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sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Feminismo: o que ele é e o que ele não é

(O feminismo é uma questão muito ampla e que gera um bocado de desajustes. Vamos tentar conciliar alguns deles)

Olá!

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Como nasce um preconceito? Basta que se analise a própria palavra para se saber. Conceito tem a mesma origem etimológica da palavra concepção, que significa guardar dentro de si, gerar a partir de si, e pré significa antes. Preconceito, portanto, são ideias preconcebidas, que são formadas antes que tenhamos contato com o objeto de nosso suposto conhecimento. Suposto porque o preconceito consiste nisso: mera opinião. O preconceito faz com que tenhamos ideias errôneas não só sobre determinadas pessoas, mas também sobre determinados assuntos. Por essa razão, redigi pequenos textos de perguntas e respostas, com o intuito de dar informações a confusões que se fazem por pura e simples falta de pesquisa. Minha ideia não era criar uma série, mas eu tive o efeito mental de perceber que várias temáticas se ressentem desse problema, e a coisa foi crescendo. Sendo assim, resolvi criar uma página para rotear todos esses assuntos, já que a coisa cresceu. Aproveitem e sugiram temas.

Aproveitando a introdução, a pauta dessa vez será o feminismo. É um tema que aparentemente é muito simples, em parte porque está em nosso dia-a-dia, mas que é crivado de má vontade, porque nele está sintetizado um confronto que existe há décadas, e que muita gente tende a subestimar. Já vi gente que é arraigado combatente do racismo colocando o feminismo como uma pauta menor e, embora não seja uma posição comum, é muito sintomático de que algo vai mal quando acontece.

Provavelmente não se compreende muito bem o que seja o feminismo. Parece simplesmente mais uma versão da guerra de poder, como aconteceu já tantas vezes neste cada vez mais quente planetinha azul. De certa forma, é mesmo, mas não no puro e simples sentido de se trocar um detentor por outro, e sim para que se tenha um reconhecimento melhor da igualdade de direitos em um sentido mais amplo, e na constatação de que não há lógica em se nomear uma hierarquia entre gêneros, de modo mais estrito.

Por conta disso, vou seguir no método dos demais textos desta série e tentar trazer algum tipo de luz sobre o assunto, ou ao menos não o tornar ainda mais nebuloso. Vamos começar pelo mais básico…

O que é feminismo?

Feminismo, ao contrário dos demais temas da série, é aquilo que chamamos de termo guarda-chuva, ou seja, um nome genérico sob o qual temos várias acepções diferentes. Isso acontece dada a multiplicidade de correntes que vieram surgindo através dos tempos, cada uma com um objeto mais ou menos específico. Porém, de um modo geral, o feminismo é o conjunto de movimentos que defendem a igualdade política e social entre homens e mulheres.

O que é sexismo?

Esta pergunta é importante de responder porque há outra que é subsidiária a ela, que virá logo na sequência. O sexismo, ao contrário do feminismo, não é um movimento, mas uma atitude que considera que um dos sexos é superior ao outro, seja por características físicas, por predisposições históricas, por imposição social ou qualquer outro modo de distinção.

O feminismo é sexista?

Existem raras exceções, mas via de regra o feminismo não é sexista porque não inclui uma ideia de superioridade do sexo feminino. O que o feminismo defende é uma igualdade de direitos entre homens e mulheres. Hoje podemos achar incrível, mas o voto feminino é uma “invenção” recente. As mulheres não votavam porque elas não eram tidas como costumeiras titulares de direito possessórios, nem eram atuantes no mercado de trabalho formal. Querer votar, assim como os homens, é uma reivindicação que não coloca ninguém como melhor ou pior, somente assegura o mesmo direito a ambos os sexos. Essa é a natureza geral dos movimentos feministas. Portanto, não existe sexismo aqui, a não ser que o caso fosse de inverter as condições: dar apenas às mulheres o direito de voto, no exemplo.

Por que o feminismo é tão complexo?

Porque ele não é um movimento unívoco. Tem inúmeras faces e derivações que abrangem qualquer camada social. Uma boa parte dos historiadores especializados ensina que o feminismo veio em ondas, onde cada uma atendia interesses específicos que tinham diferentes abrangências. Na primeira, tínhamos as reivindicações mais gerais, com relação a direitos mais básicos e que atingiam qualquer mulher; na segunda onda, percebe-se que os direitos pleiteados por mulheres negras, indígenas e de outras etnias necessitam de mais profundidade do que aqueles das mulheres brancas, com muitas discussões próprias. Na terceira, entra na pauta os direitos das mulheres trans. Não se trata de uma divisão consensual, mas é possível perceber como os diálogos progridem e se tornam mais abrangentes com o tempo.

As mulheres são diferentes dos homens. Por que pretendem igualdade?

A igualdade não pressupõe uniformidade. Somos iguais quando podemos fazer as mesmas coisas, e não quando devemos fazê-las. É óbvio que a lei submete todos os cidadãos a certas regras, e é assim mesmo que funciona, mas a igualdade existe quando todos podem ou devem fazer as mesmas coisas. Reivindicações sobre remuneração igual para função igual e experiência semelhante não significam que preferências e costumes precisem ser os mesmos, entenderam?

Mas os homens continuam fazendo o trabalho mais pesado. Isso não lhes garantiria melhores direitos?

Poderíamos dizer que o "contrato de trabalho matrimonial" reproduzia a lógica de que os homens saíam para caçar enquanto as mulheres cuidavam da prole, e que lhes caberiam as melhores porções porque precisavam de força e, principalmente, foram eles que caçaram. Mas que sentido faz isso hoje em dia? Por um lado, os trabalhos fisicamente extenuantes têm diminuído a olhos vistos; por outro, os cuidados com os filhos passam a ser cada vez mais partilhados.

Se as reivindicações dos movimentos feministas são justas, por que geram tanta reação?

Pense que você está na rua comendo um saco de salgadinhos da sua preferência. Se alguém chega em você e reivindica metade de sua guloseima, você não vai gostar. Será preciso tempo e justificativa para que se tire sua noção de injustiça e você concorde em dividi-lo, porque você não vê nada de errado na situação privilegiada. O que os movimentos feministas pedem não são encarados como equalização de direitos, mas como concessão de privilégios, e isso nunca é bem visto sem mudanças nos paradigmas sociais.

As feministas falam muito do tal do patriarcado. O que seria ele?

Patriarcado é a estrutura social que favorece os indivíduos de sexo masculino. Isso é visível quando olhamos para as composições governamentais e verificamos que, apesar da divisão meio a meio na população, há uma predominância muito expressiva de membros do sexo masculino. Mulheres são estranhas no ninho dos núcleos de poder e, quando lá chegam, podem carregar uma aura de que o conseguiram por meios imorais. “Vaginocracia”, o comando das que se dispõe a sofás para a ascensão social, é um dos termos mais cruéis que eu já ouvi, porque reduz as ocupantes à sua ação sexual, e não sua competência.  

Entretanto, revistas de entretenimento masculino estão acabando. Isso é sinal de que há uma menor objetificação das mulheres?

É ingênuo pensar nisso, porque, se existe, é um fator para lá de secundário. A Playboy acabou por causa da internet. Um usuário qualquer repassava as fotos para acesso franco de quem se dispusesse a acessá-las, e os caros cachês deixaram de valer a pena. Essa é a real. Além disso, a objetificação hoje está nos sites de vídeos, o que nos mostra que ela não deixou de existir, apenas mudou de mídia.

O que atrapalha a militância feminista?

Obviamente existe resistência, mas certas correntes do feminismo são muito agressivas. Compreende-se. De acordo com a teoria da mola do Pirulla (assistam aqui), momentos de tensão máxima geram reações extremadas, em ambos os lados do artefato em pressão, mas tendem a se acomodar com o tempo e quando há concessões. Mas de fato há feministas que enxergam sexismo em tudo, que dificultam o diálogo e que tornam a causa antipática. Além disso, devemos admitir que as coisas não vão mudar do dia para a noite, e que dedos na ferida costumam doer. Quando isso acontece, o lado atacado simplesmente fecha os ouvidos, e é duvidoso se o método faz passar do engajamento de quem já é engajado. Fica só aquele famoso “pregar para convertidos”.

Uma lei como a do feminicídio não é sexista? A lei Maria da Penha não era o bastante?

Em que pese o monte de demagogia envolvido na criação deste tipo de lei, o fato é que existe um problema que precisa ser combatido. A violência doméstica é real e ocorre quase em sua totalidade contra o polo feminino da relação. Embora tratem do mesmo objeto, a Maria da Penha trata de questões protetivas, como a possibilidade de denúncia e prisão preventiva dos acusados, enquanto a lei do feminicídio modificou o Código Penal, formalizando um agravante nas condições de um homicídio e aumentando o tamanho da pena. São, portanto, complementares. Tem mais uma coisa: a lei Maria da Penha já foi utilizada para violência doméstica de mulheres contra homens através do princípio da analogia.

Então será preciso implantar leis para tudo? O feminismo é um grande legalismo?

É óbvio que não é possível nem desejável que todos os aspectos da vida social sejam subvencionados por legislações. Elas engessam as engrenagens e tolhem liberdades, e o pior: não alcançam tudo. Eu posso agravar penalidades contra o assassinato de mulheres, mas não tenho como criar leis que obriguem a sociedade a considerar mulheres tão competentes quanto homens. Para isso, é necessária uma mudança de visão, e não de legislação.

Você é homem. Não tem lugar de fala neste tema.

Essa questão do lugar de fala é um dos maiores mal-entendidos modernos, e já expliquei em detalhes neste texto. Mas vou dar uma repassada. Lugar de fala todo mundo tem, e serve para dar um espectro geral do que a sociedade pensa como um todo a partir da colocação de cada um dos componentes sociais. Afinal de contas, todos nós participamos do espaço público, cada um tendo sua própria perspectiva ou, melhor dizendo, perspectiva da soma de sua individualidade com seu estrato social. Como homem, eu tenho um ângulo da questão, independentemente de minha representatividade, assim como ocorre com homens e mulheres trans e cis, e qualquer outro indivíduo.

Eu não vou me aprofundar muito, porque apesar de ter lugar de fala, não sou grande estudioso no assunto, e não quero me colocar em polêmicas nas quais não sou muito inteirado, e também não vou colocar aquelas questões que suscitem ironia ou desprezo, tão comuns nos debates que pendem para o desprezo. Estou em processo de aprendizado permanente. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Para pegar um apanhado geral dos diferentes movimentos e selecionar autores para se aprofundar.

VÁRIOS AUTORES. O Livro do Feminismo. Col. As Grandes Ideias de Todos os Tempos. Rio de Janeiro: Globo, 2019.

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