Pensamento!
Mesmo o fundamento
Singular do ser humano
De um momento, para o outro
Poderá não mais fundar
Nem gregos, nem baianos...
Gilberto Gil - Tempo
Rei
Olá!
Tempos atrás, em uma dessas turnês etílicas que fiz a Monte Alegre do Sul, aproveitei uma
promoção de lichias que ocorria em uma pequena chácara na beira da estradinha
que leva ao distrito de Mostardas, quase na saída da cidade. O preço estava
muito bom, dada à safra generosa daquele ano, e o dono permitia que se chupassem
frutas à vontade, enquanto se deslindava a aquisição da sapindácea de origem
chinesa, tão bem adaptada ao clima tropical da Ilha de Vera Cruz. Enquanto a
patroa usava toda a sua verve otomana para negociar vantagens, fiquei de namoro
com um pé de manga gigantesco que havia na entrada da pequena herdade. Todo
cheio de frutas ainda verdes, estava tão carregado que era fácil de pegar
várias mangas só esticando a mão. Imaginei se não haveria nenhum problema em
aviar uma delas à minha algibeira, mas não o fiz sem expressa autorização do
chacareiro. Chega de falar difícil. Eu queria era mesmo pegar uma manga. Perguntei-lhe:
“O senhor me autorizaria a tungar uma dessas, mesmo verde?”
Sua resposta foi simples o suficiente para me ensinar
algumas coisas: “Essa manga ainda não é de
tempo. Se você levar, não vai ter proveito. Ela vai apodrecer antes de
ficar madura. Espera um pouquinho”.
Foi até o fundo da roça, de onde era possível ver outras
mangueiras. Trouxe-me outras mangas, iguais-que-nem para olhos urbanos. E
disse:
“Essas sim. Pode esperar uma semana que elas vão ficar boinhas. Se estiver com pressa, embrulha
no jornal que em três dias já dá para comer, mas não vão ficar tão gostosas”.
Atrevi-me a perguntar qual seria a diferença entre o produto
de ambas as árvores, e o homem me explicou que há um tempo exato para que uma
manga possa ser colhida com proveito. Demonstrou algo sobre a textura da casca,
mas eu não consegui perceber a diferença, falando que sim apenas para parecer
educado. Mas foi dito e feito: uma semana depois as mangas estavam realmente boinhas para consumo. Há, realmente, um
tempo para plantar e um tempo para colher. E isso me remete ao Eclesiastes.
No texto mencionado, depuro como Qohelet assume a posição
parmenidiana de mudança como ilusão, baseada em uma de suas frases
fundamentais: não há nada de novo debaixo do sol. Mas é no terceiro capítulo do
escrito que encontramos o elemento que permeia e dá substância a todo o sentido
desta conclusão: o tempo.
Vamos ver. A assertiva sobre a manga do meu caro sitiante
encontra-se perfeitamente gravada nos dizeres do filósofo que redigiu
Eclesiastes, com toda a carga poética que lhe é peculiar:
“Para tudo há um
tempo, para cada coisa há um momento debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de
morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou. Tempo de matar e
tempo de curar; tempo de demolir e tempo de construir. Tempo de chorar e tempo
de rir; tempo de gemer e tempo de dançar. Tempo de atirar pedras e tempo de
ajuntá-las; tempo de abraçar e tempo de apartar-se. Tempo de procurar e tempo
de perder; tempo de guardar e tempo de jogar fora. Tempo de rasgar e tempo de
costurar; tempo de calar e tempo de falar. Tempo de amar e tempo de odiar;
tempo de guerra e tempo de paz" – Ecl 3, 1-8.
Tudo tem seu tempo, seu momento correto de acontecer, e a
nós resta aguardar. Como eu disse, há um fundo lírico muito intenso na maneira
como Eclesiastes cuida da questão do tempo, especialmente no navegar chiaroscuro das suas dicotomias, mas num
primeiro olhar temos uma afirmação que pouco passa do intuitivo. Afinal de
contas, é quase que uma característica universal humana pensar em oposições. Mas
notem que, por trás desse véu de poesia que fica entre o simples e o ingênuo,
há um significado mais profundo.
Vamos falar rapidamente sobre a dialética como ferramenta
filosófica. Grosso modo, seria a arte
do diálogo na busca de respostas às questões que mais nos afligem. Entretanto,
quando pensamos no jargão, a dialética não é uma mera troca de ideias, e sim
uma espécie de polarização entre conceitos, onde as ideias colocadas em pontos
opostos vão se “combatendo” para extrair uma conclusão nova. Já nos tempos de
Zenon de Eleia, talvez contemporâneo ao autor de Eclesiastes, o uso de contradições
que caminham de um lado para o outro eram construídas para se tentar espelhar a
realidade. Este foi um filósofo que se alinhou muito a Parmênides e, como tal,
apostava na permanência perpétua do Ser. E usava muitos paradoxos para
justificar suas teses*. Entretanto, a percepção da mecânica dialética, desse
trafegar entre opostos, foi, ao longo do tempo, transbordando de uma mera
ferramenta filosófica (como ocorre com a Lógica) para constituir uma verdadeira Filosofia da História: a estrutura com a
qual a História (ou seja, nosso tempo realizado) se movimenta, lembra em muito
a dialética que nasceu com os pré-socráticos e desembocou com toda sua
majestade no Geist hegeliano e em sua
derivação mais famosa, o materialismo histórico-dialético de Marx (leiam mais aqui). Para resumir, estes filósofos
entendiam que a História não se deslinda linearmente, como se o tempo fosse um
grande vetor movido pelo acaso ou por uma divindade, mas ao sabor de suas
contradições, em uma espécie de zigue-zague.
A Filosofia do Tempo de Qohelet já dizia isso, com todas as
letras, embora seu tom pessimista pareça lhe tirar um bom tanto de
objetividade. É preciso lembrar que as terras judaicas viviam de mão em mão no
período em que esta obra foi escrita, sob domínio de assírios, babilônios,
persas e romanos, sucessivamente. Mas
isso não oculta outra característica que vem embutida nesse modelo dialético. Poderíamos
achar estranho que tanto apoio na dialética esteja situado em um texto que,
apesar de filosófico, não deixa de ser religioso. A volatilidade do tempo
percebido, que migra de lá para cá dá uma sensação de impermanência que não coaduna
com um deus. Mas é nisso que Eclesiastes é diferente dos demais textos bíblicos
em geral, na sua adaptabilidade a circunstâncias que escapam do teológico.
Ao se pensar em estados extremos, obrigatoriamente somos
levados a pensar em tudo o que está entre ambos. Em uma régua de trinta
centímetros, temos o ponto zero e o ponto trinta, o começo e o final. Tudo o
que é possível de medir com essa régua está entre esses dois pontos. A dicotomia
entre esses limites carrega consigo uma outra constatação que fica mais em seu
substrato: o tempo é uma totalidade. Essa ideia é tão poderosa que vai ser
retomada, das mais diferentes maneiras, por outros filósofos ligados à
Religião, como Santo Agostinho e Boécio, e até mesmo na moderna ciência de Einstein. Como é isso? O semear e o colher
são os limites que perfazem a vida de um vegetal. Representam o ato gerador de
seu nascimento e sua morte, princípio e fim - alfa e ômega, em um linguajar
mais místico. Entre alfa e ômega, tudo o mais na realidade simbólica
representada pelo alfabeto está incluído, tudo está lá. Da mesma forma, tudo o
que ocorre no tempo está situado entre esses dois extremos: o brotar, o
crescer, o dar frutos, o desfolhar, o definhar. Todas as dicotomias expostas
por Eclesiastes vão sempre no mesmo sentido: entre o amar e o odiar há todas as
nuances destes sentimentos, entre o chorar e o rir existem todos os aspectos
dos estados de espírito. Ele corrobora toda essa informação no seu versículo
11, onde diz que...
“As coisas que Deus fez são boas a seu tempo. Ele pôs, além
disso, no seu coração, a duração inteira,
sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro” (grifo
nosso)
... o que indica que não só a dança dos extremos, mas a
presença permanente dos tempos. Que tempo? O tempo percebido, porque segundo
ele mesmo, não é dado compreender ao homem a dimensão completa do tempo sempre
presente.
Já falei sobre a questão da duração (durée) em outro texto, sob o prisma de Henry Bergson.
Nela, temos uma discrepância entre o tempo mensurável e o tempo intuído. É
aquela sensação de que um bom jogo de futebol passou como um raio e um jogo
modorrento se arrastou infinitamente. Não, ambos os jogos duraram noventa
minutos em uma medida de relógio, mas a sensação peculiar a cada um de nós se
dá pela intuição, e daí a impressão de diferença entre os tempos. Mas a duração
à qual Eclesiastes se reporta é outra. Seu sentido é que o tempo é como um
imenso tecido onde todos os pontos já estão devidamente alinhavados:
“Reconheci que tudo o
que Deus faz dura para sempre, sem que se possa ajuntar nada, nem nada suprimir
(...) Aquilo que é, já existia, e aquilo que há de ser, já existiu; Deus chama
de novo o que passou”.
Aqui, podemos enxergar uma forma de determinismo, ou, no jargão religioso, de
predestinação. Lembremos que estamos diante de um texto que, embora filosófico,
é também teológico. Estando o tempo todo presente, e sendo ele uma criação
divina, cabe a Deus determinar que acontecimentos estão disponíveis para serem
tornados presentes. Mas, nesse caso, como podemos enxergar o futuro?
O futuro é sempre hipótese. De certa forma sabemos o futuro.
Não na forma de previsibilidade de que os métodos científicos dizem, mas no
reconhecer a dialética dos tempos. Sempre sabemos que qualquer situação não é
estanque, mas que ruma para o seu oposto, o que dá até um medinho quando as
coisas estão boas. É bem verdade que essa linha invisível tem lugar para parar,
mas há sempre um ponto em que a direção chega e se inverte de mão. E sabemos
que isso acontecerá, ainda que não saibamos quando ou como… Há uma discrepância
entre aquilo que gostaríamos que acontecesse e aquilo que sabemos que vai
acontecer. Ao primeiro sentimento, damos o nome de esperança, mas este é um
sentimento subjetivo, ligado aos nossos desejos e vontades, sem a necessidade
de nenhuma conotação egoísta, mas da nossa própria natureza desejante. Já o
segundo sentimento existe como nosso conhecimento dessa natureza dialética dos
acontecimentos. Ainda que não queiramos, sabemos do rumo para a morte, enquanto
também sabemos que outros seres nascerão, e estes também perecerão. Sabemos que
por mais que sejam belas as paisagens naturais e as obras humanas, também estas
terão um fim, e no campo devastado haverá quem vislumbre a chance de uma criação
ou um novo florescer. Sendo assim, o futuro existe na forma de espera.
Note-se, portanto, que o tempo vivido não é pura
predeterminação, mas uma série de eventos inevitáveis que devem ser encarados
por cada um de sua maneira própria, e não como uma pura reação mecânica que já
estaria escrita em algum livro qualquer. A proposta do autor de Eclesiastes
para defrontar a espera representada no futuro é muito próxima à que foi
imaginada por seu provável contemporâneo grego, Epicuro. Já delineei a ética do
prazer deste filósofo helênico neste
texto, mas dou uma rápida repassada na mesma. A humanidade tem um propósito
comum: a felicidade. Seja um objetivo terreno ou uma esperança para outro
plano, o fato é sempre o mesmo – todos querem ser felizes. As vias para chegar
a este intento podem ser muito diferentes entre si, mas os epicureus observavam
que a senda do prazer era, de longe, a mais apropriada e menos dolorosa. Era
mais fácil buscar o prazer do que resistir à dor, como preconizavam os estoicos.
Entretanto, o prazer aqui pensado não é aquele do poder, da fama, do sexo ou da
mesa, mas o fato de se tornar prazenteiro qualquer ato que se pratique na vida.
Uma caminhada que se faz pela manhã, uma flor que se cheira, o trabalho que dá
forma a um objeto, uma água pura que se beba no rio, tudo isso são pequenos atos
que, quando se quer a felicidade, são transformados em prazer. Os dizeres de
Qohelet são muito próximos a essa mesma ética do prazer simples, como se pode
ver no versículo 22:
“E verifiquei que nada
há de melhor para o homem do que alegrar-se com o fruto de seus trabalhos. Esta
é a parte que lhe toca. Pois, quem lhe dará a conhecer o que acontecerá com o
volver dos anos?”.
Daqui temos uma contradição à própria ação do homem
discutida nos capítulos anteriores: a vaidade (hevel) e a futilidade que retira o sentido da vida. Qohelet nos diz
que não nos importa uma preocupação doentia com o futuro, porque ele já está posto,
não nos cabe fazer mais do que esperar. Sabemos o que vem, mas não como
vem, e angustiar-se com isso é inútil. A vida existe no presente, e é nele que
deve ser vivida. Parece meio terreno demais, e é, até mesmo porque boa parte da
crítica é favorável à tese de que Eclesiastes nasceu primeiro como um escrito
puramente filosófico, para somente depois receber seus elementos teológicos. De
qualquer forma, repito o que eu disse no meu primeiro texto sobre este escrito
fabuloso: é um texto humano, que pode interessar como conhecimento até mesmo
para o mais arraigado ateu. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
O texto de Eclesiastes é facílimo de encontrar na internet.
Para compor este post, utilizei a seguinte versão:
https://www.bibliacatolica.com.br/en/biblia-ave-maria/eclesiastes/3/
* Não vou me alongar muito em Zenon porque já estou
preparando um texto bem mais detalhado sobre sua metodologia dos paradoxos.
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