
aos carrascos que o virassem do outro, para assar por igual. Quem disse que o
bom humor não pode estar presente até nos momentos difíceis? Sua basílica é
essa aí:
Ainda no campo da religiosidade, tenho mais duas observações
a fazer. Na primeira, temos um curioso templo, de uma entidade da qual eu nunca
havia ouvido falar: a Sociedade Brasileira de Eubiose. É uma instituição
daquelas que costumamos chamar de esotéricas, apesar da flagrante
generalização. Eubiose significa algo como “bom modo de viver”, e junta
ciência, filosofia e religião. À parte disso tudo, é um lugar bem belo, com um
jeitão meio grego, eu achei.
A outra diz respeito a uma singela capela dedicada a Nhá
Chica, nas cercanias do perímetro urbano. Há inúmeras representações de santos
em estilo naïf, tornando a construção
uma coisa única, formando uma coleção de mosaicos de cacos de ladrilhos. A
princípio, eu tinha entendido que a capela tinha sido erigida pela própria
beata, mas depois vi que não. Bem, no momento certo falarei mais sobre ela.
São Lourenço extravasa muito da questão da religiosidade. Um
dos mais admiráveis equipamentos culturais de lá é o sistema ferroviário, que
preserva bem conservados uma estação inaugurada em 1884...
... e uma linha operante de caráter turístico, ligando São
Lourenço ao município de Soledade de Minas, com preço assombroso (o que não foi
exatamente um problema, dada sua operação unicamente em fins de semana). É tudo
à moda antiga, com locomotivas a vapor. Esta da foto já foi aposentada, sendo
apresentada apenas como objeto museológico.
Ainda nas vizinhanças da estação, fica situado o Educandário
São Lourenço, uma escola ainda ativa que funciona em prédio histórico, gerida
pela Igreja Católica, dando uniformidade ao conjunto arquitetônico da região.
Históricas também são as árvores da praça. Segundo se diz,
são as mesmas que a florestaram na ocasião da construção da gare. As raízes de
concreto, que se estendem em forma de mão na direção delas representam a
proteção à natureza e à história, e foram idealizadas pelos alunos do
educandário retro.
Só que São Lourenço tem um elemento turístico ainda mais
característico – o gigantesco Parque de Águas, que abraça mais de 400 mil
metros quadrados de paisagismo, área verde, lagoas e fontes, além de outras
veredas, como o caminho do bambuzal.
Um dos principais equipamentos do parque, sem dúvida, é o
balneário, onde a água é utilizada para práticas estéticas e medicinais. O
prédio é imponente, regendo toda a área do lago.
O lago, aliás, não só é morada de uma montanha de garças e
patos, mas é ponto de lazer, porque é navegável. Há diversidade – pedalinhos,
caiaques, miniescuna e botes...
... como o que eu e a patroa fretamos por uma hora. Não sou
atleta, longe disso, e é meio confuso nas primeiras remadas, mas depois pega-se
o jeito e dá para fazer altos rolês pelas águas, sempre bem acompanhados.
Também aqui dentro há lugar para as manifestações
religiosas. Além de uma imagem tida como milagrosa de Nossa Senhora dos Remédios,
cheia de ex-votos e agradecimentos, o parque é sede da ermida do Bom Jesus do
Monte, onde moram religiosos, e por isso seu acesso é restrito. Mas há um
elevatório onde os fiéis podes dirigir suas preces ao céu e ter uma visão um
pouco mais ampla daquele setor.
Dentro do parque, há alguns animais que vivem soltos, como
vários passarinhos, borboletas e alguns macaquinhos sauá, com sua longa cauda
preênsil. Alguns deles são expeditos o bastante para se aproximar dos caminhos
artificiais e ganhar suas frutas.
O centro das atenções, naturalmente, está nas fontes. O
parque tem nove delas, entre gasosas, sulfurosas, magnesianas e etc. Todas elas
ficam acomodadas em construções semelhantes a quiosques, e são canalizadas por
bicas, de acordo com suas propriedades medicinais. Ficam espalhadas por toda
parte, para dar uma melhor dinâmica na caminhada.
Há fartas descrições das propriedades de cada uma delas, em
painéis explicativos, o que é muito legal. Há inclusive avisos para aquelas que
precisam ser consumidas com parcimônia. A fonte ferruginosa, por exemplo, chega
a ter a água levemente turva, o que indica grande quantidade de elementos em
suspensão. É bom não ir com muita sede à fonte (ai!).
Em um dos quiosques, há uma curiosidade: um bico de gás, que
muitas pessoas procuram alegando benesses respiratórias. Algumas reclamam se
sentir mal ao respirar, outras dizem sentir uma renovação do fluxo de energia.
Eu e a patroa demos nossa cafungada, e somos unânimes: ainda que por
somatização (vide), dá um levíssimo barato.
Todas as cabanas que guarnecem as fontes são de bela
feitura. Pudera. Há uma Nestlé por trás da sua manutenção, sem crítica. Esta
aqui é uma das mais visitadas:
Há também um “lado de lá” do parque. Acessível por
intermédio de um túnel, um novo quarteirão está sendo formatado para expandir a
obra. Por ora, há um jardim japonês já completo...
... e uma fonte sulfurosa, cuja água, por motivos óbvios,
tem um cheirinho meio demoníaco. Esta é a parte do parque II que ainda está
sofrendo um processo de ajuste na paisagem. De fato, a fonte está apenas
funcional, ao contrário do que acontece na gleba principal.
Falando em projeto paisagístico, este parque é mais complexo
do que o de Lambari, minimalista, e o de Cambuquira, bucólico.
Como o espaço permite, o pessoal que cuidou desse aspecto teve mais liberdade e
pode viajar mais na maionese. Foram buscar na mitologia grega as figuras das
ninfas, divindades menores, todas elas femininas e que representam os espíritos
da natureza.
As ninfas não representam uma classe uniforme. Há várias
espécies delas, sempre de forma etérea, como se constituíssem a alma do
ambiente em que habitam. Há ninfas das selvas, das montanhas, dos vales, dos
ventos e de tudo o que se pensar em termos de ambiente. Aquelas que povoam os
mundos aquáticos, como as que temos aqui, são chamadas de náiades.
Também as náiades não são um bloco fechado. Como os
ambientes aquáticos são bastante diversos entre si, como oceanos, rios, lagos e
etc., existem náiades específicas das fontes, que lhes emprestam os dons de
cura e saciedade: as crinéias.
As crinéias mais famosas foram Aganipe, filha do deus-rio
Ternesso, mãe de Dânae e habitante da fonte de mesmo nome, no sopé do monte
Hélicon; e Salmácis, caso único em que uma divindade feminina tenta violentar
um outro deus, Hermafrodito, o filho de Hermes e Afrodite. São representações
da beleza e da perfeita integração entre homem e natureza, como as demais
ninfas.
Como são interessantes as construções míticas, não? Com
poesia e arte, todos os povos sempre buscaram dar explicação não só aos seus
sentimentos e aflições, seus destinos e futuros, mas mesmo aos pequenos
aspectos práticos de suas vidas. Nesta minha viagem a São Lourenço, enquanto
caçava alguma coisa dietética nas abundantes prateleiras de abundantes doces de
abundante açúcar, encontrei um pequeno livro (indicado nas recomendações) que
conta o mito tupi da criação da Serra da Mantiqueira. Uma história lindíssima,
lírica, e que satisfez por muito tempo o imaginário dos povos que o contavam.
Não tendo à sua disposição um aporte científico, justificavam a existência de
seu meio através de um sistema intrincado de contos e lendas. Em síntese: o Sol
vagava pelo mundo em sua eterna alternância com a Lua, quando avistou em um
pequeno lugarejo uma mulher linda, pela qual se apaixonou. Diante de tanta
beleza, o Sol deixou de se pôr, para contemplar sua paixão, secando os rios e
gretando a terra. A Lua, revoltada, foi apelar a Tupã, o deus supremo, que
condenou a jovem que se atreveu a apaixonar o Sol. Atirou-a ao fundo de um vale,
ao redor do qual havia uma imensa cadeia de montanhas, e a escondeu na escuridão que
se formou. O Sol, todas as tardes, avermelhava-se de tristeza e ia se afundar no
mar, por detrás do horizonte. Vendo a sua tristeza, também a Lua se comoveu,
chorando as estrelas que povoam o céu, enquanto a índia de nome perdido no
tempo chorava todas as noites por não mais poder ver o seu amado. Daí, o nome
Mantiqueira, a "serra que chora" em língua tupi. Vai dizer que não é bonito?
Mas o mundo moderno, com exceção das religiões fortemente
institucionalizadas, abandonou a narrativa mítica, apesar de sua beleza intrínseca.
Por que?
Penso que tinha razão nosso caro Nietzsche quando afirmou
que o homem perdeu a capacidade de suplantar a si mesmo ao abandonar a formação
de uma mitologia nos moldes da tragédia grega (revivida pela pobre Lusa, como
descrevi neste texto). Mas o bigodão acha que o sacrifício do pensamento
estético se deu por força de uma mudança de paradigma epistemológico, ao se
adotar o racionalismo extremo proposto por Sócrates. Mas há mais de um caminho
para analisar a questão. Vou seguir o itinerário sociológico de Max Weber para
tentar fazer uma outra compreensão do abandono dos mitos.
Weber percebe como a religião morde seu próprio rabo quando
surge o novo paradigma proposto pelo Protestantismo. Inicialmente, o
Cristianismo baseia-se fortemente na ideia de que o mundo terreno é uma
instância passageira, de onde os fiéis deveriam buscar simplesmente ferramentas
que pudessem garantir suas salvações: boas ações, boas palavras e bons
pensamentos. Este mundo não é o Reino de Deus prometido pelos profetas, em
suma. É um terreno de castigo, longínquo do paraíso edênico. Ele tem mais a
atrapalhar do que a ajudar, com suas tentações e oferecimentos às vaidades
humanas. Além disso, o mundo é um lugar de provação, onde o trabalho é uma
atividade vista como um castigo divino: comerás teu pão com o suor do teu
rosto. Não à toa, a palavra trabalho tem origem no latim tripalium, três paus, que eram um instrumento de tortura.
Com o advento da Reforma Protestante, há uma mudança na
filosofia salvífica e, de embalo, no modus
vivendi do cristão. Weber nota que a mudança mais radical se dá através não
dos ditames de Lutero, primeiro reformador bem-sucedido, mas da interpretação
de Calvino.
Ao contrário do que pensava a corrente dominante do
Cristianismo, Calvino entende que a salvação não se dá pelo conjunto da obra de
um ser humano, mas da livre vontade de Deus. A tese é a seguinte: Deus é um ser
superior a toda a humanidade, que lhe é totalmente subordinada. É impensável
que a criatura possa prescrever condições ao seu criador. Sendo assim, Deus
admite ao seu lado quem ele bem entender, e não há nada que o homem possa fazer
para mudar isso. É a doutrina da predestinação: o homem já tem seu destino
escrito e definido.
Mas isso traz uma dificuldade aparentemente insanável. Se já
se está marcado por um destino imutável, dependente exclusivamente da vontade
divina, como fazer para se ter noção de quem pode ou não ser salvo? Calvino diz
que Deus dá “dicas” de suas escolhas – o homem escolhido é próspero, ele tem
recompensas já em sua vida terrena. Assim, se os negócios vão bem, se a terra é
produtiva, se a freguesia cresce, se os bens se acumulam, isso é manifestação
inequívoca da benesse divina. De cara, esse pensamento tira o aspecto
pecaminoso que o Catolicismo atribuía ao lucro e à sua variante mais mesquinha,
a usura. Sendo a prosperidade uma manifestação da vontade de Deus e o lucro
sendo seu principal propulsor, nada há de errado nele.
Essa filosofia religiosa caiu como uma luva para o
contemporâneo capitalismo que florescia. Devidamente escusado de seus pecados,
os capitalistas encontravam o conforto antes inexistente para a prática de suas
atividades, o que, inclusive, desmistificava a visão negativa que se dava ao
trabalho.
Weber nota uma coisa interessante, derivada disso tudo: os
católicos se preocupam com uma educação humanista, enquanto os protestantes dão
maior importância à educação técnica, e uma das consequências aparentes é que
os negócios vão todos caindo nas mãos destes últimos. Eles estão melhores
acomodados com a posição individualizada da dicotomia protestantismo-capitalismo.
Lembrem-se: sendo escolha única de Deus, a salvação se aplica a indivíduos, e
não a grupos. A comunidade agora é menos importante do que o indivíduo, que
passa a olhar muito mais a si mesmo. O individualismo passa a ser a doutrina
subjacente tanto à religião quanto ao sistema econômico, com o trabalho como
bandeira a ser carregada. Quase que por uma motivação psicológica, a propensão
ao trabalho do protestante vira uma ética do dever laboral – o trabalho não só
não é mais um castigo, como ele é uma obrigação, um espaço do qual Deus se
utiliza para manifestar suas decisões.
E é aí que nasce o busílis. Ao preconizar um mundo já
delineado, cuja única ação tem por propósito dar vazão àquilo que já está
decidido, tem-se que praticamente apenas o trabalho é a oferta que se tem a
fazer a Deus. Uma vida ascética não tem mais valor, um culto aos santos e a
imitação de suas vidas não tem mais valor, incensos e velas não tem mais valor,
narrativas míticas (a não ser aquela chancelada pelo seu livro sagrado) não
tem mais valor. O mundo perde por completo seu aspecto mágico e passa a se
pautar unicamente pela “racionalidade”. É o que Weber chama de desencantamento do mundo, que não tem o
sentido de desilusão ou desapontamento que o termo parece dar, mas de exclusão
de todo o misticismo.
Só que é exatamente aí que o parafuso quebra na próxima
volta. Da mesma forma que o capitalismo encontra no calvinismo sua cara-metade
religiosa, também este vai se constituindo em restante do aspecto místico a ser
descartado. Em um mundo cada vez mais laico, e com os progressos científicos
cada vez mais substituindo a necessidade de orações, e com o paradoxo dos
prósperos de outras religiões, e com o malabarismo lógico para conciliar (sem
sucesso) predestinação e livre arbítrio, o fato é que a ética do capitalismo
baseado no calvinismo aproveita-lhe apenas o esqueleto, como se fosse um
fóssil. E a cobra morde o próprio rabo. O desencantamento do mundo mostra ainda
mais uma vez suas garras, sufocando o próprio movimento religioso que lhe deu
origem.
E nesse meio tempo já se perdeu todo o lirismo das
diferentes mitologias... O mundo desencantado de tudo seria o cúmulo da
chatice, não fosse a arte, mas isso é tema para outro momento.
Recomendações de leitura:
Basilar na Sociologia, o livro abaixo representa o
suprassumo da visão weberiana sobre a influência da Religião na vida da
sociedade. Se o assunto interessar, não deixe de ler.
WEBER, Max. A ética
protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 2000.
Também referenciei o livrinho que encontrei em São Lourenço
sobre o mito do surgimento da serra da Mantiqueira. É ótimo para crianças,
porque é todo ilustrado pela própria autora, mas que serve muito bem para
exemplificar a poética a que me refiro neste texto.
BAJGIELMAN, Selma. Lenda
da Mantiqueira. São Lourenço: Novo Mundo, 2014.
Fico comovida por participar e ser citada em seu blog. Abraços
ResponderExcluirSelma Bajgielman
É um prazer recebê-la aqui. Seu livro é muito lindo, fala de coisas interessantes... Seja sempre bem-vinda.
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