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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Abrindo a caixa de ferramentas

Olá!

Praça da Liberdade. Lugar interessante, geléia cultural que agrega e mistura muitas tribos, em especial os divertidíssimos cosplayers. Terra invadida pelos jovens, novíssima Ágora repleta de cores, música e... palavrões!!! Infinitos, variados, ditos em alto e bom som, capazes de arrancar a casca de um carvalho, principalmente quando saídos dos delicados lábios carmins das frágeis e indefesas jovenzinhas, prontas para dar aula ao mais carrancudo dos carroceiros.


Tá na cara que o assunto me causa um certo... espanto, mas não chega a atravessar minha capacidade crítica. Vamos lá!

Em primeiro lugar: o palavrão é, antes de mais nada, um recurso da linguagem. E dos mais legítimos. Lembremos que a função da linguagem ultrapassa muito a racionalização do pensamento. Ela também tem a tarefa de exprimir estados de espírito, emoções, sentimentos. E, neste posto, temos uma grande dificuldade: por um lado, os impulsos irracionais são, por si só, caóticos. Por outro, a linguagem tem problemas para traduzir com exatidão as relações que são a ela propostas. Apenas como exemplo, podemos mencionar o caso dos paradoxos. Que tal o mais tradicional de todos - o "paradoxo do mentiroso"?

"Um homem diz: - Estou mentindo.O que ele diz é verdadeiro ou falso? Se for verdadeiro, significa que ele está mentindo, e portanto não poderá estar dizer o verdade. Se for falso, significa que está dizendo a verdade, o que quer dizer que está mentindo".

Os paradoxos circulares, como esse, são uma mostra de que a linguagem é repleta de alçapões. Vários filósofos já se debruçaram sobre a questão da capacidade que a linguagem possui para refletir (ou não) a verdade. Existem as mais diversas concepções, mas duas delas são particularmente interessantes e atuais: a de Theodor Adorno e a de Michel Foucault. Vou mencioná-las rápida e genericamente, para embasar minhas hipóteses.

Adorno diz que a verdade é algo que trafega no espaço que há entre o sujeito e o objeto, ou seja, o contexto ambiental e histórico influencia na formação da verdade. Vejam: entre o sujeito "Eu" e o objeto "faca", há uma relação que transcende a mera observação. Assim, se estudo uma faca em uma selva, ela significa um meio de sobrevivência; se a observo em um julgamento, pode ser a arma de um crime; em um açougue, é uma ferramenta de trabalho; em uma cerimônia religiosa, pode ser um acessório ritual. Também o aspecto temporal é relevante: a bússola que hoje está no museu já foi o único recurso do navegante para empreender suas expedições. Desta forma, e com perdão aos conservadores e dogmáticos, verdade é contexto. E, portanto, extremamente relativa.

Evidentemente, esta é apenas uma das interpretações da verdade, mas há muitas outras. A de Foucault, por exemplo, articula-se e complementa a teoria de Adorno, com uma tese absolutamente simples e original. Para ele, a verdade na relação entre dois sujeitos emerge a partir da agressividade.

Isso ocorre assim: convivemos com nossos amigos até que uma situação de conflito se estabeleça, seja uma opinião contrária, uma brincadeira de mau gosto, uma frase mal colocada, uma atitude impensada. Enfim, uma agressão. A reação que meus amigos tiverem em relação à minha atitude estabelecerá qual é o real alcance de nossa amizade. Se a reação for de procurar saber o que está havendo, poderemos dizer que temos uma amizade real, há preocupação com a continuidade da relação; se for igualmente ou mais agressiva, vemos outra situação surgir: a minha agressividade engessou a capacidade de meu amigo de colocar a amizade acima da desavença. Se meus amigos virarem as costas, surge outro aspecto da verdade da nossa relação - a amizade inexistia, ou não foi possível suportar minha agressão - eu colocado como de fato sou. Concluo que a agressividade é o grande disparador da verdade.

Há momentos em que tudo o que resta é a reação agressiva. E neste momento, temos duas expressões legítimas da linguagem: o grito e o palavrão. E, como tal, são expressões máximas de uma verdade contingente: aquela primal, visceral. Entre os dois, o palavrão é menos imediato e mais informativo - ele não é apenas uma reação fisiológica, há alguma articulação intelectiva nele, ainda que bem pouca. Claro, o exemplo mais rápido é o da topada na pedra. Pouca gente faria outra coisa que não fosse gritar ou berrar impropérios.

Também a expressão da reação contra aquele que, de alguma forma, nos contrapõe, é campo compreensível para a utilização do palavrão. É o xingamento, expressão da raiva - atitude de ação ou reação agressiva, fundeadora da verdade. Manja?

_ Quem te fez isso?
_ Aquele f... da p...!

É isso. O palavrão tem uma importante função na linguagem - canalização da agressividade. Não precisamos ser falsos moralistas. O caso todo é que sua utilização exagerada acaba produzindo um desvio de função e, no limite, seu esvaziamento. Não há uma medida sobre o local em que se dispara a metralhadora, nem hora de soltar o berro. Há um descompasso entre o uso e a necessidade do uso do palavrão. Há a justificativa do desafio ao establishment adulto, do desafio à autoridade paterna, que preza a disciplina e bom comportamento. Também é possível pensar em um desafio à hipocrisia social, que acoberta com palavras bonitas as muitas mazelas que se deixam ocorrer, muito mais pornográficas que qualquer piada suja. Há ainda um desajuste, ou melhor dizendo, uma fase em que o jovem ainda está fazendo a "sintonia fina" de sua adaptação às convenções próprias de quem está saindo da infância e ainda não chegou ao mundo adulto. Mas, no geral, das duas, uma: ou as gerações atuais são mais agressivas ou o palavrão foi banalizado. Talvez ambas as coisas sejam verdadeiras.

Recomendação de leitura:

Para a noção de parresia em Foucault, recomendo o seguinte livro:

FOUCAULT, Michel. Sexualidade, corpo e direito. MAGALHÃES, Bóris et al [org.]. Marília: Cultura Acadêmica, 2011.

Quanto à questão da verdade em Adorno, esta é a leitura fundamental:

ADORNO, Theodor. A dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

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