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segunda-feira, 4 de abril de 2016

Suspensão da descrença, o mecanismo que permite o incrível (para o bem e para o mal)

Olá!

Continuando nosso bate-papo sobre os “defeitinhos” de nossa mente, que permitem tão facilmente que sejamos vítimas de logros e empulhações, quero fazer referência, desta vez, a uma característica que nos permite fazer concessões a fatos que sabemos ser fantasiosos, mas dos quais não abrimos mão para obter as sensações que teríamos caso os mesmos fossem reais: a suspensão da descrença.


A suspensão da descrença é um mecanismo psicológico que ocorre quando, voluntariamente, soltamos as cordas que nos amarram à realidade para poder vivenciar com emoção uma experiência que sabemos ser fictícia. Vamos colocar as coisas nos seguintes termos, para logo de cara perceber as vantagens deste mecanismo: se não conseguíssemos suspender nosso descrédito, seria impossível (ou quase) apreciar a obra artística. A arte é invenção, é criação; é livre de se ater à dimensão do real, sendo sua principal função justamente a concreção daquilo que é imaginário. Se somente admitirmos a arte limitada ao possível, matá-la-emos de fome e de tédio. É como se limitássemos toda a literatura a biografias, toda a pintura a corpos e paisagens, toda a música ao fundeamento de uma poesia não-lírica, sem possibilidades metafóricas e alegóricas, quase sem abstração. Restaria a nós a pergunta: que graça teria a arte se não conseguíssemos nos desvencilhar da realidade?

Para compreender um pouco melhor o funcionamento da suspensão da descrença, vamos nos reportar ao filósofo Johann Herbart, um dos pioneiros da Filosofia da Mente, quando ainda nem se sonhava em existir uma disciplina com esse nome, e que foi um dos primeiros a dar base filosófica à nascente ciência da Psicologia, tanto que este alemão foi uma das fontes nas quais o pai da Psicanálise, Sigmund Freud, foi beber.

Herbart traz, pela primeira vez, uma noção de consciência na aprendizagem, incluindo um conceito de inconsciente onde ficariam depositados conhecimentos e experiências para aproveitamento ulterior. Esse processo se dá dinamicamente: a realidade se apresenta a uma mente de forma que ela forme sua própria estrutura de ideias, que vão se articulando até formar uma espécie de “desenho” psíquico, absolutamente particular. Por isso, a realidade é expressa na mente de um indivíduo por intermédio da sua própria interpretação da realidade. E essa estruturação não é estanque. Parte das representações pode não estar aflorada em um determinado momento, atravessando uma fronteira que divide a consciência do inconsciente. Esta fronteira foi chamada por Herbart de limiar da consciência, e o que vai além dela, o substrato inconsciente, foi denominado estado de tendência.

O indivíduo é totalmente passivo diante desse fluxo? Não! Por intermédio de sua vontade, o indivíduo pode mexer com o desenho psicológico que espelha a realidade apreendida. E a grande arma para fazer essa vontade se movimentar é a educação. Mas não vou tratar deste tema especificamente, bastando saber agora que a cognição pode ser realizada através da ligação de ideias e conceitos.

Segundo Herbart, a coisa acontece da seguinte forma: as ideias são formadas através de ligações entre pensamentos simples. Quando a concatenação entre eles faz sentido, as ideias se unem formando um todo mais complexo. Se não há sentido, há uma repulsa, afastando os conceitos expressos pelas ideias envolvidas. Percebam que haver repulsa não significa haver descarte, ou seja, as ideias permanecem na mente, mas não de forma associada. Se uma das ideias fica órfã, vai para o inconsciente, onde estará guardada até que seja completamente esquecida ou que faça sentido com outra ideia.

Vamos ao exemplo. Eu tenho um conceito bem definido do que é um ser humano (primeira ideia). Uma bela noite, sonho com uma criança que anda na minha cabeça (segunda ideia) com uma espada na mão (terceira ideia). Eu sei, através do meu conceito gravado, que, por menor que seja, uma menina não tem a menor possibilidade de ser tão pequena a ponto de poder caminhar em meu coco, ainda mais armada de uma bela peixeira. Ao acordar, resolvo facilmente o problema: continuo com meu conceito humano válido e jogo a menina assassina progressivamente para o estado de tendência, onde estará disponível para ser conectada com outra ideia que melhor a receba, se for o caso. No entanto, posso agir voluntariamente  para aproveitar o sonho e criar uma estorinha que caiba em uma HQ ou livro de ficção: a tal criança utiliza uma substância que a faz diminuir de tamanho, e, estando assim, pode usar sua espada para caçar eventuais piolhos escondidos no ninho de mafagafa da minha cabeça. Tudo isso é tolice, eu sei, mas percebam como eu introduzo uma quarta (o encolhimento pela substância) e uma quinta ideia (o saneamento capilar feito através de arma branca) que amarra as outras três, antes totalmente desconexas. Nada ganhou mais realidade; ganhou mais lógica. E a dinâmica comprova que minhas engrenagens mentais não são meramente passivas, tenho influência sobre elas também.

E agora vamos aplicar tudo isso aos mecanismos de crença. No final das contas, podemos perceber que a credibilidade não está ligada à capacidade de haver reflexo na realidade, mas em como uma lógica conexa é aplicável. E, para isso, é preciso que se usem bons argumentos e que a trama seja costurada direitinho. O filme Matrix, por exemplo, ou Blade Runner, são de tal forma bem amarrados e concatenados logicamente que nos fazem parar para pensar se não vivemos de fato em uma dimensão alternativa ou se somos replicantes. Não é preciso nenhum nó atado à realidade – a própria lógica do enredo é consistente com o universo que nos cerca. E faz com que admitamos essas hipóteses como possíveis. E assustadoras.

Isso posto, podemos perceber que, como parte do processo de aprendizagem, estes truques psíquicos são remanescentes das fantasias infantis, um tempo em que ainda não aprendemos a dimensionar corretamente o tamanho da realidade. A criança tem a capacidade de vivenciar o imaginário como se fosse uma dimensão concreta, e conseguimos manter o processo de suspensão da descrença por causa de um rabicho psicológico que ainda resta em nós. Em resumo, ainda sabemos colocar a realidade a parte porque aprendemos a fazer isso desde crianças.

Mas é óbvio que existe uma gradação e existem limites para a descrença. Percebam que a mídia utilizada pouco importa. Pode advir de um livro, de um filme, da presença cênica em uma peça teatral, de um videogame. Em uma história em quadrinhos ou desenho animado, minhas concessões serão muito maiores. Terei que aceitar que bichinhos falam, por exemplo. Mas mesmo assim é plenamente possível fazer concessões, novamente lembrando que o fator mais relevante é a lógica interna do que se conta. Ou seja, o que importa é o teor da história e o nível em que precisamos jogar o descrédito pelos ares.

Podemos observar o mecanismo de suspensão da descrença funcionando gradualmente. Mais especificamente, podemos exemplificar como o tamanho da abertura das concessões vai se alargando conforme uma obra de arte se afasta da realidade tangível. Como o cinema é a ferramenta em que mais facilmente a percebemos, vou mencionar quatro filmes e uma escolha genérica:

Que horas ela volta? – Neste filme, que retrata as mudanças de relação entre classes e o impacto que isso ocasiona nas antigas convicções sociais, não há uso da suspensão da descrença. Isso porque todas as situações do filme são críveis quando comparadas à vida real. Não há nada que não possamos enxergar ao observar nossa própria sociedade. Não há grandes heróis, nem vilões encarniçados. Não há situações improváveis, nem tampouco dores insuportáveis.

A encantadora de baleias – não há grandes necessidades de utilização da suspensão da descrença. O filme é todo construído em situações ponderáveis, em que a estrutura tribal de uma aldeia no litoral neozelandês começa a não encontrar eco no ethos presente e a defesa das tradições dos povos maoris vai, aos poucos, sucumbindo. Somente no final é necessário fazer alguma concessão, quando a menina protagonista realiza uma ação em pleno mar, que faz todo o sentido para o enredo, mas que não é facilmente acomodável à realidade.

Forrest Gump – Mesmo sendo ainda bastante realista, é um filme onde temos que abrir bem mais as permissões para aceitar de bom grado seu enredo. Não há grandes catástrofes nem cataclismas, monstros e homens voadores, mas há situações muito pouco prováveis, como nas corridas infinitas do protagonista e sua incrível capacidade de estar no lugar certo e na hora certa.

Matrix – Aqui, o bicho começa a pegar. Muito da ação já vai longínqua da realidade observável, com desvios de fenômenos observáveis essenciais para a própria proposta do filme. O filme ganha o jogo pelo fato de colocar diante de nós questionamentos existenciais extremamente intrigantes, cujo desenvolvimento necessita de instrumentos pouco críveis. A suspensão da descrença chega ao seu ápice usando sua principal virtude – estender a discussão filosófica para além do mundo que nos cerca.

Qualquer filme de herói – independentemente do enredo, e não estou dizendo que filmes baseados em personagens da Marvel ou DC não são legais, os mecanismos de suspensão precisam ser utilizados em seu nível máximo. Tudo é irreal: os poderes, as situações, mesmo a leis da física e da biologia são fortemente desafiadas nesse tipo de filme. Se formos levar em conta somente situações plausíveis, saímos do cinema em cinco minutos. Mutantes são comuns nestas histórias – representam poderes incomuns inatos, como a regeneração do Wolverine, os raios oculares do Ciclope. No mundo real, mutantes geralmente são aberrações que, quando sobrevivem, possuem sérias limitações. Outro fenômeno comum é a radioatividade causar benesses (Hulk, Homem Aranha). Em nosso planetinha de carne e osso, costumam causar câncer e outras lesões. Mas é exatamente isso que se busca suplantar abrindo parênteses para o descrédito – tornar uma história ficcional suportável.

Mas tem hora que não dá. Mesmo que tenhamos toda a boa vontade possível, roteiristas e argumentadores volta e meia passam do ponto, e não há cristão que consiga deixar passar pelos filtros algum fenômeno absolutamente sem nexo, totalmente descolado de qualquer realidade possível. Acho que a “forçação” de barra mais clássica da história do cinema é aquela em que o Super Homem voa acima da velocidade da luz pela órbita do planeta Terra, no sentido contrário da rotação. O objetivo era fazer o tempo voltar para trás e salvar sua amada. Tem muita coisa errada junta para aguentar. Primeiro: nada pode voar acima da velocidade da luz, é um limite da Física. Outra coisa: um super herói voando não é um corpo com carga magnética para atrair e modificar o curso de um corpo tão maior quanto um planeta. Mais: A fricção de um objeto voando a uma velocidade acima à da luz com a atmosfera provavelmente incendiaria tudo ao redor, inclusive o tal objeto. Mais: inverter a rotação da Terra causaria todo o tipo de caos possível em correntes marítimas, deslocamentos de ar e atividade vulcânica. Mais: o tranco que ocorreria no momento zero da inversão provavelmente impossibilitaria qualquer construção de permanecer em pé. Mais ainda: Quem disse que inverter a rotação do planeta faria com que o tempo voltasse atrás? Não há menor sentido em pensar nisso. Isso tudo sem contar com o tanto de descrença que já está suspensa – homem que voa, que veio de outro planeta, que tem raios nos olhos, que resiste a balas, e via discorrendo. Não há como não dizer que a brincadeira passou do limite, e o efeito disso é que passamos a chapinhar pelo terreno da chacota, tornando a obra ridícula.

Para fazer um arremate nessa parte conceitual, informo que o termo “suspensão da descrença” foi cunhado pelo escritor inglês Samuel Taylor Coleridge, que defendeu a necessidade de se utilizá-la não só para conseguir sorver uma obra literária com prazer, mas para que seja possível sublimar nossos princípios éticos e tendências filosóficas. Do contrário, faremos uma leitura toda crivada de prevenções, que, no final das contas, redundam em preconceito. É óbvio que não se torna possível extrair grande coisa de algo que nos enchemos de dedos para apreciar. Por mais que não acreditemos no que está exposto em um texto, é preciso dar uma chance ao mesmo para se expressar, e suspender o descrédito é a ferramenta que faz isso.

Bom... Ok. Falei em engodos da mente. E qual é o problema em suspender a descrença? Não seria nenhum, se não utilizássemos esse efeito para nos iludirmos com relação à própria realidade, escapando do âmbito da obra artística. E podemos perceber o uso da suspensão em dois momentos bastante comuns: nas teorias da conspiração e nas religiões.

No primeiro caso, podemos perceber que há sempre uma estrutura que coloca um agente malvadão X que quer causar um prejuízo Y para obter a vantagem Z. A mecânica é sempre uma só. O caso mais recente que eu me lembro é o da célebre fosfoetanolamina, que já tive a oportunidade dedebater. Vejamos: a indústria farmacêutica (X) faz lobby contra tal produto porque o mesmo é barato demais (Y) e as drogas quimioterápicas trazem lucros muito maiores (Z). Também há quem diga que Barack Obama é um agente do comunismo islâmico (?!?! – X) que quer destruir as bases do capitalismo liberal (Y) para implementar uma ditadura gaysista (Z)... Haja boa vontade, mas como essa bravata foi proferida por um guru de muita gente, então eles pensam que deve ser isso mesmo. Só suspendendo a descrença (e o juízo crítico) para dar bola a esse tipo de raciocínio. Só para corroborar: falta menos de um ano para acabar a gestão Obama e até agora a tal ditadura não foi implantada.

Com relação à Religião, o buraco é mais embaixo. É sabido que todo sistema religioso parte de um mito de criação, e daí em diante desenvolve suas teses e sua moral. Esses mitos se baseiam, essencialmente, em dois pilares: o universo observável pelo homem e a tradição oral. Algumas religiões permaneceram sem a transcrição da oralidade, outras foram reduzidas à escrita. Em ambos os casos, as elucubrações filosóficas vão dando origem a descobertas científicas que fazem progressivamente com que o mito se dissocie da realidade, e, neste caso, há duas saídas possíveis:

  1. O mito de criação é relativizado e interpretado à luz da realidade palpável;
  2. A realidade é desprezada.
Para o primeiro caso, a abertura da interpretação pode conduzir a explicações bastante razoáveis: o uso de linguagem metafórica, a dificuldade de interpretar fenômenos inobserváveis em tempos pretéritos, a variação ética das sociedades com o correr dos tempos. Já no segundo, ante a realidade que impossibilita a interpretação literal dos fatos, é preciso suspender a descrença nesta para estabelecer a crença em outra coisa. Sabemos que homens não surgem de braços direitos e mulheres de braços esquerdos de divindades; sabemos que não há uma ponte celestial de onde um casal primordial observou a Terra e desejou nela habitar; sabemos que não há um ovo cósmico; sabemos que cobras não falam e mulheres não nascem de costelas. Se não usamos o plano simbólico, temos que engolir uma interpretação que não condiz com nada observável. Toda regra religiosa é mantida sob observação estrita de seus ditames, não adiantando em nada que se prove o contrário. Nada faz mover as convicções de quem enfrenta a realidade em nome de uma disposição que se demonstra contraditória. Essa é a semente do fundamentalismo, o que é muito perigoso.

E, para finalizar, ficou fácil entender como algumas pessoas tomam por verdadeiras as previsões das buenas dichas que mencionei no texto sobre leitura fria. A história criada pode ser incrível, mas elas QUEREM ser enganadas, e há mecanismo mental que lhes permita dissociar os elementos criativos dos parâmetros da verdade. Continuem acompanhando essa série, porque esse fenômeno vai se melhor explicado.

Recomendações:

Seguem os filmes que mencionei na gradação acima. Todos são bons, e valem a pena ser vistos. Sugiro, inclusive, que sejam assistidos exatamente na ordem indicada. Peguem um caderninho e anotem cada uma das vezes em que uma situação seja implausível. A experiência será surpreendente.

MUYLAERT, Anna. Que horas ela volta? Filme. Brasil: Pandora, 2015. Colorido. 111 min.

CARO, Niki. A encantadora de baleias. Filme. Nova Zelândia: Fundo Neozelandês para Produção de Filmes, 2003. Colorido. 105 min.

ZEMECKIS, Robert. Forrest Gump – o contador de histórias. Filme. EUA: Paramount, 1994. Colorido. 140 min.

WACHOWSKI, Lana; WACHOWSKI, Lilly. Matrix. Filme. EUA: Warner Brothers, 1999. Colorido. 135 min.

Para saber mais sobre Johann Freidrich Herbart:

FERRARI, Márcio. Grandes pensadores: Johann F. Herbart. São Paulo: Nova Escola, 2004.

Agradeço à Camila por tentar eliminar os piolhos da minha cabeça. Essa menina sumiu mesmo. Se por ventura você vir este texto, entre em contato, mesmo que seja para retirar a foto. Tenho muitas saudades.

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