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sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Eclesiastes e sua Filosofia do Tempo - outras observações sobre o livro mais filosófico da Bíblia

Pensamento!
Mesmo o fundamento
Singular do ser humano
De um momento, para o outro
Poderá não mais fundar
Nem gregos, nem baianos...

Gilberto Gil - Tempo Rei

Olá!

Tempos atrás, em uma dessas turnês etílicas que fiz a Monte Alegre do Sul, aproveitei uma promoção de lichias que ocorria em uma pequena chácara na beira da estradinha que leva ao distrito de Mostardas, quase na saída da cidade. O preço estava muito bom, dada à safra generosa daquele ano, e o dono permitia que se chupassem frutas à vontade, enquanto se deslindava a aquisição da sapindácea de origem chinesa, tão bem adaptada ao clima tropical da Ilha de Vera Cruz. Enquanto a patroa usava toda a sua verve otomana para negociar vantagens, fiquei de namoro com um pé de manga gigantesco que havia na entrada da pequena herdade. Todo cheio de frutas ainda verdes, estava tão carregado que era fácil de pegar várias mangas só esticando a mão. Imaginei se não haveria nenhum problema em aviar uma delas à minha algibeira, mas não o fiz sem expressa autorização do chacareiro. Chega de falar difícil. Eu queria era mesmo pegar uma manga. Perguntei-lhe:

“O senhor me autorizaria a tungar uma dessas, mesmo verde?”

Sua resposta foi simples o suficiente para me ensinar algumas coisas: “Essa manga ainda não é de tempo. Se você levar, não vai ter proveito. Ela vai apodrecer antes de ficar madura. Espera um pouquinho”.

Foi até o fundo da roça, de onde era possível ver outras mangueiras. Trouxe-me outras mangas, iguais-que-nem para olhos urbanos. E disse:

“Essas sim. Pode esperar uma semana que elas vão ficar boinhas. Se estiver com pressa, embrulha no jornal que em três dias já dá para comer, mas não vão ficar tão gostosas”.

Atrevi-me a perguntar qual seria a diferença entre o produto de ambas as árvores, e o homem me explicou que há um tempo exato para que uma manga possa ser colhida com proveito. Demonstrou algo sobre a textura da casca, mas eu não consegui perceber a diferença, falando que sim apenas para parecer educado. Mas foi dito e feito: uma semana depois as mangas estavam realmente boinhas para consumo. Há, realmente, um tempo para plantar e um tempo para colher. E isso me remete ao Eclesiastes.


Ora (direis),
justo você vai falar de religião? Não, vou falar de Filosofia. Quando falamos deste livro, temos diante de nós o escrito mais filosófico de toda a Bíblia, que se aproxima muito de pensamentos que trafegam entre o ético e o lógico, e se afastam do metafísico, como acontece com o Budismo, para citar um exemplo. Eclesiastes, ou Qohelet, não se propõe a contar uma história, a desfiar moral, a fazer elegias e louvores... Eclesiastes se propõe a filosofar, e essa é nossa matéria-prima. E sua filosofia é tão rica que há muito que extrair dele. Comecei há tempos atrás, em uma postagem que me rendeu muitas visualizações, e da qual recomendo muito a leitura antes de prosseguir aqui. Fica a seu critério, incomum leitor.

No texto mencionado, depuro como Qohelet assume a posição parmenidiana de mudança como ilusão, baseada em uma de suas frases fundamentais: não há nada de novo debaixo do sol. Mas é no terceiro capítulo do escrito que encontramos o elemento que permeia e dá substância a todo o sentido desta conclusão: o tempo.

Vamos ver. A assertiva sobre a manga do meu caro sitiante encontra-se perfeitamente gravada nos dizeres do filósofo que redigiu Eclesiastes, com toda a carga poética que lhe é peculiar:

“Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou. Tempo de matar e tempo de curar; tempo de demolir e tempo de construir. Tempo de chorar e tempo de rir; tempo de gemer e tempo de dançar. Tempo de atirar pedras e tempo de ajuntá-las; tempo de abraçar e tempo de apartar-se. Tempo de procurar e tempo de perder; tempo de guardar e tempo de jogar fora. Tempo de rasgar e tempo de costurar; tempo de calar e tempo de falar. Tempo de amar e tempo de odiar; tempo de guerra e tempo de paz" – Ecl 3, 1-8.

Tudo tem seu tempo, seu momento correto de acontecer, e a nós resta aguardar. Como eu disse, há um fundo lírico muito intenso na maneira como Eclesiastes cuida da questão do tempo, especialmente no navegar chiaroscuro das suas dicotomias, mas num primeiro olhar temos uma afirmação que pouco passa do intuitivo. Afinal de contas, é quase que uma característica universal humana pensar em oposições. Mas notem que, por trás desse véu de poesia que fica entre o simples e o ingênuo, há um significado mais profundo.

Vamos falar rapidamente sobre a dialética como ferramenta filosófica. Grosso modo, seria a arte do diálogo na busca de respostas às questões que mais nos afligem. Entretanto, quando pensamos no jargão, a dialética não é uma mera troca de ideias, e sim uma espécie de polarização entre conceitos, onde as ideias colocadas em pontos opostos vão se “combatendo” para extrair uma conclusão nova. Já nos tempos de Zenon de Eleia, talvez contemporâneo ao autor de Eclesiastes, o uso de contradições que caminham de um lado para o outro eram construídas para se tentar espelhar a realidade. Este foi um filósofo que se alinhou muito a Parmênides e, como tal, apostava na permanência perpétua do Ser. E usava muitos paradoxos para justificar suas teses*. Entretanto, a percepção da mecânica dialética, desse trafegar entre opostos, foi, ao longo do tempo, transbordando de uma mera ferramenta filosófica (como ocorre com a Lógica) para constituir uma verdadeira Filosofia da História: a estrutura com a qual a História (ou seja, nosso tempo realizado) se movimenta, lembra em muito a dialética que nasceu com os pré-socráticos e desembocou com toda sua majestade no Geist hegeliano e em sua derivação mais famosa, o materialismo histórico-dialético de Marx (leiam mais aqui). Para resumir, estes filósofos entendiam que a História não se deslinda linearmente, como se o tempo fosse um grande vetor movido pelo acaso ou por uma divindade, mas ao sabor de suas contradições, em uma espécie de zigue-zague.

A Filosofia do Tempo de Qohelet já dizia isso, com todas as letras, embora seu tom pessimista pareça lhe tirar um bom tanto de objetividade. É preciso lembrar que as terras judaicas viviam de mão em mão no período em que esta obra foi escrita, sob domínio de assírios, babilônios, persas e romanos, sucessivamente.  Mas isso não oculta outra característica que vem embutida nesse modelo dialético. Poderíamos achar estranho que tanto apoio na dialética esteja situado em um texto que, apesar de filosófico, não deixa de ser religioso. A volatilidade do tempo percebido, que migra de lá para cá dá uma sensação de impermanência que não coaduna com um deus. Mas é nisso que Eclesiastes é diferente dos demais textos bíblicos em geral, na sua adaptabilidade a circunstâncias que escapam do teológico.

Ao se pensar em estados extremos, obrigatoriamente somos levados a pensar em tudo o que está entre ambos. Em uma régua de trinta centímetros, temos o ponto zero e o ponto trinta, o começo e o final. Tudo o que é possível de medir com essa régua está entre esses dois pontos. A dicotomia entre esses limites carrega consigo uma outra constatação que fica mais em seu substrato: o tempo é uma totalidade. Essa ideia é tão poderosa que vai ser retomada, das mais diferentes maneiras, por outros filósofos ligados à Religião, como Santo Agostinho e Boécio, e até mesmo na moderna ciência de Einstein. Como é isso? O semear e o colher são os limites que perfazem a vida de um vegetal. Representam o ato gerador de seu nascimento e sua morte, princípio e fim - alfa e ômega, em um linguajar mais místico. Entre alfa e ômega, tudo o mais na realidade simbólica representada pelo alfabeto está incluído, tudo está lá. Da mesma forma, tudo o que ocorre no tempo está situado entre esses dois extremos: o brotar, o crescer, o dar frutos, o desfolhar, o definhar. Todas as dicotomias expostas por Eclesiastes vão sempre no mesmo sentido: entre o amar e o odiar há todas as nuances destes sentimentos, entre o chorar e o rir existem todos os aspectos dos estados de espírito. Ele corrobora toda essa informação no seu versículo 11, onde diz que...

“As coisas que Deus fez são boas a seu tempo. Ele pôs, além disso, no seu coração, a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro” (grifo nosso)

... o que indica que não só a dança dos extremos, mas a presença permanente dos tempos. Que tempo? O tempo percebido, porque segundo ele mesmo, não é dado compreender ao homem a dimensão completa do tempo sempre presente.

Já falei sobre a questão da duração (durée) em outro texto, sob o prisma de Henry Bergson. Nela, temos uma discrepância entre o tempo mensurável e o tempo intuído. É aquela sensação de que um bom jogo de futebol passou como um raio e um jogo modorrento se arrastou infinitamente. Não, ambos os jogos duraram noventa minutos em uma medida de relógio, mas a sensação peculiar a cada um de nós se dá pela intuição, e daí a impressão de diferença entre os tempos. Mas a duração à qual Eclesiastes se reporta é outra. Seu sentido é que o tempo é como um imenso tecido onde todos os pontos já estão devidamente alinhavados:

“Reconheci que tudo o que Deus faz dura para sempre, sem que se possa ajuntar nada, nem nada suprimir (...) Aquilo que é, já existia, e aquilo que há de ser, já existiu; Deus chama de novo o que passou”.

Aqui, podemos enxergar uma forma de determinismo, ou, no jargão religioso, de predestinação. Lembremos que estamos diante de um texto que, embora filosófico, é também teológico. Estando o tempo todo presente, e sendo ele uma criação divina, cabe a Deus determinar que acontecimentos estão disponíveis para serem tornados presentes. Mas, nesse caso, como podemos enxergar o futuro?

O futuro é sempre hipótese. De certa forma sabemos o futuro. Não na forma de previsibilidade de que os métodos científicos dizem, mas no reconhecer a dialética dos tempos. Sempre sabemos que qualquer situação não é estanque, mas que ruma para o seu oposto, o que dá até um medinho quando as coisas estão boas. É bem verdade que essa linha invisível tem lugar para parar, mas há sempre um ponto em que a direção chega e se inverte de mão. E sabemos que isso acontecerá, ainda que não saibamos quando ou como… Há uma discrepância entre aquilo que gostaríamos que acontecesse e aquilo que sabemos que vai acontecer. Ao primeiro sentimento, damos o nome de esperança, mas este é um sentimento subjetivo, ligado aos nossos desejos e vontades, sem a necessidade de nenhuma conotação egoísta, mas da nossa própria natureza desejante. Já o segundo sentimento existe como nosso conhecimento dessa natureza dialética dos acontecimentos. Ainda que não queiramos, sabemos do rumo para a morte, enquanto também sabemos que outros seres nascerão, e estes também perecerão. Sabemos que por mais que sejam belas as paisagens naturais e as obras humanas, também estas terão um fim, e no campo devastado haverá quem vislumbre a chance de uma criação ou um novo florescer. Sendo assim, o futuro existe na forma de espera.

Note-se, portanto, que o tempo vivido não é pura predeterminação, mas uma série de eventos inevitáveis que devem ser encarados por cada um de sua maneira própria, e não como uma pura reação mecânica que já estaria escrita em algum livro qualquer. A proposta do autor de Eclesiastes para defrontar a espera representada no futuro é muito próxima à que foi imaginada por seu provável contemporâneo grego, Epicuro. Já delineei a ética do prazer deste filósofo helênico neste texto, mas dou uma rápida repassada na mesma. A humanidade tem um propósito comum: a felicidade. Seja um objetivo terreno ou uma esperança para outro plano, o fato é sempre o mesmo – todos querem ser felizes. As vias para chegar a este intento podem ser muito diferentes entre si, mas os epicureus observavam que a senda do prazer era, de longe, a mais apropriada e menos dolorosa. Era mais fácil buscar o prazer do que resistir à dor, como preconizavam os estoicos. Entretanto, o prazer aqui pensado não é aquele do poder, da fama, do sexo ou da mesa, mas o fato de se tornar prazenteiro qualquer ato que se pratique na vida. Uma caminhada que se faz pela manhã, uma flor que se cheira, o trabalho que dá forma a um objeto, uma água pura que se beba no rio, tudo isso são pequenos atos que, quando se quer a felicidade, são transformados em prazer. Os dizeres de Qohelet são muito próximos a essa mesma ética do prazer simples, como se pode ver no versículo 22:

“E verifiquei que nada há de melhor para o homem do que alegrar-se com o fruto de seus trabalhos. Esta é a parte que lhe toca. Pois, quem lhe dará a conhecer o que acontecerá com o volver dos anos?”.

Daqui temos uma contradição à própria ação do homem discutida nos capítulos anteriores: a vaidade (hevel) e a futilidade que retira o sentido da vida. Qohelet nos diz que não nos importa uma preocupação doentia com o futuro, porque ele já está posto, não nos cabe fazer mais do que esperar. Sabemos o que vem, mas não como vem, e angustiar-se com isso é inútil. A vida existe no presente, e é nele que deve ser vivida. Parece meio terreno demais, e é, até mesmo porque boa parte da crítica é favorável à tese de que Eclesiastes nasceu primeiro como um escrito puramente filosófico, para somente depois receber seus elementos teológicos. De qualquer forma, repito o que eu disse no meu primeiro texto sobre este escrito fabuloso: é um texto humano, que pode interessar como conhecimento até mesmo para o mais arraigado ateu. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O texto de Eclesiastes é facílimo de encontrar na internet. Para compor este post, utilizei a seguinte versão:

https://www.bibliacatolica.com.br/en/biblia-ave-maria/eclesiastes/3/

* Não vou me alongar muito em Zenon porque já estou preparando um texto bem mais detalhado sobre sua metodologia dos paradoxos.

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