Olá!
Tudo bem com vocês? Olha, eu lancei há bem pouco tempo atrás
minha postagem comemorativa de dez anos deste humilde blog, e até que o número
de visualizações está acima da média. Para quem gosta de listas, o endereço é este,
e lá tem de tudo um pouco: dos meus textos, de Filosofia, de futebol, comida,
livros e lojas, entre outros badulaques e penduricalhos.
Está tudo lá para se concordar ou achincalhar, desde que com
o devido respeito. Afinal, nada há mais de opinativo na vida do que listas. Eu
pergunto para Joãozinho as comidas que ele mais gosta e lá vem feijoada,
churrasco e chocolate. Mariazinha discorda dizendo que doce não é comida, e
Joãozinho reage perguntando por onde Mariazinha come o chocolate. Não quero
criar nenhum tipo de caso, nem mesmo entre meus estudados hipotéticos, mas, como
eu disse no próprio corpo do texto, o ser humano tem uma sanha classificatória
combinada com indolência elaborativa. Não se assuste, todo mundo é assim em
alguma medida. Isso parte da nossa capacidade de raciocinar.
Mas não deveria ser exatamente o inverso? Bem, na parte da
preguiça talvez, mas mesmo ela tem sua razão de ser. Quando utilizamos listas e
classificações, estamos preenchendo o barramento de informações que utilizamos
nos nossos pensamentos, ou, em outras palavras, estamos trazendo informações de
referência para a memória. Nem sempre estamos seguros quando construímos nós
mesmos esse processo, e por isso recorremos a ajudinhas. A coisa cresce ainda
mais quando lembramos das vantagens evolutivas em se copiar processos bem
sucedidos, especialmente no quanto isso facilita nossa adaptação ao meio. Já
falei sobre isso várias vezes, podem ler este texto aqui
para ficar mais claro.
Isso tudo faz parte do jogo da razão, considerada nosso
grande distintivo das demais espécies, ainda que muitas vezes não pareça. Na
própria origem da palavra já podemos pegar umas dicas. Vem de ratio, palavra latina que significa
“dividir”, e, por extensão, “calcular”. Vejam: palavra como racionar ou rateio carregam também consigo esse mesmo sentido, o de distribuir
adequadamente um objeto. Fazemos exatamente isso quando raciocinamos, ainda que
inconsciente e automaticamente: dividimos os problemas em partes
compreensíveis, classificamos as separações e concatenamos todas as partes de
maneira lógica. Raciocínio não é muito mais do que isso e Descartes
explica.
É claro que, falando assim, tudo parece mais simples do que
verdadeiramente é. Há regras a reger o pensamento, de modo que não extraiamos
meras abobrinhas do pomar de nosso patrimônio mental. Essas normas não são
aplicáveis cem por cento do tempo, e, quando estamos só nos defrontando com os
absurdos do dia-a-dia, não há muito compromisso lógico, mas quando estando
proposicionando, aí sim é de rigor que o raciocínio tenha balizas, ou, melhor
dizendo, princípios.
O primeiro deles é o princípio
da identidade, que é resumido classicamente com a sentença A=A. Ou seja,
qualquer coisa é igual a si mesma: Joãozinho é Joãozinho, Mariazinha é Mariazinha,
malandro é malandro, mané é mané. Em um primeiro olhar, parece a assertiva mais
estúpida de todos os tempos. Mas há um verdadeiro oceano de justificativas por
trás de axioma tão aparentemente singelo.
A primeira coisa a pensar é a seguinte: por que o nosso
costumeiro RG é também chamado de cédula de identidade? Ora, porque ela
identifica uma pessoa, e isso significa descrever uma série de características
que são próprias dela e que a tornam única. Neste documento, existe um conjunto
de informações que pretendem tornar seu portador um indivíduo único. Data de
nascimento, nome dos pais, local de nascimento e digital do polegar são dados
que, somados, são irrepetíveis, e por esse motivo fazem com que você possa ser
identificado com segurança. Identificar, portanto, significa que a descrição de
um cidadão corresponde a ele mesmo, tornando-o único e distinguível de todos os
demais. Idem, o étimo da palavra,
significa 'o mesmo'. Você é você, seja em carne e osso, seja documentalmente –
concreta e abstratamente.
Essa propriedade de identificação, por conseguinte, faz com que seja possível tornar único qualquer objeto dentro de qualquer relação. É possível mudar os referentes, mas o objeto permanecerá o mesmo. Quando eu falo em São Paulo, Terra da Garoa, Capital da Solidão, cidade mais populosa do Brasil, terra da gastronomia, túmulo do samba, território nas coordenadas tal e tal, cidade-sede de um time chamado Nacional, pelo princípio da identidade, estou falando sempre da mesma coisa, possuidora da mesma identidade, o que a torna única entre todas as cidades do mundo. As variações nas designações são uma mera questão de sinonímia, e não de troca de essência. E é obedecendo este princípio que conseguimos estabelecer relações racionais. Imagine se falássemos de São Paulo sem ter exatamente sua identidade. Como saberíamos qual passagem comprar, como poderíamos saber do seu PIB, do seu IDH, como poderíamos nos situar no espaço se não temos elementos para identificá-la firmemente? Portanto, dizer que A=A não é um mero papo de malucos, e sim a síntese de uma parte de qualquer processo de racionalização, que busca isolamento de partes. Como eu isolo uma parte se não tenho como a identificar seguramente?
Só que o princípio da identidade sozinho não carrega o piano
da retidão lógica de um raciocínio. O princípio
da não contradição é quase uma derivação do princípio da identidade, que,
de certa forma, deixá-lo-ia inválido se não existisse. Resumidamente, diz que
uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo, ou, melhor
dizendo, não é possível que se obtenha verdade de duas afirmações
contraditórias ao mesmo tempo e na mesma relação.
O processo em que imputamos atributos é chamado de
predicação. Lembra daquela história de sujeito e predicado nas aulas de
português? É exatamente isso: alguém recebe qualificações, e essas
qualificações devem seguir alguns critérios para atender a um bom raciocínio. O
principal deles é regido pelo princípio em tela. Não é possível predicar um
sujeito com atributos contraditórios, não é possível ser e não ser ao mesmo
tempo. Vamos para os exemplinhos, que sempre são mais didáticos:
No momento que estou digitando este texto, vejo pelo canto
dos olhos meu celular transmitindo o jogo em que meu pobre Nacional vai levando
sua biaba do Noroeste de Bauru. Algumas situações – para que eu esteja
digitando o texto, é necessário que o computador esteja ligado, idem com o
celular que está transmitindo a contenda. Eles não podem estar ligados e
desligados ao mesmo tempo. Se o Nacional está perdendo do Noroeste, ele não
pode estar ganhando. Não se ganha e perde ao mesmo tempo. Pode até ser que o Ferrinho
vire o jogo, mas não temos aí a mesma relação temporal. Também é possível que o
pessoal da bocha do Naça tenha aproveitado a viagem e esteja fazendo o
resultado oposto contra os velhinhos do Norusca. O resultado é oposto, mas não
há contradição, porque a relação não é a mesma: uma coisa é o jogo de futebol,
outra é o de bocha.
Trocando em miúdos, não é possível que uma proposição seja
verdadeira e falsa ao mesmo tempo, ou que uma predicação e sua respectiva
negação sejam ambas verdadeiras. Uma proposição do tipo p ^~p é o que nós chamamos de contradição, e ela não nos diz nada
sobre a realidade, assim como uma tautologia também não diz. Enquanto na
tautologia todo resultado é verdadeiro, na contradição ele sempre será falso.
Quando eu digo que “vou assistir o jogo do Nacional OU não vou assistir o jogo
do Nacional”, isso sempre terá como resultado a verdade proposicional, e por
isso é o típico argumento tolo, que não está errado, mas que não acrescenta
nada ao nosso conhecimento. Já se eu digo que “vou assistir o jogo do Nacional
E não vou assistir o jogo do Nacional”, tenho um argumento impraticável, cujo
resultado será sempre falso. As regras de raciocínio não permitem que as
operações mentais lógicas fujam de sua função de espelhar a realidade, mesmo
que seja a nível abstrato, e este princípio descreve exatamente essa
impossibilidade.
Bom, sabemos agora que um objeto qualquer não pode ser
verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Mas além dessas duas hipóteses, há uma
terceira? É possível que algo seja mais ou menos verdadeiro, ou razoavelmente
falso? A resposta é não. Pelas leis do razão, as proposições carregam apenas
dois valores de verdade possíveis, e este é o chamado princípio do terceiro excluído. É assim: se eu afirmo que estou na
Comendador Souza vendo um jogo do Nacional, ou estou de verdade, ou não estou.
Pode-se até tentar uma gracinha, do tipo dizer que estou bem no portão de
entrada, nem para dentro, nem para fora. É só uma questão de critério para
derrubar a armadilha: se eu considero que o portão faz parte do clube, então
tenho uma verdade; se não, uma falsidade, e pronto. Dificuldades com essa
definição somente são possíveis em quebra-cabeças mentais do tipo gato de Schrödinger*,
que refletem as dificuldades de compreensão da física de partículas e da
mecânica quântica. Na realidade observável, as afirmações somente podem ser
verdadeiras ou falsas.
É preciso muita calma nesta hora porque podemos ter a impressão
de que a realidade é dicotômica, um enorme sim ou não, mas está longe de ser
isso. O princípio do terceiro excluído não está preocupado em contemplar
nuances dos fatos e dos acontecimentos, e sim de assegurar que uma proposição
somente tenha dois caminhos possíveis: ser verdadeira ou ser falsa. Nestes
tempos em que nos obrigam a tomar posições com base em polos opostos, qualquer
declaração no sentido de que somente há duas posições possíveis na própria
interpretação da realidade torna-se uma justificativa para forçar a aceitação
das falsas
dicotomias. Cuidado, isso é burro. Toda realidade pode ser quebrada em
inúmeros pedacinhos, e o conjunto deles não demonstra que só existem dois lados
(principalmente
em Política).
Pois então. Esses três princípios agem em contiguidade e
dependência, de maneira a se articular mecanicamente. Na verdade, é como se o
princípio da identidade já contivesse, em si mesmo, os outros dois, que nada
mais seriam que seus corolários. E, no fim das contas, não nasce das
formulações modernas ou contemporâneas, mas do poema ontológico de Parmênides,
ainda no século VI aC, onde se dizia que “o Ser é e não pode não-ser; o não-ser
não é e não pode Ser de modo algum”. Notem que aí já está contido
explicitamente o princípio da identidade e o da não-contradição, e tacitamente
está o do terceiro excluído. Mais tarde, Aristóteles vai sintetizá-los de forma
mais explícita em sua obra sobre a Lógica, e acabar por consagrando essa teoria
para os tempos pósteros.
Mais adiante, um novo item foi incorporado à teoria
clássica, o princípio da razão
suficiente, também chamado de princípio da causalidade. Bem sinteticamente,
nada mais é do que dizer que todos os fenômenos que acontecem no universo tem
sua razão de ser por conta de uma longa cadeia de causas e efeitos, que se
interconectam de modo a tornar a realidade como ela é. A função do raciocínio
seria enxergar estes liames entre os diferentes objetos e acontecimentos. Se as
coisas são como são, há uma razão que é suficiente para que elas sejam dessa
forma, seja em âmbitos bastante particulares, seja em visões mais macrocósmicas,
estendidas por longos períodos de tempo. Confuso?
Já que fomos de Nacional até agora, vamos continuar de
Nacional. Dentre os times profissionais da Capital, ele é certamente o menor**.
Possui uma história bacana, ligada à estrada de ferro e aos primeiros
movimentos pela fundação do futebol no Brasil, mas nunca pode ser considerado
um dos grandes, nem mesmo no passado, como a Portuguesa em São Paulo ou o
América no Rio. Quando entra em campo, não assusta os adversários com o barulho
de sua torcida, porque ela praticamente não há. Até mesmo por isso, costuma-lhe
ser indiferente jogar em casa ou fora dela. Quando enfrenta adversários em melhor
situação, como é o caso do Noroeste, coirmão na origem ferroviária, joga
fechadinho lá atrás, esperando um contragolpe que lhe permita alguma chance
melhor de vitória. Isso tudo posto, podemos pinçar um lance isolado e olhar
para o seu todo. Uma bola espirrada vai parar na zona morta e é alcançada pelo
lateral-direito, que tenta uma bola espichada para a cabeça de área, na
esperança de que o lépido atacante de seu time consiga se livrar da marcação e
tentar vencer o goleiro. No seu ímpeto incontido, vence o zagueiro que lhe
funga no cangote e sai em direção ao gol, e tenta pegar o goleirão rival desprevenido,
mandando uma bola por cobertura. A intenção é magnífica, mas a falta de
habilidade faz com que a bola vá parar atrás da arquibancada de fundo, para
desespero da comissão técnica e gáudio dos gandulas.
Pintado o quadro, vamos ver as relações de causalidade entre
diversos fatos. A bola perdida na arquibancada foi consequência de um
chute mal dado. Este foi consequência de um lançamento vindo da defesa, que foi
motivado por uma sobra, que foi causada por um ataque mal sucedido do
adversário. Poderíamos regressar ab ovo,
até o início da partida ou mesmo antes. A coisa podia ser vista por outro
ângulo, um pouco menos restrito à partida em si. O Nacional enfrenta o Noroeste
na terceira divisão paulista porque foi rebaixado da segunda em 2019. Está
disputando as divisões inferiores porque não possui um orçamento comparável aos
dos manda-chuvas, porque seu quadro de sócios não é grande, e porque os clubes
associativos já não atraem mais tanta gente, porque as comodidades modernas
fazem haver uma academia em cada esquina, porque a cultura da imagem induz as
pessoas a ter corpos perfeitos, porque isso significa consumo permanente,
porque esse é o motor do sistema capitalista, e de porque em porque voltaremos
até o surgimento do homo sapiens, ou
até mesmo antes. É possível radicalizar e ampliar ainda mais o horizonte: o Nacional
está disputando sua partidinha porque os seres humanos gostam de futebol,
porque são seres altamente sociáveis, porque existiam vantagens evolutivas em
se agremiar, porque a compleição física humana não é grandemente privilegiada,
porque há diferentes estratégias evolutivas, porque há diferentes seres
surgidos na Terra, porque condições específicas de tempo e espaço fizeram
surgir a vida no planetinha azul, porque houve um afastamento adequado do Sol,
porque disposições físicas permitem os fenômenos de repulsão centrífuga e
atração gravitacional, porque um belo dia surgiu um universo com todas essas
características.
Daí para trás, ou temos uma causa incausada, como o Primeiro
Motor Imóvel aristotélico ou uma divindade qualquer, ou a simples assunção
de que há ainda mais causalidades que simplesmente não podemos conhecer, que
nos cutuca a especular: o que há antes do Big Bang, por exemplo. Nossa ânsia é
tocada por esse tipo de movimento – não gostamos de buracos
no conhecimento, e queremos fechar toda a conta, sem facilidades para
aceitar dúvidas. Mas, de toda forma, há toda uma cadeia que permite reconhecer
o nexo causal que caracteriza a nossa realidade circunstante.
Falado tudo isso, podemos então notar que a ânsia
classificatória é uma prerrogativa de quem busca o conhecimento, porque todos
os elementos estão lá: as separações necessárias, as referências, as bases
comparativas, e as balizas para que a racionalização seja mais segura. É
quase uma bobagem achar que uma lista de dez comidas favoritas seja arcabouço
para alguém averiguar a precisão das suas próprias preferências, mas lembremos
que isso se repete quase inconscientemente, como
acontece com a moda, por exemplo. E, além do mais, é divertido. Não é
preciso fazer macerações filosóficas a cada vez que queremos simplesmente
comparar as coisas que gostamos com as dos outros. A coisa só se complica quando queremos classificar pessoas, mas aí é conversa para outro momento. Fiquem à vontade para
comparar as suas listas com as minhas, e bons ventos a todos!!!
Recomendações de leitura:
Para compreender os três primeiros itens, mais clássicos, é
bom ir no velho estagirita.
ARISTÓTELES. Órganon. Bauru: Edipro, 2005.
Para uma visão mais ampla, englobando explicitamente o
princípio da razão suficiente, recomendo o livro abaixo:
CASTORIADIS, Cornelius. A
instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982
* Não vou me arriscar aqui a tentar explicar aqui o
experimento mental de Schrödinger. Melhor será recomendar um bom vídeo sobre o
assunto: https://www.youtube.com/watch?v=k5jIYbf2cSo
** Não estou desconsiderando o pequeno Barcelona de Capela
do Socorro. É que trata-se de uma agremiação que flutua entre o amadorismo e o
profissionalismo, então a mesma acaba por ter menos tradição que times
verdadeiramente amadores, como o Indiano ou o Parque da Mooca.
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