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segunda-feira, 22 de novembro de 2021

O que são os tais dos mistérios órficos e como colaboraram na formação da Filosofia

(A Filosofia nasce quando a razão passa a ser o motor da especulação. Mas isso não quer dizer que elementos mitológicos não tenham tido sua participação neste processo)

Olá!

Não sei se isso é uma coisa típica dos paulistas, dos brasileiros, dos latinos ou dos humanos, mas já notaram como conversamos com as outras pessoas como se já as conhecêssemos há anos? Eu já tinha notado isso na patroa, mas é perfeitamente possível perceber em mim também. Às vezes eu me empolgo falando de futebol com meu moleque mais velho, e começo a falar de times e jogadores da década de 80 como se ele fosse testemunha ocular dos fatos. Outro dia, saí escalando Carlos, Nelson, Nelsinho, Deodoro e Bizi; Paulo Martins, Gatãozinho e César; Sidnei, Bira e Trajano como se estivéssemos juntos no Parque São Jorge, naquele longínquo 3 de maio de 1983, dia em que o glorioso Juventus da Mooca conquistou a Taça de Prata em cima do CSA, sob a batuta do técnico Candinho, o maior título de sua história. A pergunta cabível era irônica: “se não foi na Javari, como o seu Antonio fez para vender os canolis (sic)? Porque eu não sei uma vírgula do que você falou aí”. Toquei-me, claro, e ainda remexi um pouco na sua memória, para lhe dizer que o lateral-direito Nelson era o mesmíssimo Nelsinho que comandou o Corinthians em seu triste rebaixamento de 2007. Disso, o primogênito lembrou.

Dei essa volta toda apenas para dizer que eu faço mancadas dessas neste humilde espaço. Mas não custa tentar fazer reparos. Um dos exemplos diz respeito aos mistérios órficos, como eu citei no meu último texto. Eu falei deles mais de uma vez, como se todo mundo que me lê soubesse perfeitamente bem do que eu estou falando. Isso acontece porque há assuntos que tratamos com tal naturalidade que, lá no nosso subconsciente, achamos que faça todo sentido que a humanidade inteira conheça em pé de igualdade. No exemplo juventino, não basta que o interlocutor goste do time mooquense, mas também tenha idade suficiente para recordar dos fatos, mesmo que não tenha sido testemunha presencial do título em tela, como eu fui (sem contar que o local da contenda dá um certo sabor alvinegro à conquista).

Minha missão aqui, portanto, será dar um painel que explique como o culto a Orfeu colaborou com a formação da Filosofia ocidental, e dar um pouco de base para quando eu voltar a mencioná-los no futuro. Isso vai incluir entender um pouco melhor o registro religioso dos gregos antigos. Allora andiamo via.

Os gregos antigos possuíam uma religião pública, praticada em certa medida pela maioria das cidades, mas não seguiam cem por cento dos seus ditames, pelos mais diferentes motivos. Primeiro, porque não possuíam um livro de regulamentos, como é o caso da Bíblia*. Depois, os sacerdotes não representavam uma credencial política muito significativa. E, por último, o culto deixava lacunas que causavam incômodo.

A religião pública grega é bastante conhecida, fundamento mais famoso do que conhecemos por Mitologia. Baseava-se fundamentalmente na antropomorfização dos fenômenos e na amplificação das características do próprio ser humano, e representava uma evolução do animismo mais primevo, que divinizava os entes da natureza em si mesmos, como o Sol, as águas e as estações do ano. Desta forma, tínhamos deuses que regiam todos os aspectos da existência cósmica, como os ciclos naturais, as condições atmosféricas, as disposições geográficas, as atividades humanas e tudo o mais que ocorresse neste planetinha azul e fora dele. Por exemplo, Zeus era o responsável por arremessar raios e relâmpagos do céu para a Terra, Posêidon agitava os mares, Afrodite imperava sobre as relações e daí para frente. Uma entidade dessas se diferenciava de um homem comum basicamente pelo poderio e regência dos elementos sob sua alçada e por sua imortalidade. Esse último tópico é um pouco diferente do que estamos acostumados no substrato cultural do ocidente. A imortalidade dos deuses era algo físico, e eles viviam eternamente lá pelos seus montes Olimpo, Parnaso, Hélicon e arrabaldes. Já aos homens, a morte representava extinção. Não havia nenhuma instância existencial para além do mundo tangível, e isso dava a dimensão de como a vida precisava ser heroica, com as grandes epopeias relatando os feitos humanos e divinos, porque era aqui que as coisas precisavam ser feitas.

Isso gerava perguntas. Era indiferente ter vida virtuosa ou eivada de vícios, já que o fim era exatamente o mesmo: o nada. Mesmo a imortalidade dos deuses era um fenômeno terreno, sendo que não havia outro plano além daquele percebido no próprio mundo. Por conta de aporias como essas, os gregos procuravam respostas em outras sendas, as chamadas religiões mistagógicas, ou, em coloquial, nas religiões de mistérios, especialmente naquela conhecida como Orfismo.

Vale contextualizar um pouco. Esse nome deriva de Orfeu, um vate da Trácia que tem sua história toda obnubilada por lendas, sendo inclusive muito difícil estabelecer se ele teve a existência real de qualquer contribuinte ou se é fruto de uma conjunção de narrativas míticas que se centralizaram ao redor de um personagem. Orfeu era um grande músico, e que versava sua literatura em cantos acompanhados por lira. Além dos temas ligados aos deuses, os cantos de Orfeu estavam relacionados a linhas de pensamento que não se coadunavam com a religião pública, e davam uma dimensão alternativa para a questão do monismo preconizado pela mesma. A principal passagem que se conta sobre ele diz respeito à sua amada Eurídice, que também se apaixonou por sua música. Era muito bela e admirada, o que lhe trouxe dores de cabeça. Perseguida pelo pastor Aristeu, que também desejava seu amor, a bela ninfa se colocou em fuga, quando tropeçou em uma serpente. Sendo picada, ela veio a falecer, e foi parar no reino de Hades, o deus dos mortos. Inconformado com o destino de Eurídice, Orfeu vai ao mundo dos mortos e convence Hades a libertar sua esposa, sob a condição de que, no caminho, em nenhum momento ele olhasse para trás. Quando já estava no portal de saída do inferno, Orfeu comete a imprudência e vai se certificar se Eurídice ainda o seguia. Diante do descumprimento do trato, imediatamente a infeliz é resgatada pelas profundezas, de onde nunca mais poderia sair.

Tomado de profunda tristeza, Orfeu não mais entoou sua música e nem se relacionou novamente com mulheres. Essa melancolia se espalhou por toda sua terra, e causou a fúria das egoístas mênades, as ninfas cultuadoras do deus Dioniso, lascivas como as forças da natureza instintiva. Elas despedaçaram todo seu corpo, sendo que sua cabeça, junto de sua lira, foi para o mar, onde desembocou na ilha de Lesbos. Os habitantes de lá enterraram sua cabeça e erigiram um santuário para seu culto. Ao mesmo passo, Orfeu desceu ao reino dos mortos, desta vez desencarnado, onde pode se reencontrar com Eurídice e novamente achar a felicidade. É com esse fundamento mítico que surge o Orfismo. Ufa!

Comecem a notar que aqui já introduzimos vidas que se seguem à morte, e o monismo público encontra um contraponto. Mas há ainda mais para explicar a mistagogia órfica e, para isso, precisaremos novamente recorrer à Mitologia. Acompanhem porque a história é interessante.

Como bem sabem aqueles que curtem as histórias gregas, Zeus não era exatamente um representante da pudica família tradicional brasileira, e se envolvia em puladas de cerca daquelas de originar provérbios. Uma de suas vítimas foi sua filha (sim, filha) Perséfone, que além de tudo era esposa de Hades, irmão do poderoso talarico. Dessa união involuntária, nasceu Zagreu, uma das encarnações do deus Dioniso. A deusa Hera, esposa de Zeus, traída com frequência por seu incontido marido, evidentemente não ficou nada satisfeita, e mandou os Titãs, divindades concorrentes dos olímpicos, assassinarem o incômodo enteado. Semelhantemente a Orfeu, Zagreu vinha tendo seu corpo dilacerado, quando Zeus, dando-se conta do massacre, calcinou os Titãs com seus costumeiros raios, a ponto de ainda salvar o coração do infeliz. Da mistura dos restos mortais de Zagreu e das cinzas dos Titãs brotou a humanidade, composta pela parte divina oriunda de Dioniso e da parte corpórea dos Titãs, de onde surge uma dupla natureza: a soma titânica é a cadeia que aprisiona a psique dionisíaca, uma estrutura inédita no pensamento grego, eterna, imperecível.

Qual é a grande novidade do culto a Orfeu? A principal é que a perspectiva monista da religião pública é convolada em um dualismo corpo-alma, e toda a realidade passou a ser dupla. Em cada homem reside uma porção divina, representada pela alma (o coração de Dioniso), e uma parte terrena, advinda das cinzas dos titãs. A porção psique do homem é uma alma que fica aprisionada em um corpo por conta de uma culpa original, interpretada como derivada do ataque dos Titãs ao Zagreu. Dessa forma, uma alma degenerada junta-se a um corpo que carrega uma corrupção. Essa alma não nasce junto com o corpo e não se extingue com ele, como diria o paganismo grego, mas, ao contrário, subsiste a ele e pode voltar a encarnar em outros corpos, até que todo resquício de erro de sua culpa original seja purificado, saindo do ciclo de encarnações. O princípio geral para a saída desse ciclo infinito é a adoção de uma vida regrada, próxima ao ascetismo, sendo que a recompensa é um regresso ao divino, livre das intempéries da vida terrena. A alma é o homem divinizado, e o próprio eu de cada um tende a procurar formas de purificação para uma reaproximação à deidade.

Perceba-se que da religião pública se extraiu uma forte ligação com a natureza, o que explica a busca pela arché e os inúmeros trabalhos denominados De Natura (Sobre a Natureza) que foram exatamente os primeiros tratados de cunho filosófico, já calcados no raciocínio, e não na Mitologia. Mas dos mistérios órficos ganha-se uma explicação e uma nova lógica para as condutas durante a existência, que passam a incluir um prêmio (o retorno aos deuses) ou penalidade (a obrigação de reencarnar), de acordo com a virtude aplicada às ações de cada um. Isso tira da pauta o naturalismo da religião pública e coloca um reconhecimento do homem como um candidato a um plano multidimensional.

Quais são os reflexos disso tudo? Certos pensadores são totalmente dependentes da mistagogia órfica, como Pitágoras, Empédocles e Heráclito, porque somente a perspectiva dualista faz com que suas filosofias tenham sentido. O Hiperurânio platônico tem forte conotação metafísica a partir de uma mesma visão dual, o que acabou respingando nos seus sucedâneos helênicos, especialmente estoicos e epicureus (embora o entendimento público seja mais expressivo nessas correntes), e também os adaptadores do platonismo ao Cristianismo, como Santo Agostinho. Todas as religiões de matriz abraâmica acompanham o mesmo pano de fundo soma-psique, ainda que sob a égide de uma divindade monolítica, o que inclui a noção de pecado original e remissão de pecados, mesmo que estes não tenham sido cometidos pelo indivíduo. As religiões orientais, africanas e mesmo o moderno Espiritismo adotam, com diferentes níveis de aderência, à noção de metempsicose proclamada pelos órficos, cujo exemplo mais próximo que tenho em mente é o do Budismo. Vejam só quanta coisa. 

Por fim, por que chamamos o Orfismo e outras correntes divergentes da religião popular grega de religiões de mistérios? Isso ocorre porque, como eu já disse, a mitologia clássica preponderante não possuía um corpus sistematizado, que estivesse baixada por escrito em algum livro. Também não tinha um caráter normativo ou dogmático, impondo grande quantidade de regras éticas para moldar o meio social, com poucas cargas rituais e litúrgicas. Mais ainda: a falta de uma perspectiva de revelação divina fez com que a religião não fosse custodiada por uma casta sacerdotal, que, até mesmo por isso, não exercia grandes influências políticas e sociais, bem ao contrário do que ocorre em outras religiões. Até mesmo por essa falta de rigor, ocorria com essa religião o que víamos com frequência no Brasil: se o sujeito não tem uma religião muito bem fixada e com poucos hábitos culturais, ele diz que é católico, para ficar inserido em uma zona de conforto, batizando os filhos porque ele mesmo foi batizado, indo a casamentos e exéquias e, eventualmente, assistindo uma missa. O seguimento das regras é bem mais rígido que isso, mas o nível de cobrança é bastante baixo.

Já as religiões de mistérios são muito mais rigorosas no quesito custódia. O mistagogo (do grego mystes+agogos, aquele que transmite o ensinamento dos mistérios) é o detentor de um conhecimento que não está disponível para qualquer um, que necessita enfrentar ritos iniciáticos e passar por etapas graduais para atingir um determinado nível na hierarquia da religião. Não se trata de uma religião oculta, mas que possui um cerne conhecido e franqueado unicamente a indivíduos escolhidos ou preparados para cuidar dos rituais, em algo mais ou menos assemelhado a sociedades como a Maçonaria ou Rosa Cruz. Neste sentido, é o oposto da religião pública, aberta a qualquer cidadão sem a necessidade de iniciação.

Então é isso. Cumpri minha obrigação de deixar mais claro o modo com que os antigos gregos davam tratos às suas bolas e desenvolveram todo esse cartel de sabedoria a partir de suas crenças e de suas mitologias, sem esquecer que a Filosofia nasce a partir da racionalização de todas essas histórias. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

O artigo abaixo é um bom ponto de apoio para que se possa entender um pouco melhor o que é e como se desenvolveu o culto órfico:

TARZIA, Milena. As Práticas Órficas: Conexão entre Rito e Mito. In: Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais. Maringá: UEM, 2015. Disponível em: http://ppe.uem.br/jeam/anais/2015/pdf/035.pdf Acesso em: 18.11.2021.

* É preciso lembrar que livros como a Teogonia de Hesíodo e Ilíada e Odisseia de Homero não eram livros de regras religiosas, mas narrativas sobre a origem e vida dos deuses.

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