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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Sobre Lula, SUS e autoritarismo

Olá!

Tenho acompanhado com apreensão o desenrolar da campanha "Lula, vai se tratar no SUS" que tem se desenvolvido nos últimos tempos em redes sociais. O caso merece uma análise, porque tem alta adesão e traz uma amostra do pensamento de nossa sociedade. Poderia dizer que a campanha é injusta, nojenta e burra, porque em última instância trata-se de um ser humano que vive uma situação difícil, da qual muitos de nós já passamos, direta ou indiretamente. Mas prefiro ver a atitude por um outro ângulo: ela é autoritária.




Em primeiro lugar, precisamos levar em conta a trajetória política do ex-presidente. Não é preciso amá-lo nem odiá-lo, mas sim levar em conta que se trata de um retirante nordestino, com pouquíssima formação acadêmica, que passou pela dificuldade de ser um operário, e que vem influenciando nossa política desde o tempo em que era um líder sindical, ainda nos tempos da ditadura, quando manifestar seus pensamentos e objetivos constituía ainda um perigo real, físico mesmo. Esse mesmo homem chegou à Presidência, foi reeleito e fez sua sucessora, e ainda hoje é referência quando se pensa na política do Brasil. Nesse sentido, sua carreira é absolutamente brilhante, a despeito do que se pense de suas ideias e de seus resultados. Espero ter sido compreendido.

Já tivemos inúmeros políticos que se trataram de doenças graves em hospitais particulares, no Brasil e no exterior. Por que o seu caso provoca tanto escândalo?

Quem pensou em luta de classes acertou em cheio. Nossas elites ainda não são democráticas no sentido pleno da palavra, ainda não estão preparadas para suportar a ascensão social dos mais pobres, e Lula é um modelo perfeito e bem acabado daquilo que não conseguem compreender. Ao recomendar que Lula faça seu tratamento no SUS, acabam revelando que é este o lugar que desejam para toda uma classe social. E essa atitude é autoritária, porque reflete uma efetiva demonstração de desejo da manutenção de seu status quo. E apenas para ela. Não se deseja uma nova elite, ou uma elite mais numerosa. É uma atitude extremamente agressiva, e, como tal, portadora de uma verdade por vezes indesejável, inconfessável, mas inevitável, como pensava Michel Foucault (vide este post).

Isso revela dois problemas. O primeiro é o próprio fruto do autoritarismo. Nosso último período ditatorial foi derivado de um ledo engano da classe política. Achava-se que os militares tomariam o poder constitucionalmente eleito para entregá-lo de mão beijada. Triste ilusão, de igualmente tristes consequências. Vivemos um período sangrento, cuja real dimensão não conhecemos de todo até hoje. Ora, o autoritarismo atrai autoritarismo. Os acontecimentos no mundo árabe estão aí, para não deixar ninguém mentir. É que, ao admitir-se a violação da ordem legal, derruba-se o estado de direito e valida-se a exceção, a violência e a insegurança jurídica. Acho engraçado que existam pessoas que elogiem o regime ditatorial, em especial aqueles que não o vivenciaram. Talvez não reflitam adequadamente. Nossa elite intelectual não coincide com nossa elite econômica, seus anseios são diferentes. Esse SUS que reputam por ineficiente e inadequado é fruto direto do desmonte das políticas sociais ocorrido justamente na ditadura. Os militares entregaram aos civis um país quebrado, próximo da ingovernabilidade. Só pudemos encontrar algum respiro verdadeiramente democrático a partir do governo Fernando Henrique, que, apesar de minhas grandes restrições, começou um processo de estabilidade econômica que tem permitido algumas melhorias sociais. É bom lembrar que a transição de seu governo para a gestão Lula foi feita de maneira absolutamente republicana e democrática, ao permitir que os técnicos do novo governo se instalassem e tomassem pé da situação ainda antes do início de seus mandatos.

O segundo problema diz respeito às reais condições de atendimento do SUS. Conhecemos as filas e as denúncias, e não ficamos satisfeitos com elas. Mas, em alguns aspectos, somos exemplos para outros países. Para tanto, peço a leitura atenta deste depoimento. Não preciso acrescentar mais nada, mas gostaria de mencionar estes dois exemplos extraídos de minha vivência, quem vem ao encontro dos objetivos deste blog.

O primeiro diz respeito a alguns hospitais que são referências, e que atendem pelo SUS: o HC, o Dante Pazzanese, o Pérola Byington. Estivemos em visita ao Hospital A. C. Camargo, o famoso hospital do câncer, em sua ala infantil. Lá há atendimento a particulares e ao SUS. Não há nenhum, mas nenhum mesmo, tipo de diferença entre o tratamento oferecido para um ou para o outro. Um quadrinho aqui, uma mesinha lá: é todo o privilégio adicional que os particulares tem em relação ao atendimento público.

Já o segundo é mais pessoal. Minha mãe começou tratamento contra o câncer enfrentando um monte de dificuldades: começando por exames não cobertos pelo convênio, passando por processos judiciais para conseguir uma porcaria de uma alça de ressecção e horas e mais horas de telefone, internet e visitas pessoais para conseguir a autorização para a aplicação da imunoterapia. A única participação do SUS nesta história toda foi o fornecimento dos medicamentos, que foram conseguidos NA HORA, sem nenhuma burocracia.

As pessoas tem a tendência de achar que as coisas administradas pela iniciativa privada são mais eficientes, o que não é uma verdade absoluta, principalmente quando há risco de prejuízo. Aí, sim, a grande roda do capital gira e o ser humano é posto em um plano inferior. Passa-se, então, do autoritarismo para a burrice, a nojeira e o preconceito sobre os quais não quis falar no começo desta postagem. E, então, nascem campanhas como estas, onde as pessoas acham divertido zombar da desgraça dos outros.

Recomendação de navegação:

O link acima aponta para um texto de Nina Crintzs, que escreve bem prá burro e que eu gostaria de deixar recomendado, ainda que suas postagens sejam relativamente raras.

Purple Sofa
https://purplesofa.wordpress.com/

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