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quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Sobre as peculiaridades da visão de Xenófanes sobre o cosmos e a arché

(Sempre que falamos sobre os primeiros filósofos, esquecemos de Xenófanes, mas sua visão era bastante própria e interessante)

Olá!

Os campinhos do Disparada e dos Veteranos, o quarteirão da Doces Santa Fé, as chácaras nas margens do Córrego da Moóca, as bordas da ferrovia Santos-Jundiaí, o caminho que acompanhava a adutora do Rio Claro, o quintal da Dona Lúcia, a rua da minha casa. Estes eram os lugares onde eu-menino respectivamente jogava bola, empinava pipas, roubava amoras, cortava caminho, ia para a escola, buscava ovos e, claro, saía de casa. De comum, todos estes lugares tinham o piso: terra, a terra batida típica das cidades que transitam de um ar ainda rural para a definitiva metropolização. Aquela terra já pobre, dura, cheia de formigueiros, e que criam uma espécie de camada saponificada quando cai a garoa, dando a ilusão de rinque de patinação indesejado a quem sai por compromisso.

Minha casa ‘inda tinha daqueles raspa-barros no portão, peça encontrável nos bairros mais antigos até hoje como um monumento aos incidentes de outrora, e minha mãe mantinha um pano de chão bem ao lado da torneira, para eu dar uma “tirada no excesso” assim que chegasse da rua com terra além dos sapatos. Fazia isso para evitar o rastro que chegava até o banheiro, e também não ter que me aplicar um dos seus inúmeros corretivos.

Naquelas pegadas, havia histórias de vida, como essas que eu conto agora. Era a terra que veio sendo cada vez mais afastada de nossos pés imundos, sempre sujeitos a cortes e vermes, mas que hoje estão protegidos por camadas de impermeabilização e tênis de marca. A mesma terra socada está embaixo do asfalto e do cimento, isolada das calçadas por muros tão altos que nem conseguimos supor se ainda há alguma flor que se plante nela, fora dos vasos que ficam nos parapeitos das janelas.

Esse é o painel que já meus filhos tinham para se relacionar com a terra, embora ainda na infância deles houvessem alguns poucos terrenos que hoje estão com prédios em cima. Essa terra que ainda é muito visível nas cidades do interior virou quase um artigo de exposição em Terra da Garoa e outras capitais, e é óbvio que esta relação tão telúrica em outros tempos está completamente diferente hoje em dia.

Sinto falta da terra? Olha, sinto falta é da minha infância, mas não posso deixar de sopesar custos e benefícios. Por um lado, era o inferno quando chovia e precisávamos chegar de aventais brancos na escola, porque os respingos eram inevitáveis, mas isso garantia matéria-prima para as boas guerras de lama no retorno. Asfalto representa piso decente para colocar o carro, assim como aumenta o perigo de atropelamentos de nós-crianças brincando nas ruas. Era garantia de espaço para brincar, assim como das doenças de barriga, que nos obrigavam ao dia do “salamargo”, uma mistura de ritual com higiene, quando nossas avós deixavam o medicamento exposto ao sereno, para no dia seguinte fazer a purgação. Não estão entendendo? Tinha um dia todo santo ano em que éramos vermifugados, com sal amargo, licor de cacau ou limonada purgativa, qualquer um dos três, que funcionavam de maneira similar: o purgante dava uma caganeira daquelas, o que fazia com que os intestinos ficassem “depurados”, ou seja, tudo se esvaísse das tripas, incluindo os vermes. Acho que funcionava, porque eu estou vivo até hoje.

Então é muito complexo dizer se era melhor ou não o tempo da terra nas barras das calças. Tudo vai depender de se achar isso uma sujeira indesejável ou um romântico distintivo dos tempos. Tendo a acompanhar o tempo que passa, e prefiro as coisas como estão, desde que preservados os devidos espaços para o equilíbrio pluvial de nossas cidades.

Falo tudo isso porque estou inspirado pela terra e pelo irrigador de plástico que instalei no meu quintal. É a prova maior de que coisas baratas não são sinônimos de coisas ruins. Gastei exatos vinte reais em um treco desses, que fica espetado na terra e girando de acordo com as regulagens, o que é uma autêntica mão na roda. É ligar a mangueira e contar dez minutos para que todo o projeto de horta fique devidamente molhado, sem qualquer tipo de esforço.


Vendo que deu certo, vou colocar mais uma dessas na diagonal oposta do quintal e cobrir o terreno com mais precisão e menos força necessária, economizando água. Aproveitei o calorão infernal do Vale e tomei um banho de aspersão, como não fazia há muito tempo.

Ficar na chuva simulada, enchendo os pés do antigo barro da minha infância me fez passar pela cabeça pensamentos igualmente infantis, como aquela velha assertiva bíblica – tu és pó e ao pó tornarás. Como seria se desmanchássemos ao contato com a água? Fiquei pensando nos filósofos da physis, aqueles cujo grande propósito era encontrar a arché, o fundamento de toda a realidade, conforme esmiucei aqui. É sempre fácil lembrar de Tales, Empédocles, Anaximandro, Demócrito e outros, mas poucos mandam de cara Xenófanes de Cólofon, talvez porque ele tenha eleito a terra como elemento primordial, o mais simples de todos, o mais ordinário, o mais, digamos, sem graça. Só que seu pensamento foi muito mais sofisticado do que essa constatação pode fazer crer, a ponto de ser uma espécie de pioneiro do monoteísmo. Vamos falar sobre ele.

A questão da arché em nosso herói ficará para o final. Seu principal pensamento tem a ver com a concepção que os antigos gregos tinham sobre suas divindades. A religião pública grega era caracterizada por deuses idênticos aos humanos, com duas diferenças fundamentais: a imortalidade e o poderio. De resto, tudo igualzinho, seja no físico, seja nos temperamentos, seja nos costumes e por aí vai. O deus grego é tal e qual um grego. Xenófanes observa que os deuses etíopes são negros e com os narizes largos, assim como os deuses trácios são ruivos e de olhos azuis, repetindo o mesmo fenômeno que ocorria na Grécia: os deuses locais são reproduções dos homens locais. Ele chegou à conclusão de que, se os animais possuíssem discernimento suficiente para moldar seus deuses, também o fariam à sua imagem e semelhança, com poucos diferenciais.

Isso tudo levou Xenófanes a se contrapor às teogonias de Hesíodo e de Homero, que nada mais faziam do que sistematizar o pensamento teológico do grego comum: os deuses nada mais são do que homens privilegiados, e que assim são porque cada cultura molda seu deus, como sintetizaria muitos séculos mais tarde o alemão Ludwig Feuerbach, que afirmava ser a Teologia uma forma de Antropologia, onde os deuses de uma cultura dizem muito sobre a consistência dos homens desta mesma cultura. Sendo que este último influenciou decisivamente na tese marxista da alienação, poderíamos dizer que Xenófanes era um pré-comunistão?

É forçar muito a barra, né? Até mesmo porque, se Xenófanes era contrário ao pensamento teológico helênico, isso não queria dizer que ele mesmo não tivesse suas próprias ideias com relação ao assunto. É um pensamento bastante inovador para a época, que abandonava a antropomorfização dos fenômenos e descarregava das divindades as paixões humanas e seus consequentes defeitos, dando rumo a uma forma de monoteísmo por um lado, de panteísmo por outro.

As réguas humanas são ineficazes para mensurar os deuses. Uma coletânea de deuses feitas a partir dos fenômenos que observamos no cosmos, como era de rigor no paganismo grego, era uma simples forma de suprimir a falta de reconhecimento que a divindade está em outra espécie de dimensão. Isso acontece porque, segundo Xenófanes, o universo é uno e deus é uno, identificando-se um com o outro. Não uma magna comitante caterva olímpica, como diriam os gregos, ou uma Asgard nórdica, ou qualquer outra forma de residência divina, porque a deidade não está aqui ou ali, ela se espraia pelo universo inteiro e é o próprio universo inteiro, ideia que mais tarde veio trazer problemas a gente como Giordano Bruno e Espinoza.

Notem que a proposta de Xenófanes é ao mesmo tempo monoteísta, porque preconiza que apenas um deus existe, e não vários; e panteísta, porque sendo deus o universo inteiro, tudo é deus, imutável porque pleno, irremovível porque alocado nos fundamentos. Esse é o principal ponto do frágil vínculo que os historiadores da Filosofia fazem com os demais eleatas, Parmênides à frente. Entretanto, os filósofos de Eleia eram fundamentalmente ontológicos, enquanto Xenófanes busca uma resposta cosmológica, como veremos adiante.

Diferenciar o monoteísmo do panteísmo parece simples, mas não é. Pelo ordinário estudo etimológico, um seria significado de “deus único”, enquanto o outro seria "tudo é deus", mas é plenamente possível fazer coincidir ambas as visões. Se esse tudo que significa o pan grego se referir a um único deus que se revela em vários aspectos e de múltiplas formas, então teremos uma coincidência de significados. Isso pode parecer estranho porque estamos acostumados a monoteísmos com um deus que se aparta – ele cria o universo e os homens, mas não se identifica com nenhum deles. Já esse panteísmo de um deus só é uma inovação clara, na medida em que a própria substância divina é a arché: tudo emana dela e permanece nela. Esse é o modelo de deidade tremendamente mais sofisticado que os deuses antropomórficos dos gregos, fortemente vinculados às características físicas e psicológicas dos humanos.

O que não está explícito atrás dessa maneira de pensar é uma epistemologia. Não é dado ao homem compreender toda a dimensão do universo, e por este motivo ele tem necessidade de fazer adaptações. A majoração das propriedades humanas para emular deuses é uma mostra de que temos um impulso em cobrir buracos cognitivos, o que fazemos até hoje (vide aqui e aqui). Essas teses que criamos tem a aparência de verdade, mas são apenas opiniões. O universo como algo imóvel e imutável é impossível de perceber, e somente pode ser deduzido através do intelecto. Olhando através dos sentidos sempre se terá a sensação de mudança e transformação, no que é o principal ponto de contato de Xenófanes com os eleatas.

Xenófanes ainda tinha uma concepção original com relação à arché. Diferentemente dos demais filósofos-físicos, o elemento que ele entendia ser a essência primordial limitava-se ao próprio planeta, distinguindo-se do uno no sentido de que, dentro de sua esfera, era o princípio originador. Nisso não há contradição, porque o uno dá origem a essa arché, que, por sua vez, é basilar na constituição de tudo o que existe nesta combalida bola azul. Esse elemento era a terra.

E por que ela? Xenófanes faz observações muito interessantes para chegar a esta conclusão. Primeiramente, observa que, apesar da imensa área marítima que circundava o mundo conhecido, sempre ela era fundeada por terra, por mais profunda que se encontrasse. O fundo de um rio era terra, de um lago, de um poço, do oceano. A água se fazia misturar com a terra, até o limite onde somente ela existia. Além disso, e o que é mais astuto, nosso amigo de Cólofon observava que era possível encontrar conchas e fósseis de peixes em lugares muito distantes das margens oceânicas. Isso o fazia concluir que esses lugares um dia estivessem cobertos de água, e por isso esses fragmentos se encontravam lá. A presença destes restos de seres vivos era uma maneira de antever seu retorno para o elemento fundamental, o que reforçava sua tese.

E é isso. Vou aproveitar o calorão e relembrar um pouco mais dos tempos de criança. Agora no cair da noite é o momento ideal para regar o quintal e tomar um banhão com essa nova mangueira coxinha que eu arrumei. Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Vou recomendar o canal Parabólica, do professor Pedro Rennó, que contém boas séries sobre Filosofia, incluindo os pré-socráticos que costumo abordar neste blog.

https://www.youtube.com/c/Parab%C3%B3lica

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