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segunda-feira, 17 de maio de 2021

Sobre os princípios racionais e nossa mania de classificar

Olá!

Tudo bem com vocês? Olha, eu lancei há bem pouco tempo atrás minha postagem comemorativa de dez anos deste humilde blog, e até que o número de visualizações está acima da média. Para quem gosta de listas, o endereço é este, e lá tem de tudo um pouco: dos meus textos, de Filosofia, de futebol, comida, livros e lojas, entre outros badulaques e penduricalhos.

Está tudo lá para se concordar ou achincalhar, desde que com o devido respeito. Afinal, nada há mais de opinativo na vida do que listas. Eu pergunto para Joãozinho as comidas que ele mais gosta e lá vem feijoada, churrasco e chocolate. Mariazinha discorda dizendo que doce não é comida, e Joãozinho reage perguntando por onde Mariazinha come o chocolate. Não quero criar nenhum tipo de caso, nem mesmo entre meus estudados hipotéticos, mas, como eu disse no próprio corpo do texto, o ser humano tem uma sanha classificatória combinada com indolência elaborativa. Não se assuste, todo mundo é assim em alguma medida. Isso parte da nossa capacidade de raciocinar.

Mas não deveria ser exatamente o inverso? Bem, na parte da preguiça talvez, mas mesmo ela tem sua razão de ser. Quando utilizamos listas e classificações, estamos preenchendo o barramento de informações que utilizamos nos nossos pensamentos, ou, em outras palavras, estamos trazendo informações de referência para a memória. Nem sempre estamos seguros quando construímos nós mesmos esse processo, e por isso recorremos a ajudinhas. A coisa cresce ainda mais quando lembramos das vantagens evolutivas em se copiar processos bem sucedidos, especialmente no quanto isso facilita nossa adaptação ao meio. Já falei sobre isso várias vezes, podem ler este texto aqui para ficar mais claro.

Isso tudo faz parte do jogo da razão, considerada nosso grande distintivo das demais espécies, ainda que muitas vezes não pareça. Na própria origem da palavra já podemos pegar umas dicas. Vem de ratio, palavra latina que significa “dividir”, e, por extensão, “calcular”. Vejam: palavra como racionar ou rateio carregam também consigo esse mesmo sentido, o de distribuir adequadamente um objeto. Fazemos exatamente isso quando raciocinamos, ainda que inconsciente e automaticamente: dividimos os problemas em partes compreensíveis, classificamos as separações e concatenamos todas as partes de maneira lógica. Raciocínio não é muito mais do que isso e Descartes explica.

É claro que, falando assim, tudo parece mais simples do que verdadeiramente é. Há regras a reger o pensamento, de modo que não extraiamos meras abobrinhas do pomar de nosso patrimônio mental. Essas normas não são aplicáveis cem por cento do tempo, e, quando estamos só nos defrontando com os absurdos do dia-a-dia, não há muito compromisso lógico, mas quando estando proposicionando, aí sim é de rigor que o raciocínio tenha balizas, ou, melhor dizendo, princípios.

O primeiro deles é o princípio da identidade, que é resumido classicamente com a sentença A=A. Ou seja, qualquer coisa é igual a si mesma: Joãozinho é Joãozinho, Mariazinha é Mariazinha, malandro é malandro, mané é mané. Em um primeiro olhar, parece a assertiva mais estúpida de todos os tempos. Mas há um verdadeiro oceano de justificativas por trás de axioma tão aparentemente singelo.

A primeira coisa a pensar é a seguinte: por que o nosso costumeiro RG é também chamado de cédula de identidade? Ora, porque ela identifica uma pessoa, e isso significa descrever uma série de características que são próprias dela e que a tornam única. Neste documento, existe um conjunto de informações que pretendem tornar seu portador um indivíduo único. Data de nascimento, nome dos pais, local de nascimento e digital do polegar são dados que, somados, são irrepetíveis, e por esse motivo fazem com que você possa ser identificado com segurança. Identificar, portanto, significa que a descrição de um cidadão corresponde a ele mesmo, tornando-o único e distinguível de todos os demais. Idem, o étimo da palavra, significa 'o mesmo'. Você é você, seja em carne e osso, seja documentalmente – concreta e abstratamente.


Essa propriedade de identificação, por conseguinte, faz com que seja possível tornar único qualquer objeto dentro de qualquer relação. É possível mudar os referentes, mas o objeto permanecerá o mesmo. Quando eu falo em São Paulo, Terra da Garoa, Capital da Solidão, cidade mais populosa do Brasil, terra da gastronomia, túmulo do samba, território nas coordenadas tal e tal, cidade-sede de um time chamado Nacional, pelo princípio da identidade, estou falando sempre da mesma coisa, possuidora da mesma identidade, o que a torna única entre todas as cidades do mundo. As variações nas designações são uma mera questão de sinonímia, e não de troca de essência. E é obedecendo este princípio que conseguimos estabelecer relações racionais. Imagine se falássemos de São Paulo sem ter exatamente sua identidade. Como saberíamos qual passagem comprar, como poderíamos saber do seu PIB, do seu IDH, como poderíamos nos situar no espaço se não temos elementos para identificá-la firmemente? Portanto, dizer que A=A não é um mero papo de malucos, e sim a síntese de uma parte de qualquer processo de racionalização, que busca isolamento de partes. Como eu isolo uma parte se não tenho como a identificar seguramente?

Só que o princípio da identidade sozinho não carrega o piano da retidão lógica de um raciocínio. O princípio da não contradição é quase uma derivação do princípio da identidade, que, de certa forma, deixá-lo-ia inválido se não existisse. Resumidamente, diz que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo, ou, melhor dizendo, não é possível que se obtenha verdade de duas afirmações contraditórias ao mesmo tempo e na mesma relação.

O processo em que imputamos atributos é chamado de predicação. Lembra daquela história de sujeito e predicado nas aulas de português? É exatamente isso: alguém recebe qualificações, e essas qualificações devem seguir alguns critérios para atender a um bom raciocínio. O principal deles é regido pelo princípio em tela. Não é possível predicar um sujeito com atributos contraditórios, não é possível ser e não ser ao mesmo tempo. Vamos para os exemplinhos, que sempre são mais didáticos:

No momento que estou digitando este texto, vejo pelo canto dos olhos meu celular transmitindo o jogo em que meu pobre Nacional vai levando sua biaba do Noroeste de Bauru. Algumas situações – para que eu esteja digitando o texto, é necessário que o computador esteja ligado, idem com o celular que está transmitindo a contenda. Eles não podem estar ligados e desligados ao mesmo tempo. Se o Nacional está perdendo do Noroeste, ele não pode estar ganhando. Não se ganha e perde ao mesmo tempo. Pode até ser que o Ferrinho vire o jogo, mas não temos aí a mesma relação temporal. Também é possível que o pessoal da bocha do Naça tenha aproveitado a viagem e esteja fazendo o resultado oposto contra os velhinhos do Norusca. O resultado é oposto, mas não há contradição, porque a relação não é a mesma: uma coisa é o jogo de futebol, outra é o de bocha.

Trocando em miúdos, não é possível que uma proposição seja verdadeira e falsa ao mesmo tempo, ou que uma predicação e sua respectiva negação sejam ambas verdadeiras. Uma proposição do tipo p ^~p é o que nós chamamos de contradição, e ela não nos diz nada sobre a realidade, assim como uma tautologia também não diz. Enquanto na tautologia todo resultado é verdadeiro, na contradição ele sempre será falso. Quando eu digo que “vou assistir o jogo do Nacional OU não vou assistir o jogo do Nacional”, isso sempre terá como resultado a verdade proposicional, e por isso é o típico argumento tolo, que não está errado, mas que não acrescenta nada ao nosso conhecimento. Já se eu digo que “vou assistir o jogo do Nacional E não vou assistir o jogo do Nacional”, tenho um argumento impraticável, cujo resultado será sempre falso. As regras de raciocínio não permitem que as operações mentais lógicas fujam de sua função de espelhar a realidade, mesmo que seja a nível abstrato, e este princípio descreve exatamente essa impossibilidade.

Bom, sabemos agora que um objeto qualquer não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Mas além dessas duas hipóteses, há uma terceira? É possível que algo seja mais ou menos verdadeiro, ou razoavelmente falso? A resposta é não. Pelas leis do razão, as proposições carregam apenas dois valores de verdade possíveis, e este é o chamado princípio do terceiro excluído. É assim: se eu afirmo que estou na Comendador Souza vendo um jogo do Nacional, ou estou de verdade, ou não estou. Pode-se até tentar uma gracinha, do tipo dizer que estou bem no portão de entrada, nem para dentro, nem para fora. É só uma questão de critério para derrubar a armadilha: se eu considero que o portão faz parte do clube, então tenho uma verdade; se não, uma falsidade, e pronto. Dificuldades com essa definição somente são possíveis em quebra-cabeças mentais do tipo gato de Schrödinger*, que refletem as dificuldades de compreensão da física de partículas e da mecânica quântica. Na realidade observável, as afirmações somente podem ser verdadeiras ou falsas.

É preciso muita calma nesta hora porque podemos ter a impressão de que a realidade é dicotômica, um enorme sim ou não, mas está longe de ser isso. O princípio do terceiro excluído não está preocupado em contemplar nuances dos fatos e dos acontecimentos, e sim de assegurar que uma proposição somente tenha dois caminhos possíveis: ser verdadeira ou ser falsa. Nestes tempos em que nos obrigam a tomar posições com base em polos opostos, qualquer declaração no sentido de que somente há duas posições possíveis na própria interpretação da realidade torna-se uma justificativa para forçar a aceitação das falsas dicotomias. Cuidado, isso é burro. Toda realidade pode ser quebrada em inúmeros pedacinhos, e o conjunto deles não demonstra que só existem dois lados (principalmente em Política).

Pois então. Esses três princípios agem em contiguidade e dependência, de maneira a se articular mecanicamente. Na verdade, é como se o princípio da identidade já contivesse, em si mesmo, os outros dois, que nada mais seriam que seus corolários. E, no fim das contas, não nasce das formulações modernas ou contemporâneas, mas do poema ontológico de Parmênides, ainda no século VI aC, onde se dizia que “o Ser é e não pode não-ser; o não-ser não é e não pode Ser de modo algum”. Notem que aí já está contido explicitamente o princípio da identidade e o da não-contradição, e tacitamente está o do terceiro excluído. Mais tarde, Aristóteles vai sintetizá-los de forma mais explícita em sua obra sobre a Lógica, e acabar por consagrando essa teoria para os tempos pósteros.

Mais adiante, um novo item foi incorporado à teoria clássica, o princípio da razão suficiente, também chamado de princípio da causalidade. Bem sinteticamente, nada mais é do que dizer que todos os fenômenos que acontecem no universo tem sua razão de ser por conta de uma longa cadeia de causas e efeitos, que se interconectam de modo a tornar a realidade como ela é. A função do raciocínio seria enxergar estes liames entre os diferentes objetos e acontecimentos. Se as coisas são como são, há uma razão que é suficiente para que elas sejam dessa forma, seja em âmbitos bastante particulares, seja em visões mais macrocósmicas, estendidas por longos períodos de tempo. Confuso?

Já que fomos de Nacional até agora, vamos continuar de Nacional. Dentre os times profissionais da Capital, ele é certamente o menor**. Possui uma história bacana, ligada à estrada de ferro e aos primeiros movimentos pela fundação do futebol no Brasil, mas nunca pode ser considerado um dos grandes, nem mesmo no passado, como a Portuguesa em São Paulo ou o América no Rio. Quando entra em campo, não assusta os adversários com o barulho de sua torcida, porque ela praticamente não há. Até mesmo por isso, costuma-lhe ser indiferente jogar em casa ou fora dela. Quando enfrenta adversários em melhor situação, como é o caso do Noroeste, coirmão na origem ferroviária, joga fechadinho lá atrás, esperando um contragolpe que lhe permita alguma chance melhor de vitória. Isso tudo posto, podemos pinçar um lance isolado e olhar para o seu todo. Uma bola espirrada vai parar na zona morta e é alcançada pelo lateral-direito, que tenta uma bola espichada para a cabeça de área, na esperança de que o lépido atacante de seu time consiga se livrar da marcação e tentar vencer o goleiro. No seu ímpeto incontido, vence o zagueiro que lhe funga no cangote e sai em direção ao gol, e tenta pegar o goleirão rival desprevenido, mandando uma bola por cobertura. A intenção é magnífica, mas a falta de habilidade faz com que a bola vá parar atrás da arquibancada de fundo, para desespero da comissão técnica e gáudio dos gandulas.

Pintado o quadro, vamos ver as relações de causalidade entre diversos fatos. A bola  perdida na arquibancada foi consequência de um chute mal dado. Este foi consequência de um lançamento vindo da defesa, que foi motivado por uma sobra, que foi causada por um ataque mal sucedido do adversário. Poderíamos regressar ab ovo, até o início da partida ou mesmo antes. A coisa podia ser vista por outro ângulo, um pouco menos restrito à partida em si. O Nacional enfrenta o Noroeste na terceira divisão paulista porque foi rebaixado da segunda em 2019. Está disputando as divisões inferiores porque não possui um orçamento comparável aos dos manda-chuvas, porque seu quadro de sócios não é grande, e porque os clubes associativos já não atraem mais tanta gente, porque as comodidades modernas fazem haver uma academia em cada esquina, porque a cultura da imagem induz as pessoas a ter corpos perfeitos, porque isso significa consumo permanente, porque esse é o motor do sistema capitalista, e de porque em porque voltaremos até o surgimento do homo sapiens, ou até mesmo antes. É possível radicalizar e ampliar ainda mais o horizonte: o Nacional está disputando sua partidinha porque os seres humanos gostam de futebol, porque são seres altamente sociáveis, porque existiam vantagens evolutivas em se agremiar, porque a compleição física humana não é grandemente privilegiada, porque há diferentes estratégias evolutivas, porque há diferentes seres surgidos na Terra, porque condições específicas de tempo e espaço fizeram surgir a vida no planetinha azul, porque houve um afastamento adequado do Sol, porque disposições físicas permitem os fenômenos de repulsão centrífuga e atração gravitacional, porque um belo dia surgiu um universo com todas essas características.

Daí para trás, ou temos uma causa incausada, como o Primeiro Motor Imóvel aristotélico ou uma divindade qualquer, ou a simples assunção de que há ainda mais causalidades que simplesmente não podemos conhecer, que nos cutuca a especular: o que há antes do Big Bang, por exemplo. Nossa ânsia é tocada por esse tipo de movimento – não gostamos de buracos no conhecimento, e queremos fechar toda a conta, sem facilidades para aceitar dúvidas. Mas, de toda forma, há toda uma cadeia que permite reconhecer o nexo causal que caracteriza a nossa realidade circunstante.

Falado tudo isso, podemos então notar que a ânsia classificatória é uma prerrogativa de quem busca o conhecimento, porque todos os elementos estão lá: as separações necessárias, as referências, as bases comparativas, e as balizas para que a racionalização seja mais segura. É quase uma bobagem achar que uma lista de dez comidas favoritas seja arcabouço para alguém averiguar a precisão das suas próprias preferências, mas lembremos que isso se repete quase inconscientemente, como acontece com a moda, por exemplo. E, além do mais, é divertido. Não é preciso fazer macerações filosóficas a cada vez que queremos simplesmente comparar as coisas que gostamos com as dos outros. A coisa só se complica quando queremos classificar pessoas, mas aí é conversa para outro momento. Fiquem à vontade para comparar as suas listas com as minhas, e bons ventos a todos!!!

Recomendações de leitura:

Para compreender os três primeiros itens, mais clássicos, é bom ir no velho estagirita.

ARISTÓTELES. Órganon. Bauru: Edipro, 2005.

Para uma visão mais ampla, englobando explicitamente o princípio da razão suficiente, recomendo o livro abaixo:

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982

* Não vou me arriscar aqui a tentar explicar aqui o experimento mental de Schrödinger. Melhor será recomendar um bom vídeo sobre o assunto: https://www.youtube.com/watch?v=k5jIYbf2cSo

** Não estou desconsiderando o pequeno Barcelona de Capela do Socorro. É que trata-se de uma agremiação que flutua entre o amadorismo e o profissionalismo, então a mesma acaba por ter menos tradição que times verdadeiramente amadores, como o Indiano ou o Parque da Mooca.

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