(Este texto foi revisto porque eu fiz uma confusão dos diabos entre circulus
in demonstrando e petitio principii, que busco remir agora. Peço
desculpas a todos pelo inconveniente e prometo melhorar).
Tostines vende mais porque está sempre fresquinho ou está sempre fresquinho porque vende mais? Quem tem mais de 40 lembra-se dessa, com certeza.
Esse é um exemplo clássico de raciocínio circular, conhecida
em latim por Circulus in demonstrando, uma falácia informal em que a conclusão é
obtida a partir de premissas que já a reputam como verdadeira, ou seja, a
conclusão prova as premissas e as premissas provam a conclusão. Parece como a
mística figura do Ouroboros, a serpente que engole o próprio rabo.
É óbvio que o texto do primeiro parágrafo não passa de uma
bem pensada brincadeira com as palavras, uma peça publicitária que visa induzir
a elucubração do pretendido consumidor das bolachas (no Rio: bishcoito), mas é
uma falácia que engana (como de resto costuma acontecer com sofismas) por
parecer fácil de detectar. Vejam um exemplo:
“Não acredito em falas de políticos porque eles são
mentirosos.
E por que eles são mentirosos?
Porque são políticos”.
Mas alguns deles são muito mais sutis. Se dissermos que uma
ação é ilegal porque a lei a proíbe, além de estarmos dissertando sobre o
óbvio, estaremos induzindo um raciocínio circular, porque podemos desmembrar
esse raciocínio da seguinte forma:
“Ações ilegais são proibidas por lei.
O que torna uma ação ilegal?
A lei.
O que a lei proíbe?
Ações ilegais”.
Mas isso ainda é brincadeira de criança. Talvez um dos
melhores exemplos de circularidade no mundo das Ciências seja a intrigante
questão da escuridão do céu noturno. Como bem sabemos, durante o dia, quando um
dos hemisférios da Terra está voltado para o Sol, há intensa luminosidade,
mesmo que haja bastante nuvens a cobri-lo. De noite, pelo contrário, vemos uma
imensa miríade de estrelas – principalmente se estivermos longe da poluição
luminosa das grandes cidades. Mas, fora destes pontos, reina a escuridão.
A princípio, tudo isso parece tremendamente lógico, porque
parte de informações que colhemos todos os nossos dias, desde o momento em que
nossa pernóstica espécie ficou ereta e começou a juntar lé com cré. Só que a
partir do momento em que a humanidade começou a tornar seu conhecimento
cosmológico mais e mais complexo, algumas perguntas que contradiziam a mera
observação começaram a surgir. Acompanhemos o argumento de Jean de Cheseaux,
matemático suíço: “Se o número de estrelas é infinito, o céu deveria estar
coberto por um disco estelar que o preencheria completamente”.
Esse raciocínio, como pode se observar, parte da premissa de que o universo é infinito tanto no tempo quanto no espaço, sendo que todo o horizonte cósmico seria fundeado por estrelas, membros de constelações de número igualmente infinito.
Esse raciocínio, como pode se observar, parte da premissa de que o universo é infinito tanto no tempo quanto no espaço, sendo que todo o horizonte cósmico seria fundeado por estrelas, membros de constelações de número igualmente infinito.
Tempos depois, o problema foi reproposto pelo astrônomo
alemão Heinrich Olbers, no que ficou conhecido como “paradoxo de Olbers”. O que
diz nosso amigo?
“Se o universo fosse estático e preenchido com uma
distribuição uniforme de estrelas, cada ponto de visada no horizonte terminaria
em uma estrela, e o céu seria uniformemente brilhante”. Algo assim.
O paradoxo já contém em si, implicitamente, uma proposta de
solução. Talvez o universo não seja estático, e, mais ainda, não seja infinito.
Esta ambiguidade viria a ser resolvida pela Teoria do Big Bang, conforme
veremos.
Vocês já perceberam o que acontece quando uma ambulância
está passando perto da gente? Na medida em que o veículo se aproxima, o som da
sua sirene vai ficando cada vez mais agudo, até o momento em que passa por nós.
Logo após, na medida em que se afasta, seu som vai ficando cada vez mais grave,
até desaparecer. Não vou entrar em grandes detalhes, mas isso acontece porque,
na proporção em que uma fonte sonora se movimenta, a frequência das ondas que
emite varia. Com isso, a percepção que temos, estando parados em relação à
ambulância, é de variação sonora. É o chamado Efeito Doppler.
Acontece que essa não é uma propriedade exclusiva do som,
mas da propagação das ondas. Também a luz é constituída por elas, e o efeito
Doppler também se aplica a ela. Como a velocidade da luz é muito maior que a do
som, nossa percepção não é tão aguçada para perceber as alterações de frequência,
mas, quando aplicada a distâncias astronômicas, já se torna possível fazer
observações das variações.
Pois bem. Enquanto a variação da frequência sonora é
percebida pelo deslocamento de sons agudos e graves, para a frequência luminosa
temos uma variação através do espectro de cores. Um exemplo bastante comum é o
arco-íris. Outro exemplo são os desmembramentos da luz branca ao passar por um
prisma. Colhi um diagrama do site http://www.climar.pt,
para ficar mais claro, representando o mesmo deslocamento produzido pelo
arco-íris e pelo prisma.
Além das cores do espectro visível, há frequências que
nossos olhos não conseguem enxergar. Antes do violeta, há o ultravioleta (com
seus incômodos efeitos ao organismo), os raios X e os raios gama. Após o
vermelho, temos o infravermelho e as ondas de rádio. Quando consideramos essas frequências
não visíveis, chamamos este espectro de eletromagnético.
Com relação aos sons, notamos que conforme aumenta a
distância, a frequência diminui, e os sons tornam-se mais graves, até fugir do
alcance dos ouvidos. Passando para a radiação luminosa, a distância aumentada e
a consequente diminuição da frequência deslocam o espectro para o lado vermelho.
Conclusão: quanto mais longínquo um objeto, maior o deslocamento da frequência eletromagnética para o
vermelho. É um fenômeno conhecido entre os físicos como redshift –
deslocamento para o vermelho.
E o que tudo isso significa? Quando é analisada a luz proveniente
das diferentes galáxias, é detectado um deslocamento para o vermelho em todas
elas. Caminhando para o vermelho, é possível concluir que elas estão se afastando
de nós, bem como se afastam entre si. E a conclusão maior: o universo está em
contínua expansão.
Isso tudo levou os cientistas a teorizar sobre o universo
original. Se as galáxias estão se afastando, isso significa que elas estiveram
todas juntas, em um passado bastante remoto. Essa linha de pensamento levou o
padre e físico Georges LaMaître a supor uma espécie de “átomo primordial”, onde
toda a matéria do universo estava concentrada em um único ponto, em uma
densidade inacreditável, até que houve início, por algum evento indeterminado,
a expansão que hoje conhecemos. Em seguida, o físico ucraniano Georgiy Gamow
aperfeiçoou a ideia, modificando o átomo primordial para uma “sopa”
extremamente densa e quente, constituída por partículas em um incomensurável esmagamento.
Houve um ponto em que a capacidade de aumentar a densidade deste suposto
líquido entrou em colapso, gerando algo semelhante a uma explosão, que faria
com que todo o composto se espalhasse pelo espaço. Era o Big Bang.
Voltando agora ao céu noturno, e já pensando em um universo
em movimento, podemos concluir que, por mais rápida que seja a propagação da
luz pelo espaço, há objetos siderais tão distantes de nós que a luminosidade
emitida por eles ainda não teve tempo de chegar até nós. Mais ainda: como as
galáxias estão se afastando, conforme pode ser deduzido pelo estudo do redshift,
cada vez mais sua frequência diminui, a ponto de se evadir do espectro luminoso
e cair em uma radiação infravermelha, já imperceptível pela visão. Desta forma,
podemos notar que ambas as explicações resolvem o paradoxo de Olbers!!!
Poderia falar ainda mais, como a radiação cósmica de fundo,
mas eu me prolongaria demais, e já estou me afastando qual uma estrela perdida
pelo cosmos. A falácia do raciocínio circular já está em pleno desvio para o
vermelho. Ela ocorre quando tentamos atribuir ao céu escuro noturno uma confirmação
da ocorrência do Big Bang. Não podemos proferir uma frase como “O Big Bang é
verdadeiro porque é comprovado pelo céu escuro, já que o céu escuro é
justificado pela existência do Big Bang”, sob pena de incorrer na falácia
combatida neste texto.
Esclareço. A teoria do Big Bang fornece uma explicação da
existência do céu escuro, mas a existência do céu escuro não confirma a teoria
do Big Bang. Muitas outras explicações seriam plausíveis, como algum tipo de
desvio luminoso, ou perda de intensidade da radiação, ou a existência de alguma
matéria que absorvesse a luz estelar, tudo isso sem que o Big Bang pudesse ser
descartado. Portanto, uma afirmação de que o Big Bang explica a escuridão
noturna e que isso confirma a existência do Big Bang é a típica configuração do
circulus in demonstrando, a nossa referência circular.
Para fazer um adendo, é preciso lembrar que a Ciência não se
move com paradigmas imutáveis. Em outras palavras, ela não é dogmática. A
Teoria do Big Bang é hoje a maneira mais bem aceita pela comunidade científica
para solucionar o problema da origem do universo, mas não é definitiva. Muitas
coisas ainda precisam ser mais bem elucidadas, como a descrição dos quasars e
dos buracos negros, mas na medida em que a Astronomia fizer novas descobertas,
elas serão confrontadas com o Big Bang, seja para corroborá-lo, seja para
refutá-lo. É assim que funciona a Ciência e é isso que a torna fascinante:
nenhuma resposta é fácil, nem cômoda, nem definitiva.
E eu dei essa volta toda só para explicar o funcionamento de
uma falácia! Filosofia também é muito legal.
Só para terminar: existe raciocínio circular não falacioso? Mais
ou menos. Poderíamos dizer que sim, mas neste caso chamamo-los de tautologias,
que, em geral, são tolas, apesar de verdadeiras. Dizer que uma característica
cultural não é natural e que, portanto, as plantas não possuem cultura porque
são naturais é autoevidente, mas não é uma mentira. Assim, é preciso tomar
certo cuidado em diferenciar a tautologia da falácia do raciocínio circular.
Recomendação de filme:
Não se trata exatamente de um filme que traduz uma falácia,
mas de uma obra que retrata uma situação de circularidade surpreendente, como,
aliás, é a atuação do careteiro Jim Carrey, excelente neste caso. Devo dizer
mais: de uns quinze anos para cá, este ator deu um rumo muito melhor para a
carreira, lançando os bons Todo Poderoso e Show de Truman. Mas o filme abaixo é
verdadeiramente bom. Recomendo bastante.
GONDRY, Michel. Brilho eterno de uma mente sem lembranças.
Filme. EUA: Universal Pictures, 2004. Colorido. 108 min.
Agradeço à Deb por emprestar suas mãozinhas e seu talento para ilustrar a foto deste texto.
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