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sábado, 8 de agosto de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firma - 5º relato: Lindoia e o modo como uma marca vira um sinônimo de água mineral

Olá!

Estando hospedados na cidade de Socorro, conforme carta anterior, pudemos passar a pesquisar as demais cidades da região. Descolamos um mapa completo do pedaço, e chegamos à conclusão de que era possível visitar a cidade de Lindoia, vizinha pegada, em um dia. Portanto, para lá partimos.

Lindoia é uma cidade de bastante fama, em especial por conta de sua água mineral, bem conhecida já há muito tempo. E, como não poderia deixar de ser, ela é toda temática, como pode se observar no seu portal de entrada, que lembra uma fonte de água estilizada (seria mais bonito com menos placas e postes).


Lindoia não é só uma estância hidromineral. É também uma cidade do interior, e como tal, não poderia deixar de ter sua típica praçona com a igreja matriz e uma estátua do padroeiro. No caso, trata-se de Nossa Senhora das Brotas, já aqui uma nova referência às águas.


Outra coisa típica da praça é a arborização e o coreto, e aqui eu devo fazer uma rápida observação: vejam a quantidade de sujeira espalhada por toda a parte. Duas guimbas de cigarro e é tudo... Dou meus parabéns ao cuidado reservado ao logradouro.


A praça compõe a parte mais antiga da cidade, como é possível deduzir ao observar o casario que a rodeia. É uma pena que portas e janelas estejam descaracterizadas em sua maioria, o que prejudica o conjunto como elemento histórico...


... que somente pude observar na casa abaixo. Aqui, as esquadrias e madeiras são originais, mas a casa está mal conservada. Mesmo assim, aplicando os filtros mentais corretos, é bem fácil de entrever sua beleza intrínseca.


Mas é realmente nas águas que temos as principais ênfases da cidade. O Grande Lago, por exemplo, é um atrativo que fica na região baixa da cidade. Trata-se de um parque ao redor do lago que é formado pelo fluxo das nascentes que escoam pelas montanhas. Aqui também temos um monumento fazendo alusão às fontes da região.


O Grande Lago é uma região de agregação da comunidade local e de turistas. É um local onde há pesca, onde se pode nadar, onde se pode passear de barco e pedalinho, fazer churrasquinho, ou seja, aquelas coisas típicas de parque. Para nossa tristeza, estava quase tudo parado, porque a vida nessas estâncias começa na quinta-feira e termina no domingo (era uma terça). Ficamos no molha-pés e no banhinho de sol.


Também aqui achamos uma boa parte da fauna local. Muitos e muitos pássaros, e uma boa quantidade de capivaras se divertindo no banhado.


Há mais referências aquáticas espalhadas por aí. Uma delas são as estátuas dedicadas a São Cristóvão, que é mais conhecido como padroeiro dos motoristas. Dizem que seu ofício, por ser um homem bastante alto e forte, era vadear um rio de correnteza intensa atravessando as pessoas para lá e para cá, sem cobrar nada pelo préstimo. A imagem daí de baixo está situada na Casa do Caminhoneiro, da qual falarei já, já.


O que espalha a fama deste lugar para o restante do Brasil, comercialmente falando, são suas engarrafadoras, que carregam o nome da cidade em suas embalagens. A maior delas é a Lindoya Bioleve, que oferece visitação às suas instalações (que necessitam ser agendadas – saco).


A Casa do Caminhoneiro fica exatamente na sua entrada, para que os transportadores possam fazer suas pausas e necessidades. É nesse lugar onde fica a tal imagem de São Cristóvão.


O engarrafamento de água é tão importante para a vida da cidade e para a constituição de sua identidade que o mais significativo de todos os seus monumentos é uma garrafa gigante, que reproduz um dos primeiros modelos utilizados, ainda na primeira metade do século passado. Os lindoianos se orgulham do fato de que sua água foi levada até para a lua, em uma das missões do Projeto Apolo.


Bom, hoje em dia, com as facilidades para a importação, e com a entrada dos megacomplexos de bebidas no mercado de água mineral, nomes como Perrier, Evian, San Pellegrino e Bonafonte ficaram mais comuns em nosso dia-a-dia. Porém, quando eu ainda era jovem, Lindoya e Minalba (esta da cidade de Campos do Jordão) eram praticamente sinônimos de água engarrafada. É um processo meio que semelhante ao que ocorreu com outras marcas que viraram sinônimos de seus produtos. Acho que os mais escandalosos são a Maizena e a Gilette. Nunca vi ninguém dizer que ia ao mercado para comprar amido de milho. Também nunca escutei: “Seu Manoel, dê cá uma lâmina de barbear, ô pá!”.

Algumas marcas tem mesmo essa propriedade de identificação imediata com o produto que representa, e essa associação ocorre por pioneirismo, por exiguidade de opções, por qualidade superior e tal e coisa, mas para entender como essa associação é tão grande a ponto de ultrapassar a barreira da sinonímia e se tornar o designativo principal de um determinado objeto, precisamos estudar a linguagem, e o faremos através dos bons serviços de Ferdinand de Saussure, filósofo suíço que atuou na França e na Alemanha.

Saussure se destaca e muito na Filosofia da Linguagem por quebrar o paradigma, até então em voga, de estudar a linguagem através da comparação das diferentes gramáticas e da mera associação nome-objeto. Para ele, a persistir esse modelo, não haveria saltos que fizessem evoluir o estudo das expressões humanas, que é tremendamente mais complexo do que pode alcançar essa metodologia. A linguagem é heteróclita, cheia de variações e de pouca homogeneidade, no seu dizer. Nascia a semiótica saussureana.

Para Saussure, a linguagem se forma através de desdobramentos dicotômicos. Ela própria é formada por dois elementos constituintes: a fala e a língua. A fala é o aspecto individual da linguagem. É o modo de falar próprio de cada pessoa, seus sotaques, entonações, modos de organizar as expressões. Já a língua é social. É fruto da convenção espontânea de determinada comunidade, que nasce através da linguagem natural oriunda da fala (individual), mas que, ao sistematizar-se, dá forma e regra a esta mesma fala. Esta circularidade mostra que a linguagem é a fusão entre a língua e a fala, entre social e pessoal; é criação coletiva.

O ponto central da filosofia de Saussure é a sua Teoria dos Signos Linguísticos. O homem, desde o seu nascimento, observa o mundo ao seu redor e começa a fazer associações. É óbvio que não nos lembramos de quando éramos bebês, mas eu garanto que, a cada vez que apontávamos para determinado objeto, nossas mães se apressavam em dizer o nome dele. Dessa forma, mui lentamente, vai se criando no cérebro uma imagem mental, associada ao nome do objeto. Após algum tempo, tornamo-nos capazes de fazer remissão ao objeto apenas ouvindo seu nome. Já não precisamos tê-lo à nossa frente. Essa imagem tem natureza acústica, obviamente, porque o aprendizado da fala precede o da escrita. E quando pensamos, não mentalizamos as palavras, mas imagens, e estas, a não ser no caso dos surdos, são interiorizadas pela audição (sobre a linguagem dos surdos, será objeto de postagem futura).

Temos então duas gravações mentais de um objeto: seu conceito (ou ideia) e sua imagem acústica. O conceito é aquilo que imaginamos da coisa, uma imagem sem palavras, e a imagem acústica é a palavra que nos remete a este conceito. Por exemplo: quando eu lhe digo a palavra “fogo”, profiro um som. Esse som chega ao seu cérebro como uma palavra a ser decodificada. A imagem acústica da palavra “fogo” dispara uma busca do conceito “fogo” nos recônditos de sua memória, e a comunicação se complementa. A imagem acústica é o significante, uma palavra que busca um sentido. O conceito é o significado, uma representação mental que dá sentido a uma palavra. Isoladamente, elas não querem dizer nada; mas, uma vez articulados, temos o signo, célula da expressão. O significante é sua parte sensorial, e o significado é a sua porção ideal. É como se o significante fosse o corpo e o significado fosse a alma do signo.

Mas as palavras não podem ser vistas como entes isolados, porque existe uma certa dubiedade entre elas. São os casos dos homônimos e dos homófonos. Se eu escrevo a palavra sessão, não tenho problema algum; mas se eu a falar, terei um som que pode representar três coisas: espaço de tempo (sessão), repartição (seção) ou transferência de posse (cessão). O mesmo se aplica quando falo a palavra Marco. Será uma das flexões do verbo marcar? Será uma daquelas estacas que o pessoal do metrô finca no chão? Será o início de um período histórico? Será o nome de um homem? E de qual?

Nesse contexto, temos um problema e tanto, porque o significante pode assumir vários significados, e apenas o estabelecimento de uma perspectiva pode solucionar o sentido. Esse é um dos motivos pelos quais Saussure entendia que o método histórico-comparativo era insuficiente. Uma linguagem não pode ser estudada apenas no decorrer do tempo, mas é preciso observá-la em “fotografias temporais”. Melhor explicando, Saussure concorda que a linguagem, tal qual um organismo vivo, vai se modificando através do tempo. As palavras e a gramática mudam por vários processos: seja pela interlocução cultural dos processos imigratórios, seja pelo uso/desuso popular, seja pelos neologismos. Essa é a dimensão diacrônica da linguagem, ou seja, a mutabilidade da linguagem com o passar dos tempos. Mas a linguagem possui também uma dimensão em que ela não é analisada em um dinamismo temporal, como ocorre no diacronismo. Ela também precisa ser vista estaticamente. Observamos a linguagem no presente e vemos como ela se articula aqui e agora. Se a linguagem não é estudada em seu eixo de simultaneidade, nada mais se fará do que estudar sua história. A linguagem tem, portanto, uma dimensão sincrônica.

É nessa dimensão da sincronia que vamos começar a compreender nossa Lindoya como sinônimo de água mineral. Fixado o olhar na linguagem atual, podemos observar que ela não é coisa livre, leve e solta. Ela tem regras que não são naturais, como eu disse lá no começo; a língua se origina de uma capacidade natural, mas é um constructo social, o que leva inexoravelmente a convenções. Os signos linguísticos são arbitrários, ou seja, em algum momento aquele conjunto de som e conteúdo foi escolhido para representar um objeto. 

Ainda no plano da sincronia, podemos observar que a linguagem é linear, o que significa que deve seguir uma linha (oh!). Não podemos dispor letras e palavras de qualquer maneira, sob a pena de não se conseguir formular sentido. “RCÍAXA” e “XÍCARA” não são a mesma coisa só por serem compostas pelos mesmos elementos; só a segunda compõe um signo. O mesmo vale para “uma voando a sobre mosca há xícara” e “há uma mosca voando sobre a xícara”. A linguagem não prescinde de uma ordem, de uma linearidade.

Percebam que a arbitrariedade e a linearidade são regras do jogo. E aqui entra a belíssima alegoria do tabuleiro de xadrez. Assim como nesse jogo milenar, a linguagem é cercada de circunstâncias que lhe são intrínsecas ou extrínsecas. Em miúdos: algumas características são absolutamente essenciais, outras são acessórias. Então vamos lá. No xadrez, temos os nomes e os desenhos das peças, sua origem, a cor do tabuleiro como fatores extrínsecos. Por mais que se fira a tradição, podemos chamar o rei de presidente, a torre de arranha-céu, o cavalo de tanque. O jogo ainda pode ser jogado. Também podemos colocar cores no tabuleiro – ao invés de preto e branco, pode ser verde e amarelo, cor de rosa e carvão, sépia e solferino, grená e ciano, essas cores exóticas. Ainda assim é possível jogar. Tampouco importa se o jogo foi criado na Grécia, na Pérsia, na Rússia ou na Várzea do Carmo. Isso nada muda no jogo. Idem se for jogado por dois homens, duas mulheres, dois gays, um velho e uma criança, um branco e um preto, um mudo e um perneta. Há dois oponentes? Há xadrez.

Mas há também fatores intrínsecos, que não podem ser modificados sem que se mudem as regras do jogo. Preciso ter dezesseis peças de cada lado. Preciso de um tabuleiro com 64 casas dispostas em oito linhas e oito colunas. Preciso de dois oponentes. Preciso de oito peões, dois bispos, duas torres, dois cavalos, um rei e uma dama de cada lado. Preciso que o peão ande para a frente e “coma” na diagonal. Preciso que o bispo trafegue nas diagonais e que as torres andem nas paralelas das bordas. Preciso que o cavalo ande em “L” e que o rei e a dama andem em qualquer direção, sendo o primeiro uma casa por vez. E preciso que o jogo acabe com o xeque-mate.

Isso é xadrez. Se eu mexer nessas regras, mudo o jogo inteiro. Crio outra modalidade, porque altero sua estrutura fundamental. Idem com a linguagem. Quando mexo nas suas bases, torno-a incompreensível ou crio um novo idioma.

Se eu passo a chamar uma garrafa de água mineral como “Lindoya”, estou modificando alguma regra gramatical? NÃO.

Se eu substituo um termo mais geral por um mais particular, estou criando um novo idioma? NÃO.

Por isso que essa absorção de um novo nome é tão comum na linguagem. Não há nenhuma modificação essencial quando fazemos isso, e ainda ganho a vantagem de tornar minha comunicação mais específica. Se eu perco um peão no jogo de xadrez, coloco um feijão no seu lugar e digo: “Isso é um peão”. O jogo poderá transcorrer normalmente, mesmo com a substituição. Basta que meu oponente a reconheça, ou seja, que haja consenso. O mesmo se aplica à linguagem em geral.

Isso também ocorre com a água mineral. Vou ao bar e peço uma Lindoya com gás. Se o seu Manuel me servir uma garrafa de água mineral, está fechado o circuito da comunicação e a linguagem cumpriu seu papel.

Recomendação de leitura:

Saussure é essencial para os cursos de letras e linguística, além de ser um dos autores mais fundamentais da Filosofia da Linguagem. Recomendo as suas lições que foram coligidas por dois de seus alunos e publicadas postumamente.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1975.

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