(A Filosofia nasce quando a razão passa a ser o motor da especulação. Mas isso não quer dizer que elementos mitológicos não tenham tido sua participação neste processo)
Olá!
Não sei se isso é uma coisa típica dos paulistas, dos
brasileiros, dos latinos ou dos humanos, mas já notaram como conversamos com as
outras pessoas como se já as conhecêssemos há anos? Eu já tinha notado isso na
patroa, mas é perfeitamente possível perceber em mim também. Às vezes eu me
empolgo falando de futebol com meu moleque mais velho, e começo a falar de
times e jogadores da década de 80 como se ele fosse testemunha ocular dos
fatos. Outro dia, saí escalando Carlos, Nelson, Nelsinho, Deodoro e Bizi; Paulo
Martins, Gatãozinho e César; Sidnei, Bira e Trajano como se estivéssemos juntos
no Parque São Jorge, naquele longínquo 3 de maio de 1983, dia em que o glorioso
Juventus da Mooca conquistou a Taça de Prata em cima do CSA, sob a batuta do
técnico Candinho, o maior título de sua história. A pergunta cabível era
irônica: “se não foi na Javari, como o seu Antonio fez para vender os canolis
(sic)? Porque eu não sei uma vírgula do que você falou aí”. Toquei-me,
claro, e ainda remexi um pouco na sua memória, para lhe dizer que o
lateral-direito Nelson era o mesmíssimo Nelsinho que comandou o Corinthians em
seu triste rebaixamento de 2007. Disso, o primogênito lembrou.
Dei essa volta toda apenas para dizer que eu faço mancadas
dessas neste humilde espaço. Mas não custa tentar fazer reparos. Um dos
exemplos diz respeito aos mistérios órficos, como eu citei no meu último
texto. Eu falei deles mais de uma vez, como se todo mundo que me lê soubesse
perfeitamente bem do que eu estou falando. Isso acontece porque há assuntos que
tratamos com tal naturalidade que, lá no nosso subconsciente, achamos que faça
todo sentido que a humanidade inteira conheça em pé de igualdade. No exemplo
juventino, não basta que o interlocutor goste do time mooquense, mas também
tenha idade suficiente para recordar dos fatos, mesmo que não tenha sido
testemunha presencial do título em tela, como eu fui (sem contar que o local da
contenda dá um certo sabor alvinegro à conquista).
Minha missão aqui, portanto, será dar um painel que explique
como o culto a Orfeu colaborou com a formação da Filosofia ocidental, e dar um
pouco de base para quando eu voltar a mencioná-los no futuro. Isso vai incluir
entender um pouco melhor o registro religioso dos gregos antigos. Allora
andiamo via.
Os gregos antigos possuíam uma religião pública, praticada
em certa medida pela maioria das cidades, mas não seguiam cem por cento dos
seus ditames, pelos mais diferentes motivos. Primeiro, porque não possuíam um
livro de regulamentos, como é o caso da Bíblia*. Depois, os sacerdotes não
representavam uma credencial política muito significativa. E, por último, o
culto deixava lacunas que causavam incômodo.
A religião pública grega é bastante conhecida, fundamento
mais famoso do que conhecemos por Mitologia.
Baseava-se fundamentalmente na antropomorfização dos fenômenos e na
amplificação das características do próprio ser humano, e representava uma
evolução do animismo mais primevo, que divinizava os entes da natureza em si
mesmos, como o Sol, as águas e as estações do ano. Desta forma, tínhamos deuses
que regiam todos os aspectos da existência cósmica, como os ciclos naturais, as
condições atmosféricas, as disposições geográficas, as atividades humanas e
tudo o mais que ocorresse neste planetinha azul e fora dele. Por exemplo, Zeus
era o responsável por arremessar raios e relâmpagos do céu para a Terra,
Posêidon agitava os mares, Afrodite imperava sobre as relações e daí para
frente. Uma entidade dessas se diferenciava de um homem comum basicamente pelo
poderio e regência dos elementos sob sua alçada e por sua imortalidade. Esse
último tópico é um pouco diferente do que estamos acostumados no substrato
cultural do ocidente. A imortalidade dos deuses era algo físico, e eles viviam
eternamente lá pelos seus montes Olimpo, Parnaso, Hélicon e arrabaldes. Já aos
homens, a morte representava extinção. Não havia nenhuma instância existencial
para além do mundo tangível, e isso dava a dimensão de como a vida precisava
ser heroica, com as grandes epopeias relatando os feitos humanos e divinos,
porque era aqui que as coisas precisavam ser feitas.
Isso gerava perguntas. Era indiferente ter vida virtuosa ou
eivada de vícios, já que o fim era exatamente o mesmo: o nada. Mesmo a
imortalidade dos deuses era um fenômeno terreno, sendo que não havia outro
plano além daquele percebido no próprio mundo. Por conta de aporias como essas,
os gregos procuravam respostas em outras sendas, as chamadas religiões
mistagógicas, ou, em coloquial, nas religiões de mistérios, especialmente
naquela conhecida como Orfismo.
Vale contextualizar um pouco. Esse nome deriva de Orfeu, um
vate da Trácia que tem sua história toda obnubilada por lendas, sendo inclusive
muito difícil estabelecer se ele teve a existência real de qualquer
contribuinte ou se é fruto de uma conjunção de narrativas míticas que se
centralizaram ao redor de um personagem. Orfeu era um grande músico, e que
versava sua literatura em cantos acompanhados por lira. Além dos temas ligados
aos deuses, os cantos de Orfeu estavam relacionados a linhas de pensamento que
não se coadunavam com a religião pública, e davam uma dimensão alternativa para
a questão do monismo preconizado pela mesma. A principal passagem que se conta
sobre ele diz respeito à sua amada Eurídice, que também se apaixonou por sua
música. Era muito bela e admirada, o que lhe trouxe dores de cabeça. Perseguida
pelo pastor Aristeu, que também desejava seu amor, a bela ninfa se colocou em
fuga, quando tropeçou em uma serpente. Sendo picada, ela veio a falecer, e foi
parar no reino de Hades, o deus dos mortos. Inconformado com o destino de
Eurídice, Orfeu vai ao mundo dos mortos e convence Hades a libertar sua esposa,
sob a condição de que, no caminho, em nenhum momento ele olhasse para trás.
Quando já estava no portal de saída do inferno, Orfeu comete a imprudência e
vai se certificar se Eurídice ainda o seguia. Diante do descumprimento do
trato, imediatamente a infeliz é resgatada pelas profundezas, de onde nunca mais
poderia sair.
Tomado de profunda tristeza, Orfeu não mais entoou sua
música e nem se relacionou novamente com mulheres. Essa melancolia se espalhou
por toda sua terra, e causou a fúria das egoístas mênades, as ninfas
cultuadoras do deus Dioniso, lascivas como as forças da natureza instintiva.
Elas despedaçaram todo seu corpo, sendo que sua cabeça, junto de sua lira, foi
para o mar, onde desembocou na ilha de Lesbos. Os habitantes de lá enterraram
sua cabeça e erigiram um santuário para seu culto. Ao mesmo passo, Orfeu desceu
ao reino dos mortos, desta vez desencarnado, onde pode se reencontrar com
Eurídice e novamente achar a felicidade. É com esse fundamento mítico que surge
o Orfismo. Ufa!
Comecem a notar que aqui já introduzimos vidas que se seguem à morte, e o monismo público encontra um contraponto. Mas há ainda mais para explicar a mistagogia órfica e, para isso, precisaremos novamente recorrer à Mitologia. Acompanhem porque a história é interessante.
Como bem sabem aqueles que curtem as histórias gregas, Zeus
não era exatamente um representante da pudica família tradicional brasileira, e
se envolvia em puladas de cerca daquelas de originar provérbios. Uma de suas
vítimas foi sua filha (sim, filha) Perséfone, que além de tudo era esposa de
Hades, irmão do poderoso talarico. Dessa união involuntária, nasceu Zagreu, uma
das encarnações do deus Dioniso. A deusa Hera, esposa de Zeus, traída com
frequência por seu incontido marido, evidentemente não ficou nada satisfeita, e
mandou os Titãs, divindades concorrentes dos olímpicos, assassinarem o incômodo
enteado. Semelhantemente a Orfeu, Zagreu vinha tendo seu corpo dilacerado,
quando Zeus, dando-se conta do massacre, calcinou os Titãs com seus costumeiros
raios, a ponto de ainda salvar o coração do infeliz. Da mistura dos restos
mortais de Zagreu e das cinzas dos Titãs brotou a humanidade, composta pela
parte divina oriunda de Dioniso e da parte corpórea dos Titãs, de onde surge
uma dupla natureza: a soma titânica é a cadeia que aprisiona a psique
dionisíaca, uma estrutura inédita no pensamento grego, eterna, imperecível.
Qual é a grande novidade do culto a Orfeu? A principal é que
a perspectiva monista da religião pública é convolada em um dualismo corpo-alma,
e toda a realidade passou a ser dupla. Em cada homem reside uma porção divina,
representada pela alma (o coração de Dioniso), e uma parte terrena, advinda das
cinzas dos titãs. A porção psique do homem é uma alma que fica aprisionada em
um corpo por conta de uma culpa original, interpretada como derivada do ataque
dos Titãs ao Zagreu. Dessa forma, uma alma degenerada junta-se a um corpo que
carrega uma corrupção. Essa alma não nasce junto com o corpo e não se extingue com
ele, como diria o paganismo grego, mas, ao contrário, subsiste a ele e
pode voltar a encarnar em outros corpos, até que todo resquício de erro de sua
culpa original seja purificado, saindo do ciclo de encarnações. O princípio
geral para a saída desse ciclo infinito é a adoção de uma vida regrada, próxima
ao ascetismo, sendo que a recompensa é um regresso ao divino, livre das
intempéries da vida terrena. A alma é o homem divinizado, e o próprio eu de
cada um tende a procurar formas de purificação para uma reaproximação à
deidade.
Perceba-se que da religião pública se extraiu uma forte ligação
com a natureza, o que explica a busca pela arché e os inúmeros trabalhos
denominados De Natura (Sobre a Natureza) que foram exatamente os
primeiros tratados de cunho filosófico, já calcados no raciocínio, e não na Mitologia.
Mas dos mistérios órficos ganha-se uma explicação e uma nova lógica para as
condutas durante a existência, que passam a incluir um prêmio (o retorno aos
deuses) ou penalidade (a obrigação de reencarnar), de acordo com a virtude
aplicada às ações de cada um. Isso tira da pauta o naturalismo da religião
pública e coloca um reconhecimento do homem como um candidato a um plano multidimensional.
Quais são os reflexos disso tudo? Certos pensadores são
totalmente dependentes da mistagogia órfica, como Pitágoras,
Empédocles
e Heráclito,
porque somente a perspectiva dualista faz com que suas filosofias tenham
sentido. O Hiperurânio
platônico tem forte conotação metafísica a partir de uma mesma visão dual, o
que acabou respingando nos seus sucedâneos helênicos, especialmente estoicos
e epicureus
(embora o entendimento público seja mais expressivo nessas correntes), e também
os adaptadores do platonismo ao Cristianismo, como Santo
Agostinho. Todas as religiões de matriz abraâmica acompanham o mesmo pano
de fundo soma-psique, ainda que sob a égide de uma divindade monolítica, o que
inclui a noção de pecado original e remissão de pecados, mesmo que estes não
tenham sido cometidos pelo indivíduo. As religiões orientais, africanas e mesmo
o moderno Espiritismo adotam, com diferentes níveis de aderência, à noção de
metempsicose proclamada pelos órficos, cujo exemplo mais próximo que tenho em
mente é o do Budismo. Vejam só
quanta coisa.
Por fim, por que chamamos o Orfismo e outras correntes
divergentes da religião popular grega de religiões de mistérios? Isso ocorre
porque, como eu já disse, a mitologia clássica preponderante não possuía um corpus
sistematizado, que estivesse baixada por escrito em algum livro. Também não
tinha um caráter normativo ou dogmático, impondo grande quantidade de regras
éticas para moldar o meio social, com poucas cargas rituais e litúrgicas. Mais
ainda: a falta de uma perspectiva de revelação divina fez com que a religião
não fosse custodiada por uma casta sacerdotal, que, até mesmo por isso, não
exercia grandes influências políticas e sociais, bem ao contrário do que ocorre
em outras religiões. Até mesmo por essa falta de rigor, ocorria com essa
religião o que víamos com frequência no Brasil: se o sujeito não tem uma
religião muito bem fixada e com poucos hábitos culturais, ele diz que é
católico, para ficar inserido em uma zona de conforto, batizando os filhos
porque ele mesmo foi batizado, indo a casamentos e exéquias e, eventualmente,
assistindo uma missa. O seguimento das regras é bem mais rígido que isso, mas o
nível de cobrança é bastante baixo.
Já as religiões de mistérios são muito mais rigorosas no
quesito custódia. O mistagogo (do grego mystes+agogos, aquele que
transmite o ensinamento dos mistérios) é o detentor de um conhecimento que não
está disponível para qualquer um, que necessita enfrentar ritos iniciáticos e
passar por etapas graduais para atingir um determinado nível na hierarquia da
religião. Não se trata de uma religião oculta, mas que possui um cerne
conhecido e franqueado unicamente a indivíduos escolhidos ou preparados para
cuidar dos rituais, em algo mais ou menos assemelhado a sociedades como a Maçonaria
ou Rosa Cruz. Neste sentido, é o oposto da religião pública, aberta a qualquer
cidadão sem a necessidade de iniciação.
Então é isso. Cumpri minha obrigação de deixar mais claro o
modo com que os antigos gregos davam tratos às suas bolas e desenvolveram todo
esse cartel de sabedoria a partir de suas crenças e de suas mitologias, sem
esquecer que a Filosofia nasce a partir da racionalização de todas essas
histórias. Bons ventos a todos!!!
Recomendação de leitura:
O artigo abaixo é um bom ponto de apoio para que se possa
entender um pouco melhor o que é e como se desenvolveu o culto órfico:
TARZIA, Milena. As Práticas Órficas: Conexão entre
Rito e Mito. In: Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais.
Maringá: UEM, 2015. Disponível em: http://ppe.uem.br/jeam/anais/2015/pdf/035.pdf
Acesso em: 18.11.2021.
* É preciso lembrar que livros como a Teogonia
de Hesíodo e Ilíada e Odisseia de Homero não eram livros de
regras religiosas, mas narrativas sobre a origem e vida dos deuses.
Nenhum comentário:
Postar um comentário