Olá!
Como já contei para vocês neste
texto, os dias arrastados da pandemia parecem não ter fim e vão cansando as
costas da gente. Logo que tudo começou, mudei muito pouco no arranjo da casa,
simplesmente pegando uma mesinha auxiliar para colocar meu computador em cima,
e utilizando um cadeirão doado pela Dona Madalena, senhora nonagenária que a
patroa toma conta. Passando o tempo, minha sala foi pegando mais e mais cara de
escritório. Primeiro, foi uma mesa um pouco maior. Depois, tive que trocar de
cadeira antes que minha hérnia de disco me mandasse para o hospital. Por fim,
coloquei um monitor a mais e troquei a posição da mesa, removendo as poltronas
da sala e mandando-as para o quarto. Já detectei a necessidade de fazer outras
adequações, de modo que alguém que tenha vindo em casa há um ano estranhará a
nova ordenação da sala (ora escritório), com as perturbações típicas de quem
tem que se virar em espaço exíguo.
A vida é cheia desses percalços que nos redirecionam para
rumos inesperados, e alguns deles podem afetar não só um indivíduo, mas uma
comunidade inteira, uma cidade, um país... o mundo todo! E essas guinadas às
vezes são tão fortes que os historiadores utilizam-nas como marcos de inflexão,
dando a elas o nome de Idade ou Era. Não sei se os escribas futuros olharão
para nossa época e vão chamá-la de Era da Pandemia, mas o fato é que alguma
coisa mudará permanentemente.
Enquanto isso, penso em outros momentos decisivos da
humanidade, e percebo que a Filosofia meio que correu atrás da História, o que
não chega a ser surpresa nenhuma. Tudo vai atrás da História, como se fosse o
trio elétrico nas ruas do Nordeste. Só não vai atrás quem já morreu. À frente,
só quem teve a sacada de inventá-lo, mas aí a alegoria só vale para os
visionários. Essas transições nunca são abruptas, e não dá para atribuir a um
único evento isolado as transformações sociais e contextuais para que tudo mude
de rumo, e, portanto, os eventos históricos mais expressivos são agregadores de
uma pilha de outros acontecimentos que lhe giram em torno. Mas há um em
especial que, em termos de guinada filosófica, é mais relevante que o próprio
motivador histórico. Estou falando do Primeiro Concílio de Nicéia.
O Cristianismo começa seus dias como uma das tantas seitas
surgidas no seio do Judaísmo. Originalmente, adotava uma conotação comunitária,
como já faziam outras facções, como é o caso dos essênios. Entretanto, ao invés
de buscar isolamento, eles procuravam viver inseridos nas cidades, levando em
conta que uma de suas características era o proselitismo, um mandato apostólico
dado por Jesus, seu fundador. Em tempos de invasões romanas espalhadas pelo
mundo inteiro, é natural que houvesse momentos de resistência na maior parte
dos territórios ocupados. Não era diferente na Judeia, e todos os movimentos
existentes caíam na mesma vala comum dos insurgentes, mesmo quando pacíficos.
Além disso, este caráter apostólico fazia com que os cristãos pululassem por
todas as partes, e em todas as partes estava quem? Sim, o Império Romano. Em
geral, os cristãos eram bem tolerados, dado seu caráter inicialmente pacifista,
mas eram tempos rudes, e as perseguições eram extremamente cruéis, com muito
sangue escorrendo, incluindo muita tortura. Em uma situação dessas, era muito
difícil dar uniformidade à doutrina, que acabava sendo contaminada pela cultura
de cada canto onde se instalasse uma igreja. Sendo assim, o tecido doutrinário
cristão foi se transformando em uma colcha de retalhos, maximizada pela
dificuldade de comunicação entre seus múltiplos centros, ainda que houvesse uma
estrutura hierárquica já bastante rígida em seus alicerces. Afinal de contas,
também os bispos e papas eram alvo de perseguição nos momentos de crise, e
muitas vezes eles precisavam procurar ficar ocultos.
Entretanto, uma história cheia de elementos lendários
mudaria para sempre o curso do Cristianismo e, por extensão, do pensamento. Em
306, Constantino torna-se césar, e, desde então, foi concentrando mais e mais
poder em suas mãos. Em 313, após uma suposta experiência mística*, expede o
Édito de Milão, onde dá liberdade de culto para todos os habitantes do império,
dando fim à possibilidade de novas perseguições. Com isso, os cristãos puderam
abrir comunicação mais franca e assumida.
É óbvio que Constantino foi tomado como um santo pela época,
uma espécie de libertador. Com isso e mais um pouco, ele teve bastante
influência nos destinos da igreja, que ficou definitivamente catalisada pelo
Primeiro Concílio de Niceia, aquele que eu mencionei logo acima. Estando
notavelmente fragmentada, a dogmática cristã se encontrava ameaçada em sua
unidade. Constantino percebeu que isso não era um problema meramente religioso,
mas que podia se estender à manutenção política. Fundamentalmente, a resolução
de que se Cristo era ou não consubstancial ao Pai** não faria o preço da saca
de especiaria mudar, mas como os cristãos passaram a habitar cada vez mais os
palacetes reais, o imperador achou interessante tirar proveito político da
situação, e patrocinou a realização do concílio, reunindo, hospedando,
transportando os bispos de todo o mundo onde houvesse cristãos e,
principalmente, dirigindo os seus trabalhos.
Somente para esclarecer, um concílio (que tem a mesma origem
etimológica da palavra conselho) é a
reunião de bispos com o objetivo de decidir dogmas e doutrinas controversas, e
somente a partir de Niceia ganha um caráter ecumênico, ou seja, que se estende
por todo o mundo. É bem verdade que outras reuniões de caráter doutrinário
foram realizadas anteriormente. Entretanto, elas sempre se deram em âmbito
local, por todos os motivos que listei mais para cima. Este formato se deu por
imitação do Concílio de Jerusalém, descrito na própria Bíblia nos Atos dos
Apóstolos (At 15), onde uma decisão para fins de uso da circuncisão aos novos
convertidos foi discutida em uma reunião com a então incipiente comunidade
cristã.
Embora seja muito difícil duvidar da influência de
Constantino na realização do concílio, afirmar que ele influenciou as decisões
doutrinárias é algo que não farei. Diz-se que este concílio decidiu o cânon
bíblico, dizendo o que era válido entre os livros que compunham seu totus, mas isso é um erro. São muitas
colocações feitas com relação a Constantino que não possuem rigor histórico,
nem a favor, nem contra, e não vou entrar na pilha de fazê-lo eu. Sua pauta
tinha mais a ver com aparar divergências que podiam produzir dissensos
populacionais do que propriamente de temas teológicos, como seria a
determinação do cânon.
E o grande tema, doutrinariamente falando, foi a questão da
homoousia já mencionada. A faceta política dessa contenda tem a ver com o
sacerdote Ário, um dos presbíteros de Alexandria, que negava a divindade de
Jesus e formou um bom número de seguidores. Vencido no concílio, foi
excomungado e exilado. Continuou debatendo pela validade de seus argumentos,
até ser readmitido pelo imperador e tendo sua excomunhão revertida. Pouco tempo
depois foi encontrado morto, alguns dizendo ser castigo dos céus, outros
envenenamento.
Outra resolução foi relacionada ao Cisma Meleciano,
ocasionado pelo patriarca Melécio, que aplicava rigor excessivo contra os
arrependidos de apostasia, algo muito comum nos tempos de perseguição. Achava
que eram relapsos que não tinham coragem de sustentar a própria fé, o que
partia desde as altas hierarquias. Isso fez com que ele criasse uma hierarquia
própria em seu patriarcado. Os padres conciliares foram mais amenos com relação
a Melécio. Mantiveram seu patriarcado, impedindo-o, no entanto, de ordenar
novos clérigos, e colocando como necessária a revalidação das ordenações feitas
por ele.
Além dessas provisões mais importantes, muitas miudezas
foram deliberadas, tipo proibir os fiéis de ajoelhar durante o Pentecostes, e
desmistificando um pouco da influência de Constantino, podemos chegar à sua
importância filosófica, porque foi a primeira vez que a igreja se reuniu de
fato e sem impedimentos para determinar seus caminhos doutrinários, o que
determinou a rota do pensamento a partir de então. Aliado a uma aproximação
muito forte com o poder central, é a partir deste marco que a Filosofia tem uma
guinada, inclusive com a chancela oficial do Estado, o que só se solidificou
daí para frente, em especial quando o Imperador Teodósio fez o Cristianismo
saído do Concílio de Niceia como religião oficial de Roma, em 380.
Quando nós pensamos nas novidades da Filosofia Medieval,
temos o teocentrismo em mente logo de cara. Muito embora eu já tenha escrito um
longo
texto onde desembrulho a visão de monotemática exclusiva nesse período, é
importante observar as confluências e as mudanças de paradigma que ocorreram na
transição entre ambos os períodos históricos.
É preciso observar que as antigas escolas helenistas já
traziam consigo muitas das coisas que serão absorvidas pelo Cristianismo, em
especial com os estoicos,
com os cínicos
e, em certa medida, com os ecléticos.
Sempre lembrando que todas essas escolas traziam uma ideia de desprendimento do
mundo pela via da desimportância da articulação do mundo com a subjetividade de
cada um, nota-se que a ideia de transitoriedade da vida, cujo objetivo é a
preparação para um além-mundo, usa dos mesmos recursos de resiliência à dor, a
passagem do destino a um segundo plano e uma escolha ética pela fé, no que vão
divergir frontalmente dos céticos,
que optam pela supressão dos juízos acerca da verdade. Para a nova corrente, é
imprescindível uma verdade do modelo emunah,
baseada mais na confiança no discurso do que propriamente na verificabilidade
(sobre isso, redigi
um texto que os convido a ler).
Embora existam esses pontos em comum, não estaríamos falando
em uma guinada na história filosófica se não existissem muitos pontos de
inflexão no então novo pensamento. Uma das mudanças de paradigma mais
expressivas foi o reconhecimento da fé como fonte cognitiva. De fato, até hoje
compreendemos que não há uma fonte alternativa para se falar em uma
transcendência que não seja pela via da fé. Não faz nenhum sentido colocar uma
Bíblia na frente dos olhos e querer ler nela histórias literais. É muito
diferente fazer essa leitura de um ponto de vista meramente técnico ou imbuído
de um espírito de que lá está a palavra de uma divindade. Dessa forma, há uma
completa mudança de visão não só da maneira como as pessoas se relacionam com
seus deuses, mas como se relacionam com o mundo. Sendo assim, a Filosofia ganha
um viés novo, escapadiço à objetividade da razão e buscando uma nova lógica.
Além disso, a própria História ganha um caráter linear e
envelopado, cujo princípio está na criação do universo e que se encerra no
Apocalipse. Entretanto, o desaparecimento da História se dá unicamente no plano
material, e há uma continuidade da existência que vai para além da História,
com a vida eterna em uma dimensão metafísica, onde o sentido de ciclos das filosofias
orientais perde a razão de ser e a pouca importância que os helênicos davam à
questão passa a ter relevo. A História é, para a Filosofia Medieval, como um
caminho, cujo propósito é um supremo bem meio que semelhante ao que nos falava
Platão. Só que, neste caso, esse bem se personaliza na figura de um deus
assemelhado a um pai, tanto para o afeto, quanto para o castigo.
No plano da Ética, há uma mudança muito significativa dos
valores, com a simplicidade e a alteridade ganhando um estatuto de ferramentas
salvíficas. Sabemos que os gregos tinham no heroísmo um propósito de vida, que
vira de ponta-cabeça a partir da lógica cristã. Não é mais aquele capaz de
grandes feitos o que consegue seus objetivos, mas aquele que melhor se adapta à
vida comunitária, vendo no outro alguém com tanto valor quanto a si próprio.
E, para não ficar muito cansativo, muda muito a questão dos
sentimentos, mais especialmente do amor. Tínhamos na Antiguidade Clássica uma
ênfase no amor em sua dimensão erótica, que dependia de corpos para acontecer,
e que desembocava em uma ascensão dos sentimentos. Porém, o Cristianismo propõe
um novo modelo, que vai refletir no pensamento filosófico. O amor emana do
próprio Deus, e, portanto, não tem um sentido elevatório como quer Platão, mas
sim de doação divina, o que lhe dá um caráter de gratuidade impossível no
contexto do Eros. Isso tira os limites deste amor, que recebe o nome de ágape,
uma novidade em termos de relação com o divino, já que os deuses gregos e
romanos eram de um modelo completamente distinto, muito mais semelhantes a
homens.
Estes e outros fatores fizeram com que o estudo filosófico
se dirigisse ao fenômeno religioso, e por lá foi mantido por cerca de mil anos.
Constantino não oficializa o cristianismo, mas lhe dá pleno apoio, e com isso a
instituição se torna poderosíssima, que acabou transcendendo o próprio poder
temporal. Mais tarde, como signo desse poder, muito acabou por se impor ao
pensamento, especialmente no período inquisitório, mas isso é outro assunto,
para outro momento. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Pouco nós temos de verdadeiramente fiável para nos relatar o
que foi o Concílio por dentro, especialmente a questão da influência de Constantino.
O principal narrador é Eusébio de Cesareia, que tinha uma visão particularmente
parcial, e sua obra é, na verdade, um panegírico. Mas é possível filtrar uma
boa quota de informações relevantes.
EUSÉBIO. Vida de
Constantino. Gredos: Madri, 1994.
* Homoousia é um termo grego que significa da mesma substância. A controvérsia
ariana dizia respeito ao entendimento de que o Filho não tinha a mesma
substância do Pai, ou seja, era um homem especialmente abençoado, mas sem a
essência divina. A briga toda era essa.
** Diz-se que Constantino, às vésperas de uma decisiva
batalha contra seu opositor Maxêncio, sonhou com uma cruz resplandecente, onde
era possível ler a frase “com este sinal vencerá”. Mandou pintar uma cruz nos
escudos de seus soldados e obteve uma vitória acaçapante.
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