Marcadores

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Sobre Cosme e Damião, seja com relação a balas, seja com relação à antropologia

Olá!

Há coisa de um mês atrás, eu estava andando pelo Glicério quando me ofereceram umas balas, assim do nada. Era uma mocinha, de seus 12 anos no máximo.

- É de São Cosme e São Damião, disse-me ela.



Apesar das limitações diabéticas, aceitei de bom grado. Houve uma época, em minha infância, que na festa de Cosme e Damião, corríamos por todos os terreiros de umbanda da região, atrás de balas, doces e pipocas. Tinha bem uns quatro, mas lembro em especial o da mãe Sabrina, que ficava no final da rua onde morava minha avó. Ele ficava a beira-rio e tinha um monte de amoreiras, onde eu pretejava minhas mãos e minha boca (sim, minha roupa também, para desespero de minha mãe). Fazia parte de nosso espaço comum, não havia restrição para entrada ou saída, mesmo durante os cultos.

Os católicos do pedaço tinham uma relação de tolerância com os terreiros, já que o sincretismo propiciava alguns pontos em comum. Sacumé, santos e orixás, benzedeiras e rezadeiras, enfim. Já para os evangélicos (na época dizíamos: crentes) eram antros de adoração do diabo, qualquer um que pusesse os pés lá dentro era amaldiçoado e outras patranhas deste estilo.

Onde será que foram parar? Não conheço mais quase nenhum. Por que será que estão desaparecendo?

Penso que há um grande mal em hierarquizar-se as religiões, como se uma fosse melhor que a outra. Não são. Porém, tenho motivos para acreditar que as crenças de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé, são mais vilipendiadas que as outras por motivos tão simples quanto abomináveis.

Vamos exemplificar: o lugar de culto destas religiões são chamados de "casa de encosto" ou "terreiro de macumba" pelos praticantes de outras crenças. É para lá de evidente que o olhar de quem lança um tratamento destes não tem nenhum caráter antropológico, nenhum distanciamento crítico. Outra crítica é a de que se trata de uma religião primitiva, muito próxima ao animismo praticado desde os tempos pré-históricos. É um olhar absolutamente parcial, contrário ao espírito filosófico. Senão vejamos.

Uma das maiores dificuldades do Cristianismo é explicar a existência do mal. Se Deus é bom, por que permite que o mal aconteça? As explicações não são boas, em geral. A mais razoável é a do catolicismo - o mal existe porque Deus não cria robôs, porque o livre arbítrio do homem o leva para o mal. Mesmo assim, o problema persiste, porque nem tudo está sob controle do homem. Se pensarmos em predestinação - tão cara aos evangélicos - essa teoria cai por terra. Nesta linha de pensamento, Deus já criaria seus filhos com destino certo, para gozar ou para sofrer, para ir para o céu ou para o inferno. Só os eleitos teriam lugar no paraíso. Deus estranho, esse. Quanto à Umbanda, sua visão é de que o mal existe e devemos saber lidar com ele. Não há como negar que todos possuem variações psicológicas e diversidades de comportamentos. Aos momentos ruins, um evangélico típico atribui a ação demoníaca. Os umbandistas, ao contrário, verificam um desequilíbrio no próprio ser.

Os umbandistas são mais telúricos, ligam-se mais fortemente à natureza e sua inconstância. Os fenômenos naturais estão ligados à divindade de seus orixás, que controlam sua ocorrência e características. Ao contrário de ser meramente uma tendência ancestral, o fato é que eles são mais ecológicos, respeitam mais o meio ambiente, afinal lá está a morada de suas divindades. O que é mais moderno que isso?

Outra questão que os umbandistas tiram de letra e que perturbam outras religiões é a questão do sentimento de culpa. Por exemplo: enquanto na maioria das religiões a homossexualidade é encarada como erro, como desvio, como pecado, e quem possui uma tendência desta carrega o peso de uma auto-condenação, no umbandismo e no candomblé isso é uma decorrência espiritual, não há fardo a carregar.

A grande resposta à questão é: as religiões afro não são respeitadas por puro preconceito. São religiões de negros, esta é a verdade. Trata-se do antiquíssimo preconceito de raça, ele mesmo, o racismo. Que continua trazendo seus danos: estamos perdendo parte significativa de nossa cultura como um todo ao diminuir o valor da cultura trazida pelos africanos e pelos indígenas.

Não estou aqui desfazendo da fé e das convicções de ninguém. Só queria lembrar que é saudável e até mesmo necessário que tenhamos um olhar mais crítico e menos dogmático sobre a cultura do outro. Gostaria de mencionar dois eventos que demonstram a inter-religiosidade levada ao seu grau mais elevado: o primeiro é a lavagem da escadaria do Bonfim, que ocorre anualmente na Bahia, mais por força da tradição dos negros, que fizeram deste evento um sinônimo de ecumenismo. O segundo é menos conhecido, mas talvez mais impressionante: o presépio dos orixás, que fica em um convento franciscano em Guaratinguetá. Esses são sinais de respeito pelo conhecimento do outro, do reconhecimento da validade de sua cultura.

Nenhum comentário:

Postar um comentário