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segunda-feira, 2 de julho de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (14 – Filosofia da Religião)

Olá!


Ontem à noite acabou a luz. Foi uma piscada rápida, coisa de cinco minutos, no máximo. Como sempre, alguns transtornos: vamos acertar o relógio do micro-ondas, encher a cuba do filtro do aquário (defeito velho que nunca lembro de arrumar) e escrever boa parte deste texto novamente, por que só Cristo salva. Apesar da exiguidade deste lapso, deu tempo de recordar dos tempos de infância, quando os longos períodos em que faltava força me obrigavam a estudar sob a luz de velas. Alguns períodos eram realmente longos, como quando trocaram os postes de madeira da rua por artefatos de concreto. Deve ter levado uns dois dias para a completa empreita. De uma forma ou de outra, a luz voltava e, com ela, a normalidade. Pior era com os meus parentes do Paraná. Eles moravam em uma cidade a meio caminho entre Maringá e Umuarama, e energia elétrica era artigo de luxo. Não que fossem ricos ou pobres, era uma questão de cabeamento – simplesmente não existia. Final de campeonato era coisa para se ver no boteco que funcionava à guisa de rodoviária ou acompanhar pelo radinho de pilha mesmo. Desta forma, todas as vezes que viajávamos para lá a atração turística era a noite: o lampião de querosene com seu cheiro forte, competindo com o café coado na “calcinha da velha” e nada mais, além do papo no alpendre da casa toda de madeira. Era legal por quatro ou cinco dias, mas o costume urbano logo começava a cobrar seu preço.

A dependência da tecnologia me faz imaginar o que deve ter sido o surgimento de objetos como a lâmpada elétrica, ou o maravilhamento que foi ouvir a voz de um parente a milhas e milhas através de um telefone, ou a comoção de se andar em uma carroça sem cavalos. A base da tecnologia, a Ciência, tem a credibilidade dos grandes feitos e explica o mundo sem a necessidade de misticismos. São átomos, ondas, gravitações e magnetismos, substituindo os antigos humores de divindades e energias de entidades esotéricas, tudo bem sintetizado em fórmulas químicas e expressões matemáticas. No entanto, apesar de carregarem em seus bolsos celulares que contêm milhões de informações e funcionalidades, as pessoas continuam riscando a cara com sinais-da-cruz. Jogadores que têm carros com mais tecnologia embarcada do que um foguete do início da era espacial ajoelham e erguem os braços ao céu a cada gol marcado, agradecendo a Deus pelo sucesso, e não ao técnico, ao fisiologista, ao médico. Órgãos transplantados e marca-passos instalados não são suficientes para que o fiel deixe de consultar sua sina, seus búzios, suas runas com mais confiança que seu colesterol e triglicérides. Em um mundo cercado de ciência por todos os lados, ainda há uma maioria da população que crê no que não vê, no que não se prova, apenas se pressente ou intui. O que explica o fenômeno religioso? Essa é a tarefa da Filosofia da Religião.


Assim como fiz com Estética e Filosofia da Arte, é preciso estabelecer algumas distinções logo de cara, para evitar confusões. No caso, Filosofia da Religião é distinta da Teologia, porque esta última já pressupõe uma divindade e lança seu foco sobre ela, enquanto a primeira prescinde até mesmo de se crer na existência de alguma delas, já que seu olhar se volta para as estruturas humanas que permitem a existência e o desenvolvimento das religiões, independentemente da posição do filósofo. Em resumo, a Filosofia da Religião tem um propósito laico, onde é indiferente a existência de um deus, mas do fenômeno religioso em si. Ok?

A primeira coisa a pensar é a seguinte: por uma questão evolutiva, a humanidade possui o máximo interesse em saber o autor dos fenômenos que ocorrem no planetinha e fora dele. Vejam se não faz todo o sentido biológico: você e um camarada pré-histórico estão cochilando após o almoço embaixo de uma mangueira primitiva. Um ruído se ouve a alguns metros e o companheiro se assusta, se levanta e fica ligado, enquanto você permanece na modorra. Quando percebe a fera vindo, pega o beco e deixa você virar petisco. Muy amigo! Mas veja como foi vantajoso para ele ser curioso. E a coisa, atavicamente, funciona até hoje. Puxe pela memória e você lembrará de alguma panela que caiu do armário. Seu cônjuge, que não a guardou, achará que foi displicência sua; você, que o fez com tanto cuidado, pensará ser uma molecagem do saci. No final das contas, tentou-se achar um culpado, um agente, uma causa, assim como se achou a onça ancestral no triste episódio dos dois amigos.

Da mesma forma que a mecânica da causação dá lógica a meros fenômenos gravitacionais, como a queda da panela, também se busca uma causa para toda e qualquer ocorrência que se passe ao nosso redor. Acontece que hoje em dia temos conhecimento científico bem consolidado, mas a sua ausência não nos tira a necessidade ascendente de ter explicações para tudo. Nada há de mais doloroso do que um buraco no conhecimento, e, para supri-lo, buscamos justificativas fora de nosso mundo imanente (num processo que origina o Deus das Lacunas). Esse é um dos nascedouros da Religião.

Para que se explique a necessidade da Religião, é preciso fazer algum esforço retrospectivo do que seria a humanidade em seus primórdios, coisa que já fiz neste, neste e neste textos, mas que, para o bem da clareza, retomo por aqui brevemente. Se levarmos em conta que os sentidos são a porta de entrada daquilo que conhecemos, fica estranho achar que há algo do “lado de fora”, invisível e imperceptível. Mas o homem não custou muito a perceber que as coisas não aconteciam ao léu, como se fosse um mero rolar de dados, e que seus sentidos não conseguiam alcançar tudo. Os fenômenos se repetiam, uns em período curto de tempo, outros a médio prazo, outros ainda em grandes intervalos. Essa percepção de uma natureza cíclica da realidade tirou do homem recém constituído a noção de que tudo acontecia por si só. Parecia existir algum tipo de inteligência que lhe fugia dos olhos, mas que se manifestava na perfeição do relógio celeste e, mais ainda, quando algo estava fora do lugar. Da mesma forma que as coisas fogem da normalidade quando estamos tristes, raivosos ou eufóricos, também a natureza se revela tempestuosa em certos momentos. Isso seria a prova de que não só haveria uma inteligência a reger os ciclos universais, mas que essa mesma entidade estava sujeita a temperamentos.

A primeira impressão foi a de divinizar os próprios fenômenos. O Sol, os trovões, as águas, todos eles seriam em si mesmos divindades, que carregariam uma vontade autônoma. Muitos dos mitos de origem indígena, por exemplo, nascem deste raciocínio geral. É o chamado animismo, que dota de espírito seres que, em tese, seriam dele desprovidos. É uma mecânica que explica bem os desvios do ciclo, mas que dava alguma dificuldade para responder porque a ordem geral era constituída da forma que é.

Nasce então a percepção de que há uma dimensão transcendente do mundo, ou seja, há algo fora das coisas que se põe a regê-las, e é nesse momento em que ocorre o destacamento da divindade do elemento respectivo e se dá a sua personificação. Os deuses agora são semelhantes a pessoas. No entanto, possuem atributos exacerbados: imortalidade, influência direta no elemento do qual é regente, força e resistência multiplicadas. Os deuses são vários e, por vezes, competem entre si, assim como a água e o fogo se contrabalanceiam. Esse é o politeísmo.

Na medida em que se percebe que os mecanismos universais são todos interligados, cresce a noção de que divindades isoladas, e até mesmo adversárias, não eram suficientes para fechar o sentido universal. Para solucionar o problema, a princípio é deslocado um dos deuses do panteão para o alto da hierarquia, de forma que esse Deus era o centro harmônico de princípios conflitantes. Por outro lado, a regularidade dos ciclos universais e o caminho de retorno à normalidade que sucede os cataclismas dão a ideia holística de uma regência unificada. Por um lado, temos a ideia de que essa divindade reinante do politeísmo é ubíqua, já que se pode perceber ciclos por toda a parte; sua presença também se encontra assim espraiada. Se é onipresente, também sua consciência e sua capacidade de agir são universais. Dessa forma, atributos que eram departamentalizados em várias deidades ficavam concentrados em uma só, e temos o monoteísmo. Por outro lado, nasce a noção de que a universalidade se dá não porque há um Deus que impera sobre o cosmos, mas porque o permeia. Deus está em toda parte não porque tenha visão ampla, sapiência universal e ademanes, mas porque ele é a própria substância de tudo o que existe. Ele está em toda parte porque tudo é feito dele e tudo é ele. Esse é o panteísmo.

Bom. Explicar cada uma dessas divindades é tarefa da Teologia, como eu já disse. Ocorre que todas essas explicações eram boas e valiosas enquanto o aporte de conhecimento da humanidade era pobre e limitado. Mas a ascensão da Ciência e a evolução tecnológica trouxe informações muito mais sólidas sobre o funcionamento cósmico, que dispensa a divindade em muitos aspectos, e ainda tem as vantagens das previsibilidades e da construção de hipóteses mais bem fundamentadas. Hoje podemos pensar em teorias que seriam incompreensíveis a algum tempo atrás, como o multiverso, a teoria das cordas e os buracos de minhoca, que não brotam da intuição de um sacerdote, mas de outras teorias que se desenvolveram e se consolidaram com base em observação e experimento. Ou seja, por menos que se queira, a Ciência apresenta dados, informações, relatórios, descrições, imagens, gráficos, equações e fórmulas, enquanto a Religião apresenta, no máximo, um livro e testemunhos. No entanto, ao contrário do que esperaria a lógica, o fenômeno religioso persiste. E sabem por que? Porque também ele faz sentido, mesmo que não se concorde com ele.

Vejam bem. Se olharmos para o interior do homem, veremos que existe uma perturbação psicológica permanente: a consciência de finitude. Bem arrazoado, por ser um destino inevitável, não deveria ser algo tão aterrorizante. Mas é que temos o diabo de um instinto de sobrevivência que fica nos prendendo a esta casinha. Um olhar meramente científico sobre a questão só aumenta a angústia: morreu, punto e finito. Mas a observação cíclica da natureza, que deu origem ao pensamento de que há algo “fora”, que governa o funcionamento do cosmos, também oferece a ideia de que nossas próprias vidas são cíclicas, contínuas e talvez infinitas. O ciclo se encerra para reiniciar com outra vida, seja um renascimento nesta mesma dimensão, seja em outro plano, no mais das vezes de acordo com os méritos pessoais. Esse pensamento é um consolo sem preço para a angústia da vida que se aproxima diariamente da morte, o salto no abismo schopenhaueriano. Por mais que subverta evidências, justifica-se que seja tão atraente, até porque não se aplica somente à morte, mas a outras circunstâncias menos dramáticas. Todos nós já nos sentimos em situação de desamparo perante o risco, como me sinto quando cruzo a Sé à noite, por exemplo. Claro que evito os desvãos do metrô e o miolo da praça, ladeando o permanentemente vigiado frontão do Palácio da Justiça, mas, se eu tivesse alguém que olhasse por mim por todo o tempo, sentir-me-ia muito mais seguro.

Mas por que optar por religiões que me ditam regras sobre cada passo que sigo? O que faço, o que deixo de fazer, o que como, o que bebo, o que visto e como trepo? Neste caso, é importante tentar entender como as religiões se institucionalizam. Da mesma forma que a arte, há uma simbiose entre religião e cultura onde uma espelha a outra. No entanto, essa relação é muito mais conflituosa, porque a dinâmica de ambas tem velocidades diferentes. As religiões são barcas que giram muito lentamente, sempre movidas por transformações na sociedade que lhe são antecipadas. É natural que assim seja, porque as religiões possuem corpos de regramentos que lhe caracterizam. É por isso que elas são conservadoras – seus séquitos se formaram pelo que as igrejas são apresentadas, e modificações de ritos não são como trocar o macarrão pela feijoada no almoço de domingo. As doutrinas e dogmas são pouco mutáveis por conta disso: apresentam uma forma de conhecimento pronto, onde pouco há para ser moldado pela razão e muito pela fé – instâncias inversas às das ciências. Esta última, sim, muda a toda hora. O ovo é uma pobre vítima dela. Ora é bom, ora é ruim, já não podem ser crus, já não devem ser fritos. Nos meus quase cinquenta anos de vida, ouvi de tudo sobre eles. De salvar a interromper vidas, minha pobre cabecinha hemicentenária não sabe bem o que fazer com o nobre produto galináceo. Uma religião não pode funcionar assim. Ela apresenta uma verdade que redunda em regras sobre certo e errado. Se eu seguisse uma religião que proíbe o consumo de ovos, saberia muito bem o que fazer. Entenderam?

E como uma religião se homologa como elemento cultural? Fazendo remissão ainda aos conjuntos de regras próprios de cada uma delas, percebemos que há uma questão de sacralização que representa uma modificação no propósito original de um lugar, de um objeto ou de uma atitude. De fato, há casos extremos, como o da cruz, que, pensando laicamente, é um instrumento de tortura, mas que é sagrado para o Cristianismo. Explica-se: na teologia cristã, a cruz foi o lugar onde Jesus padeceu para extirpar os pecados humanos. Sem fazer juízo de valor, o fato de que haja um meio pelo qual a pena eterna do inferno passe a ser evitada tira a cruz de sua função original, e a vemos transitando por pescoços e adornando altares como sinal sagrado, apartado de seu uso e sentido original.

Mas o processo de sacralização não é exclusivo do uso religioso e é aplicado até mesmo por ateus, segundo nos ensina o filósofo romeno Mircea Eliade. O objeto ou o local sagrado sempre brota de uma anterioridade profana, ou seja, de coisas que não se relacionam a uma divindade. A sacralização ocorre quando um objeto é separado dos demais e colocado em lugar especial, por lhe ser atribuído um significado simbólico que o destaca dos demais. Um processo de sacralização laico comum de se ver é um diploma pendurado na parede, um livro de cabeceira (que não precisa ser religioso) ou um troféu do seu time de futsal. Vou dar exemplos pessoais aqui.

Nos meus anos de juventude, eu tocava em uma banda de hard rock. Eu trabalhava, é bem verdade, mas tinha que ajudar no orçamento doméstico e pagar minha própria escola, o que impossibilitava grandes investimentos na carreira. Como nosso grande barato eram músicas autorais, vivíamos à caça de festivais para mostrar nosso trabalho. Acabamos emplacando um, do Colégio Anchieta, levando as estatuetas de melhor banda e melhor música, Centro da Cidade, um libelo de lamentação quanto à desnaturação do espaço urbano, onde eu dizia que “não me importa mais saber/só me resta esquecer/que ainda cai a tarde/no centro da cidade”. Os pequenos troféus não têm qualquer conotação religiosa, mas estão devidamente sacralizados, expostos na estante de livros que fica logo na entrada do meu apê, à vista de todo mundo que adentrar. A menorzinha é ainda mais sagrada, porque é de uma composição minha que brotou o prêmio, enquanto a outra é do grupo todo.

Ao lado das estatuetas clássicas com Nice, a deusa grega das vitórias, há dois pequenos troféus, na estranha forma de lápides. Também representam glórias caseiras, e simbolizam o bicampeonato da minha filha no concurso de redação da escolinha em que ela estudava. Ela sempre gostou de escrever e falar de historinhas, mas ela mesma não punha fé alguma em levar um dos prêmios, e o fez mais por obrigação do que por vontade. Ela reclama um bocado do formato da láurea, mas também a tem em local especial.

O outro caso se deu com meu filho mais velho. Em 99, quando ele tinha apenas sete anos, o Corinthians foi campeão paulista. Acho que foi o primeiro título que ele acompanhou de verdade. Minha mãe, à época, conhecia um conselheiro do clube, que a convidou para a festa. Lá, ela comentou sobre o neto, o quanto ele pulou e gritou. O tal conselheiro, uma pessoa de certa fama, tirou a faixa de campeão que lhe ornava de transverso e a deu à minha mãe, para entregá-la ao neto. “Que seja a primeira de muitas”, disse ele. E realmente foi. Após essa data, o Timão ganhou de tudo. Mundiais, Libertadores, Brasileirões, Copas do Brasil, Rio-São Paulo e outros tantos estaduais. Não pareceria que o estadual de 99 receberia um lugar especial, individual, apartado dentre tantas conquistas mais significativas, mas a faixa está lá, encerrada em uma moldura, na parede do quarto de dormir, devidamente sacralizado.

O que Eliade nos ensina é que a sacralidade, independentemente de uma religião institucionalizada, é inerente à espécie humana. A noção de sagrado vai acima da que a Religião lhe atribui. Em qualquer cultura, seja qual for o nível de religiosidade que a mesma possua, há um elemento derivado da consciência de seus indivíduos que realiza essa distinção entre o sagrado e o profano, como se naturalmente distinguíssemos as coisas que devem ser separadas das demais. O objeto sacralizado recebe atributos tão dignos de nota que seu movimento inverso, o da profanação, ganha um aspecto altamente negativo. É uma qualidade que se perde, e uma qualidade vital, porque distintiva. É jogar algo que se tinha em alta conta na vala comum. Profanar um cadáver, por exemplo, nem deveria ter esse nome, mas como a maioria das culturas veem o corpo como algo sagrado, que já foi capaz de reter uma alma que o habitou, acabam por outorgar a esse ato um estatuto que suplanta a mera intervenção sobre um cadáver.

A supressão da angústia e a noção de sacralidade são sentidos naturais para a religiosidade, ainda que a Religião em si seja obrigatoriamente cultural. Ainda há outros aspectos que são observados pela Filosofia da Religião, como a sensação de pertença a uma unidade universal ou ao sentimento oceânico freudiano, mas, nestes casos, vou pedir para vocês lerem os textos dos links, porque este já está ficando muito longo. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Não há como não recomendar a obra de Mircea Eliade, que faz observações muito sensatas com relação à estrutura das religiões. Recomendo o livro abaixo, que certamente voltarei a recomendar por aqui.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. A Essência das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

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