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segunda-feira, 10 de maio de 2021

Crer e conhecer - necessidade e suficiência entre ambos

Olá!

Ninguém nunca disse que é fácil viver. Pior ainda é tomar algumas atitudes que acabam por te grudar um selo na testa. Digo isso porque tenho sentido reflexos na vida desde que promovi minha “saída do armário”*, o que sintetizei através do meu texto comemorativo de 300 postagens. Não se trata exatamente de hostilidade, mas uma certa indisposição com muitas das coisas que eu falo, tipo o que acontece quando alguém quer reconduzir uma ovelha alvinegra ao redil verde**: o Palmeiras tem mais títulos, se você sabe disso porque pulou o muro? É pregar para convertido, saibam, mas o debate é menos na sua casa nova, e mais no apartamento velho. Deu para entender?

É melhor deixar mais claro. O problema é mais ou menos o seguinte: se um cristão que conhece a história de Jesus não se dispõe mais a acreditar nele, tornando-se um apóstata, por que volta e meia menciona a religião que nasceu a partir dele? Por que escreve textos sobre filósofos da Religião***? Por que não larga da gente de uma vez?

Ora, claro que as coisas não são assim. E preciso criar um pouco de vontade para explicar por que. Vamos nessa!

É claro que não ficamos pensando incessantemente como são as profundezas das coisas. Imagine, por exemplo, se você vai ficar raciocinando nos movimentos circulares e na pressão interna dos gomos de uma laranja quando você quer fazer um suco. Você simplesmente vai lá e espreme a fruta. Você sabe que esse processo resulta em líquido e punto, finito. Esse é um saber prático que não depende de nenhuma ciência incrustada no seu telencéfalo extremamente desenvolvido, que pode estar exatamente filosofando sobre a vida e a morte no momento do espremer o cítrico.

É isso aí. Existem muitas que sabemos COMO fazer, o que não equivale a dizer que sabemos O QUE as coisas são. É o que se chama de techné, a palavra grega que significa a habilidade que temos para construir coisas e interferir no ambiente, e que dá origem para tantos termos do nosso quotidiano, como tecnologia, mnemotécnica e tantos outros. Só que o uso da técnica não está vinculado diretamente às razões pelas quais fazemos esse uso. Aqui, temos uma distinção a fazer.  São usos diferentes os que damos para a inteligência e a sabedoria. A primeira está amarrada com entender o funcionamento das coisas, e o porquê de serem assim e não assado. Já a segunda tem mais a ver com momentos certos de fazer uso das coisas que sabemos. No nosso caso específico, importa-nos a inteligência.

Só que até agora não estabeleci muito bem o que é uma coisa e o que é outra. Crença e conhecimento não são a mesma coisa, mas guardam uma relação de dependência uma com a outra. Portanto, podemos dizer que, para que se conheça, é preciso que primeiro se creia.

Vejamos um exemplo. Eu estou aqui na casa da minha filha sem saber ao certo como ela foi construída. É uma daquelas construções antigas, feita em tijolinhos maciços, e sem laje. Ao contrário, temos uma forração de PVC, fazendo as vezes de estuque. Vários reparos são necessários para melhorar sua habitabilidade, e um deles consiste em remover algumas das ripas para mexer na fiação que chega ao banheiro, nos fundos. Como é costumeiro acontecer, as divisões dos cômodos inexistem do forro para cima, o que torna tudo sob o telhado um vão único. Entretanto, na divisa da sala para a cozinha, a parede sobe até o telhado, o que divide o vão sob o teto em duas partes. Eu deduzo que tal mistério ocorre porque foi feito um prolongamento da casa, para torná-la maior. O que era o seu término, virou a divisão entre a saleta e a cozinha, que acabou por se tornar os novos fundos.

Bem, eu digo que sei tudo isso por um processo de dedução, mas o fato é que isso não é conhecimento, mas opinião. Eu ACHO que as coisas são desse jeito, usando minha própria experiência, mas não posso corroborá-las porque não tenho outros elementos. Não tenho perícia técnica, não assisti à construção, não tenho fotos, não tenho vídeos, não tenho planta original, não tenho nem ao menos o depoimento do dono da casa ou dos vizinhos. Ou seja, isso tudo é uma opinião, ou como gostavam de dizer os gregos, doxa. A doxa não é saber, é uma crença.

Agora digamos que eu queira tirar a história a limpo. Vou até o cartório de registro de imóveis da comarca de Taubaté e leio os assentos gravados na matrícula que deram para a casinha em questão. Lá, eu leio que a casa originalmente tinha um tamanho X e que foi expandido posteriormente para X+Y, sendo Y o valor correspondente à adição de um cômodo. Pronto, minha opinião se comprovou verdadeira, e agora eu não mais creio, agora eu SEI.

Isso mostra duas coisas: que a opinião não significa necessariamente um erro, e que ela sozinha não tem embasamento para refletir uma realidade. Mas por que podemos dizer que minha crença transformou-se em conhecimento? 

O melhor que é possível fazer é pegar os conceitos clássicos da Epistemologia e dar um passeio com eles. É com o velho Sócrates que olhamos para aquilo que pensamos que sabemos e colocamo-lo no âmbito crítico. Nos diálogos platônicos Menon e Teeteto, vemos o velho padroeiro falando sobre o que é uma mera crença e como ela pode ganhar o selinho de qualidade de conhecimento.

A epistéme é um sinônimo grego para um tipo de conhecimento seguro, ou seja, aquele que não é ofuscado pela aparência, mas que busca o que os fatos e fenômenos são na realidade. Quando nós pensamos em crença, primariamente temos na cabeça quase que o oposto disso: as coisas são o que nós acreditamos que seja, e não o que são de fato. Mas a questão é a seguinte: não há como ter conhecimento sem que se tenha crença. A epistéme não é só uma modalidade de conhecer, mas um processo, que inclui um marco zero: acreditar naquilo que achamos ser verdadeiro. Imagine que é exposto a você um teorema que explique o formato da Terra, ou a eficácia de uma vacina. Se você não se dispõe a acreditar nas formulações e nas evidências que lhe são apresentadas, não adianta. O ciclo que forma o conhecimento não se fecha.

Acontece que a crença é uma condição necessária, mas não suficiente para chegar ao conhecimento. Isso é muito simples de se perceber. Não adianta acreditar em um conto da carochinha para que isso seja verdade, embora seja possível que o façamos tão piamente que para que qualquer lugar que olhemos tenhamos a sensação de confirmação de nossa crença. O nome disso é tratado pela Psicologia com o nome de wishful thinking, e já tratei do assunto neste texto. Talvez você que me lê tenha acreditado em Papai Noel ou coelhinho da Páscoa quando era pequeno, e isso não os tornou verdadeiros.

Eu não coloquei meus filhos para acreditar em nenhum dos dois quando eram pequenos, não porque tivesse algum tipo de posição filosófica contrária, mas porque achava que a transição entre a ilusão e a verdade nua e crua seria mais complicada em um relacionamento que se pretendia basear na sinceridade (cheguei a falar um pouco sobre isso há um bom tempo atrás). Quando chegava a época da Páscoa, por exemplo, eu escondia dois capitalistíssimos ovos de modesto tamanho pela casa, e colocava-os para procurar, rindo às escâncaras com seus palpites furados. Não dizia que era o coelhinho que os havia trazido, mas que eu mesmo os tinha comprado com meus parcos estipêndios. Ora, podia muito bem ser verdade, mas também eu poderia estar falando que a compra foi feita por mim só para parecer o bonitão, e os ovos tivessem sido, na real, comprados pela avó ou pela madrinha.

Vejam, portanto, que transitar da crença para o conhecimento não é algo exatamente simples. Eu posso acreditar em algo que seja verdadeiro, mas pelos motivos errados. Por exemplo, eu sei que a diabetes é excesso de glicose no organismo, e isso é verdadeiro, porque há quilos e quilos de estudos que comprovam a afirmação. Só que o senso comum pensa ser essa doença uma consequência do abuso no consumo de sacarose. Só que ela se dá por um problema de metabolismo, e não por conta das bombas de chocolate da padaria. Ou seja, quando digo que a diabetes é uma superabundância de açúcar, minha opinião é verdadeira, só que é verdadeira “no chute”. Tem um elemento faltando nela: a justificação.

Justificar, neste âmbito, nada mais é do que explicar os motivos pelos quais as coisas são como são ou deixam de ser. Não basta que eu saiba que algo é verdadeiro, é preciso também saber o porquê, para que a crença verdadeira se consolide e se torne segura. Esse é, por exemplo, o caminho da Ciência. Tá lá no céu uma raio de luz singrando-o de fora a fora na noite. Eu sei que isso acontece de vez em quando, e também sei que quanto mais escuro estiver meu ponto de visagem, melhor conseguirei observá-lo, mas enquanto eu não souber do que se trata o fenômeno, não poderei alegar ter fechado o ciclo do conhecimento: eu, sujeito, apreendo um objeto de meu universo observável, e tiro conclusões que deverão ser averiguadas. Começo crendo, termino sabendo. O conhecimento é crença verdadeira justificada, como dizia o parteiro de ideias. Uma tese conhecida como teoria tripartite do conhecimento, e que é representada mui comumente com o gráfico abaixo:

O conhecimento está precisamente na intersecção entre a crença e a verdade. Não é conhecimento aquilo que cremos, mas não é verdade; assim como também não é conhecimento aquilo que é verdade, mas não cremos. Para que o conhecimento seja efetivo, é necessário que ele transite de uma doxa para a epistéme através do logos, porque não há conhecimento inefável, inexprimível, indescritível. Isso também não é conhecimento, correto?

Doxa, logos, epistéme... Que monte de grego, meu pai… onde entra esse tal de logos na história toda? É que o meio pelo qual conseguimos traduzir um conhecimento é a palavra. Toda forma de saber precisa passar primeiro pela articulação mental de um sujeito, e isso não é possível sem que se transite pelo logos. A razão se processa pelo logos.

Pois bem, então. Bem estabelecidas as diferenças necessárias, passo a explicar a questão inicial. Muito embora uma pessoa possa não crer em uma divindade, ela sabe da existência das narrativas sobre a mesma. Eu, por exemplo, sei que existe um livro chamado Bíblia, que contém as histórias e os feitos de várias personagens, dentre as quais um homem a quem são atribuídos poderes divinos chamado Jesus. Também sei que, a partir de sua vida e ensinamentos, foi estabelecida a base para a religiosidade ocidental praticada até hoje, e que a crítica histórica é, na sua maioria, favorável à existência de um Jesus histórico, ainda que sua existência possa não ter correspondência com aquilo que é relatado nos Evangelhos. Em resumo, ainda que haja parcialidade nos relatos evangélicos, há outros elementos externos a eles que tendem a corroborar a existência de um profeta no meio do movimento messiânico judaico das épocas da dominação romana que o celebrizou por uma abordagem diferente com relação aos demais, que esperavam por um senhor da guerra. Tenho conhecimento de tudo isso, independentemente da minha crença (ou falta dela), acrescido das vitaminas e sais minerais que são minha vivência eclesial e meus estudos acadêmicos.

Sendo assim, não há absolutamente nada de errado em se falar sobre as religiões que não praticamos e sobre as teologias que não concordamos, porque é perfeitamente possível conhecê-las. A quem me contesta por esse motivo, devo explicar que é uma contestação tola. Já não falei sobre o budismo (um, dois, três e quatro) e a umbanda (neste texto)? Há algo de errado nisso? Falo dos filósofos cristãos porque eles têm ideias muito boas, muito desenvolvidas e muito bem descritas. Eu não posso excluí-los dos meus estudos e dos meus textos pelo simples fato de não crer no mesmo que eles. Por isso, continuarei a falar sobre religião quando for pertinente. Até mesmo porque trato delas com o respeito que é devido aos seus praticantes. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Por que nunca citei um livro de Sócrates no meu blog? É simples: porque ele não existe. É pela boca de Platão que Sócrates fala, e suas teses sobre conhecimento estão mais claramente colocadas nos dois livros mencionados. Já havia mencionado o Teeteto neste texto, e fica a recomendação para o Menon.

PLATÃO. Mênon. Rio de Janeiro: Loyola, 2001.

* Continuo hétero. Minha saída do armário diz respeito à questão religiosa. E antes que alguém me diga que era desnecessário fazer esse esclarecimento, informo que vivemos no Brasil.

** Substituam pela dupla de times de suas preferências.

*** E é verdade mesmo. Já escrevi sobre Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Boécio, sobre o Eclesiastes duas vezes (um e dois), Constantino, Nicolau de Cusa e mais alguns outros perdidos por aí.

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