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sexta-feira, 28 de maio de 2021

Navegações de cabotagem – a Praça das Cabeças de Praia Grande e o espaço vital que precisamos para transformar o mundo

Olá!

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Era uma vez um freezer, e este freezer ficava em uma casa de veraneio no litoral paulista. Acontece que ele se transformou em contrapiso para poeira, e desligado que estava não exercia a função social preconizada na Carta Magna do Florão da América. Sendo assim, fazia muito sentido que fosse deslocado de sua cozinha inoperacional para um novo destino, lá pelos lados do Vale do Paraíba. Ou, sem regateios e chorumelas, meu sogro tinha um freezer em desuso na Praia Grande e minha filha mudou-se para Taubaté. Faz-lhe falta tal eletrodoméstico, e o velho o disponibilizou, meio na base do “te vira prá levar”. Cálculos:

Freezer novo – R$ 1.700,00
Usado em bom estado – R$ 1.000,00
Aluguel de uma picape + combustível + pedágios – R$ 300,00

A relação custo-benefício pareceu favorável ao último quesito, e foi por esse caminho que eu rumei, indo a uma dessas locadoras cheias de protocolos, garantias e burocracias, mas que fornecem o que eu preciso.

Bem, a carga em si coube a mim e à patroa. Um freezer vazio de seus 200 litros não é lá uma bigorna, então encaramos a tarefa de boas. Feita a carga e a amarração, ao invés de sair correndo para a estrada, resolvemos fazer um pedaço de beira-mar, para matar um pouco das saudades. Afinal de contas, o tempo estava bem bom, com aquele mormaço típico da costa, um diferencial em relação às terras altas da capital. Andamos um bom trecho, da Vila Mirim até o Boqueirão, mas não voltei à rota pela Costa e Silva, geralmente muito movimentada. Fi-lo um pouco antes, mais ou menos na altura da feira de artesanato, pela Avenida São Paulo.

Foi então que percebi o quanto de tempo já fazia que eu não rodava por este pedaço. No meio da via, uma praça bem larga desponta ao longe, cheia de cabeças metálicas, que eu ainda não tinha visto, independentemente de já ter passado por aqui.


O nome do logradouro é Praça Elos, mas o espaço expositivo é chamado de Praça da Paz, inaugurada em 2007 para homenagear algumas personalidades que fizeram algum tipo de ação relevante pela paz no mundo.

As estátuas retratam Jesus, sua mãe Maria, Gandhi, madre Tereza de Calcutá, São João Paulo II, Nelson Mandela e Sérgio Vieira de Melo, sendo que este último eu cheguei a confundir com o George Bush.

Todas as obras são revestidas em aço inox, e possuem em torno de 10 metros de altura cada uma.

O autor das esculturas é Gilmar Pinna, que se notabilizou por fazer obras semelhantes em Guarulhos e Ilhabela, especialista em produzir com o uso de material metálico de grandes dimensões.

Embora a praça tenha um nome oficial, o povo não deixou barato e a batizou informalmente como Praça das Cabeças. Vox populi, vox dei, e eu o adoto daqui por diante.

Pelo que andei vendo por aí, há polêmica na construção da praça. Tem gente que adorou a novidade, tem gente que achou desperdício de dinheiro público. Eu tendo a concordar com a primeira posição, desde que o montante se justifique e não haja indícios de desvios. Não que eu tenha ficado de queixo caído com as estátuas, mas não é em qualquer lugar que poderemos ter um Musée Rodin.

Mesmo não sendo unanimidade, a praça faz parte de um processo de melhorias e urbanização que já vem de longe, com o objetivo de mudar uma imagem renitente. A Praia Grande leva nas suas costas uma boa dose de preconceito. Certo: é uma cidade com índices de violência acima do desejável, embora não fuja da média do litoral. Mas o fato é que ela carrega um estigma que escapa da observação deste quesito. É que ela é considerada uma cidade para pobres, para farofeiros, para aqueles que não têm grana para gastar com hotéis de frente ao mar, como ocorre no Guarujá ou no Litoral Norte. Todas as vezes que alguém quer falar que passou o feriado em um lugar sem requinte, refere-se à PG, mesmo que não seja verdade.

Eu não tenho nenhum direito de falar mal da Praia Grande. É, de longe, a cidade da Baixada que eu mais frequentei na minha vida. Quando eu era criança, ao contrário da longa teia urbana que se vê hoje, havia grandes espaçamentos entre os diversos bairros, que eram ligados por vias de areia socada mesmo pela avenida principal. Chegávamos pela velha Ponte Pênsil, aguardando o tempo necessário para inversão da mão, sempre que preciso. Meu pai tinha um amigo com uma casinha próxima à Vila Caiçara, um tanto isolada e que, mesmo sendo meio distante da orla, dava para vê-la da janela lateral. A casa ficava mais cheia que um ovo cozido, porque a patota aproveitava a oportunidade e se organizava nos carros que estivessem à disposição. Mais tarde, meu sogro compartilhava um cômodo-e-cozinha com sua irmã, até que pode adquirir uma casa no Balneário Maracanã, de modo a esgotar suas verbas rescisórias de anos a fio, mas que o deixou muito feliz. Por este motivo, mais da metade das vezes em que fui para a área litorânea, o fiz para ir à Praia Grande. E, como pode ser percebido, éramos adeptos de pular no trem na hora em que ele passasse, sem se preocupar se o banco era estofado.

Não éramos só nós, operários e camponeses familiares, que nos despíamos de requintes. Toda uma camada da população via lá a opção possível de lazer. A Praia Grande começou a ficar cada vez mais atulhada de gente e lixo por conta das famosas excursões de um dia, com uma estrutura então muito precária, principalmente nos desembocadouros de esgoto. Da década de 80 para cá, muita coisa mudou, principalmente na organização do espaço público. A Praia Grande é outra, e qualquer pessoa que não tenha vindo para cá há pouco tempo, não reconhece a cara nova.

Mas a marca fica. Hoje, quem olha para a Praia Grande, vê uma orla muito bem estruturada*, embora a ausência dos quiosques tenha sido uma canelada indesculpável da prefeitura. Há ciclovia de fora-a-fora, há chuveiros, sinalização farta, via toda asfaltada. Está em melhor situação que outras cidades melhor cotadas na mente do povo.

O pior é que o estigma não fica na cabeça só de quem vem de longe, mas embutido até mesmo em quem está do lado de dentro. Não se trata de um complexo de vira-latas, como quereria Nelson Rodrigues, mas de uma condição psicológica de quem tanto ouve a mesma cantilena e que vê o ar de desprezo ou deboche do outro. E isso se espraia de mente em mente, marcando todo um povo, de modo que só há dois caminhos: a conformação ou a revisão. Como temos uma tendência à comodidade, na maioria das vezes acontece o primeiro, mas é possível pensar diferente, como ensina Kurt Lewin.

Este camarada foi o principal precursor da Psicologia Social, a área de conhecimento que trata dos fenômenos mentais das interações, de uma maneira a reconhecer que estes não ocorrem apenas na célula individual, mas que se compartilham com as comunidades que possuem elementos comuns em seus convívios. Na época em que começou a militar na área, havia duas vertentes que condividiam a Psicologia: a psicanálise, que operava nas entranhas mais profundas da mente, mais voltada para uma visão filosófica do assunto; e o behaviorismo, mais preocupado com os efeitos dos estímulos sobre o comportamento do indivíduo. Lewin procura uma terceira via, mais próxima à Gestalt, que se preocupava exatamente com a dinâmica social, que precisa levar em conta fatores muito externos às cabeças em si.

Lewin pega emprestado o conceito de campo na física para descrever suas ideias. Quando olhamos para um objeto qualquer, intuitivamente compreendemos que toda sua presença física se limita às fronteiras de seu corpo físico. Mas isso não corresponde à realidade. Ainda que não se toque com outros, esse objeto exerce influência e é influenciado pelo ambiente que o rodeia. Um campo gravitacional ou magnético, para citar exemplos, exerce uma interação com o ambiente ao seu redor. Pensando em um ímã, ele possui uma força de atração que aumenta ou diminui de acordo com a proximidade dos objetos que estão ao seu redor, transitando de um absoluto, que representa o toque, até um ponto em que sua capacidade de atrair é tão rarefeita que já não consegue produzir aproximação. Enfim, um campo é uma área estendida, que não corresponde unicamente à porção perceptível do corpo.

Segundo Lewin, o mesmo se aplica às relações sociais. O núcleo da interação é o self, que representa o indivíduo como centro convergente das percepções sobre o mundo. Seu campo é composto pelas forças que vem de fora, chamadas por Lewin de vetores, que podem interagir com o self de maneira positiva ou negativa, e que, de acordo com sua proximidade e importância, exercerão maior ou menor influência sobre o self.

O que é o espaço vital para Lewin? É exatamente essa área abrangida pelo campo. Trata-se de todo e qualquer fato que influencie o comportamento de uma pessoa. Isso já nos indica que o espaço vital não é meramente físico, e também não somente espacial, da mesma maneira que os campos tratados no ramo da Física, como exemplificado acima.

E é aqui que vemos como as considerações que se fazem sobre o ambiente em que se vive moldam o self. Uma cidade que vai ganhando infraestrutura mais robusta é um vetor positivo, que faz com que alguém se sinta mais bem representado e com anseios atendidos. Por outro lado, toda a carga de despeito que se lança sobre essa mesma cidade é um vetor negativo, que leva influências como um certo desconforto, ou, no limite, uma vergonha em ser partícipe de um lugar desprezado. É como se o lugar em que eu vivo não fosse digno e, por consequência, eu não fosse digno também.

Mas como se sai desse círculo vicioso? De acordo com Lewin, as pessoas possuem zonas de conforto que, mesmo incômodas, representam um modo de viver conhecido e razoavelmente seguro. É necessário vencer esse natural conservadorismo de um grupo, o que começa com o reconhecimento dos vetores negativos que penetram nos espaços vitais de cada indivíduo, com a observação da necessidade de mudanças e com a aposentadoria de crenças e hábitos. Como se trata de uma disposição coletiva, é preciso que existam lideranças dentre os membros que sirvam como porta-estandartes para o que Lewin chamou de descongelamento de padrões. Logo em seguida, vem a mudança em si, fruto de um desafio de transformação. É com essa predisposição que um sistema é entendido e modificado, de modo a eliminar os vetores negativos e maximizar os positivos, ou até mesmo de lhes mudar o sinal, passando o que era ruim a ser utilizado com proveito. Após a implementação de uma nova cultura, é a hora do recongelamento, ou seja, da absorção definitiva dos novos conceitos e práticas, e do novo espaço vital. Lewin usa um experimento com a utilização de miúdos pelas donas de casa no período de guerra, mas eu vou exemplificar com um modelo mais costumeiro para nós, tupiniquins: o futebol.

Imagine que seu time da esquina, glorioso pelos torneios da várzea, tenha entrado em uma modorra infinita. As tradições mandam que aquele velho 4-2-4 seja o padrão tático, com dois pontas abertos e um ponta-de-lança acompanhando o centroavantão clássico: alto, forte e lento. O técnico é das antigas, daqueles que ‘inda falam que “quem corre é a bola”. Acontece que o antigo desempenho foi aos poucos degradando. Aquele time outrora tão goleador passou a ser facilmente marcado, e, com as posições tão fixas e previsíveis, foi sendo mais e mais derrotado, a ponto de perder a antiga relevância. Depois de um bom tempo nessa condição, o vetusto técnico pega seu boné e vai criar peixe no interior de Goiás. O novo professor escolhido tenta embutir novas ideias na cabeça do elenco, mas é recebido com ceticismo. Para vencer a resistência, leva o time para assistir jogos em outras praças e trás vídeos de esquemas táticos alternativos, explicando aos atletas bissextos o que quer e o que espera deles. Não tendo muita alternativa, o time descongela. Os pontas agora recuam para ajudar os volantes, e os laterais avançam até a linha de fundo dos adversários. O centroavantão desce para a zaga para cortar os cruzamentos, e os beques fazem o oposto no ataque, para aproveitar a boa estatura. O resultado foi uma mudança na tendência às derrotas, conseguindo mais empates e algumas vitórias eventuais, que foram aumentando e se acumulando, na exata medida em que o time foi se adaptando mais e melhor às suas novas funções. Bem estabelecido, seu esquema tático torna-se um novo padrão, novamente congelado, mas agora eficiente, totalmente novo, mas capaz de retomar a antiga glória.

Já não parece que você ouviu falar desse papel das lideranças em algum lugar? Não te parecem aquelas dinâmicas de grupo que fazem os gestores para demonstrar quais são os novos papeis que se esperam de seus comandados? Pois é. A prática psicológica social de Lewin é uma das grandes vedetes dos modernos administradores e coaches, quânticos ou não. Sim, a vida é regada e adubada de contrassenso. Uma das teorias mais festejadas pelo mundo empreendedor tem origem em uma cabeça socialista, que se preocupava em fazer com que o próprio povo se reconhecesse com seus espaços vitais impregnados de vetores negativos, e que se reunisse em torno de suas lideranças para desenhar um novo futuro.

Talvez a chave para a autoimagem da Praia Grande esteja em atitudes semelhantes. Os tempos de cidade suja e que ninguém queria assumir como destino turístico (embora sempre houvessem assíduos frequentadores) fazem parte de um passado que precisa se descongelar. A novidade estética da Praça das Cabeças, embora nem se deva pretender uma unanimidade sobre o gosto, pode ser o marco de um lugar que se pensa diferente, que se assume como uma das cidades que mais mudou nas últimas décadas, para muito melhor. Espero que o mesmo empenho se dedique às camadas mais pobres da população. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Lewin olhou para a Gestalt que emergia naqueles dias para criar suas teses originais, tão repisadas hoje em dia que chegaram a perder seu sentido original. É bom buscar seu ideário na fonte primária, como é o livro abaixo.

LEWIN, Kurt. Teoria de Campo em Ciência Social. São Paulo: Pioneira, 1965.

Para quem quiser, a Praça das Cabeças é um lugar onde o pessoal vive tirando selfies. É bem fácil de estacionar, porque não fica colada na praia.

“Praça das Cabeças”
Praça Elos (cruzamento das Avenidas São Paulo e Brasil)
Boqueirão
Praia Grande
Aproximadamente 80 Km a partir do centro de São Paulo

* Não me esqueço de que há uma linha divisória muito clara na Praia Grande: a Avenida Presidente Kennedy. Tudo o que está para o lado do mar está mais bem situado, e à medida que se aproxima do morro, pior fica a miséria e a violência. Os termos são comparativos com as outras cidades da região.

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