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terça-feira, 22 de julho de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: a injustiçada Portuguesa e os símbolos deixados de lado

(É bom se atualizar, mas sem que isso apague nossas origens)

“O senhor afasta muitos homens da velha tripulação para embarcar outros na outra margem: tenha cuidado para que não lhe aconteça perder os velhos sem encontrar os novos”.

Giovanni Guareschi

Olá!

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Quando eu era pequeno, morei por um brevíssimo tempo na vila do Manito, um imigrante português que veio para o Brasil em fuga da pobreza e das peripécias de Salazar, lá pela década de 40, em uma dessas travessas perdidas pela então semi-agrícola Vila Ema. Era um lugar curioso, porque não se tratava de um cortiço, mas de um beco sem saída em forma de “S”, todo feito de casinhas de cômodo e cozinha, iniciando pela venda do Manolo (outro português, ora pois), e terminando em uma pracinha onde ficava a casa maior, do próprio Manito. Uma passagem pela lateral garantia acesso à chácara do seo João, lindeira ao Córrego da Mooca, onde hoje reina o asfalto precário da Anhaia Melo. Bem ao fundo, havia um galpãozinho encimado por um tabique onde nosso herói criava pombos, e tudo isso ficava ao lado de uma fábrica de brinquedos, a Bandeirante. Acho que todo mundo já teve um brinquedinho de plástico dessa fábrica. Era evidente que sua intenção era ter uma vila de casas operárias com aluguel de baixo custo, para abastecer a tal fábrica.

Eu ainda era beeeeem criança, e, desse tempo, não lembro de quase nada. A questão é que minha nonna morava na rua paralela, e da laje de onde ela criava suas codornas e estendia suas roupas dava para ver todo o complexo do Manito, e, mais tarde, lá eu praticava uma rara atividade contemplativa: as revoadas dos pombos do nosso caro senhorio lusitano. Eles ficavam circulando toda a área que ia da fábrica à beira do córrego, por cima das chácaras. Faziam traçados que incluíam curvas suaves e repentinas, subidas e descidas, trocas de lideranças, em uma coreografia que me deixava dúvidas de seus motivos, mas que me encantava pela orquestração, que terminava com o pouso no barracão, todos juntos, como se fosse a esquadrilha da fumaça (sem fumaça). Ali, logo ao lado, um puxadinho permitia à dona Rosa, esposa do Manito, estender suas roupas, e daí ambos provavam suas origens e predileções: os coletes e bombachas do bailarico que participavam e as camisas da Portuguesa, a sua grande paixão.


A Portuguesa era, então, um dos grandes times de São Paulo. Uma mistura folclórica de azares inexplicáveis e má vontade arbitral fazia com que os títulos fossem raros, mas a Lusa estava sempre no topo das tabelas, formando esquadrões respeitáveis e, principalmente, disponibilizando muitos jogadores para o futebol brasileiro. Seus jogos contra os papa-títulos eram considerados clássicos, ou seja, a Portuguesa era um deles, um dos grandes, capaz de fornecer jogadores para a Seleção Brasileira e conquistar títulos mundiais, embora fosse atribuída a ela uma espécie de síndrome de Robin Hood: roubar pontos dos maiores para entregar aos pequenos. São pequenas coisas de um grande futebol, já diria Ary Silva.

Estranhamente, entretanto, as camisas que eu via nos varais do Manito não eram comuns de se ver por aí. Nos botecos que meu pai frequentava não se viam, nem na escola, nem nas ruas em que eu brincava. Nos jogos que meu avô me levava no Canindé, a torcida era sempre pequena, muitas vezes superada pelo adversário que a visitava. No Pacaembu, onde meu pai me levava, ela sumia, restrita a um cantinho do tobogã. E isso foi uma das perguntas que eu me fazia nos meus primórdios futebolísticos: por que ninguém gosta da Portuguesa?

Na verdade, a pergunta pós maturidade mudou um pouco, até mesmo porque eu gosto da Portuguesa, sempre fui bastante frequente em seus jogos, e vi gerações diferentes de ótimos jogadores, como Enéas, Toninho, Edu Marangon e outros, até mesmo em sua fase de derrocada, ocorrida após 2013. E, sim, já escrevi sobre ela. A pergunta passa a ser: por que a torcida lusa é tão pequena?

Eu tenho minhas teorias, muitas delas já pensadas por outras pessoas (poucos títulos, concorrência com times maiores, nicho imigratório), mas a principal delas diz respeito a uma contradição de identidade: ao mesmo tempo em que há um vínculo evidente com uma colônia específica, há também uma perda de tradições que faziam sua magia. Vamos detalhar.

As coisas são únicas não apenas porque se distinguem das demais, mas porque se mantêm assim ao longo do tempo. Mais: embora possa se compreender que a identidade é uma relação que se tem consigo mesmo, ela é rigorosamente necessária para que se estabeleça relações com os outros. Aquele que é único carrega consigo a característica de ser distinguível entre os demais, e oferecer justamente isso em suas relações. Afinal de contas, a maneira com a qual eu me apresento em uma relação já diz sobre mim. Pois bem.

A Portuguesa tem símbolos pesados, como as cores da bandeira portuguesa e seu próprio nome, mas que, volta e meia, pensa-se em mexer neles. Houve algumas vezes em que se pensou em mudar seu nome, ideia cretina na opinião deste pouco humilde escriba. Acabou não acontecendo, mas algo teria que sofrer respingos da tentativa de popularizar a equipe. A Lusa tinha como um de seus principais símbolos a Severa, sua mascote humana, coisa rara neste mundo que adota bichos e mais bichos para esta função. É uma dançarina de vira* com todos os trajes típicos, como o lenço na cabeça, o xale, o avental com o distintivo e as tamancas. Representa, portanto, uma das manifestações culturais mais típicas da comunidade portuguesa e mais distinguíveis dentre tantas etnias que temos em Terra Brasilis. Sempre que você for a uma festa das nações, é dessa forma que a comunidade portuguesa se apresentará, indefectivelmente. Sendo assim, a Severa é indubitável.

Acontece que a Portuguesa resolveu mudar sua mascote, passando a utilizar um prosaico, ordinário, trivial, corriqueiro, consueto, banal, comezinho leão, mais um dentre tantos. Há incontáveis times cuja mascote é um leão: Sport, Vitória, Fortaleza, Jabaquara, Remo, Bragantino, Mirassol, Avaí, Inter de Limeira, Cianorte, Comercial de Ribeirão, Villa Nova, Nacional de Manaus, Peñarol de Manaus, Baraúnas, Jacuipense, Hercílio Luz, Potyguar, Capivariano, Bandeirante, Taquaritinga, Inter de Lages, União Barbarense, entre tantos outros que não tive paciência para pesquisar. Fora os estrangeiros, como o Chelsea, Estudiantes, Bologna, dentre muitos outros. Nada contra os simpáticos leõezinhos, que representam força, reinado e tantos outros atributos associáveis ao futebol, até mesmo porque os motivos para a doação são diferentes para cada um deles, mas é que a Portuguesa trocou um elemento forte de identificação por outro muito menos concatenado às suas origens. A dançarina compartilhava unicamente seus dotes com sua coirmã do litoral, a Cachopa da Briosa, o que fazia todo o sentido do mundo. Com o leão, é um entre outros.

A ideia parece dupla: criar uma mascote popular e puxar o saco homenagear sua principal torcida, a Leões da Fabulosa. Essa organizada tem fama de ser pequena (quando comparada a uma Gaviões da Fiel da vida), mas extremamente engajada e, às vezes, meio brusca nas cobranças. Na verdade, conversando no miúdo, a ideia é tripla. Há também um fator muito mais doloroso, que já debati no texto sobre a coirmã santista. A Severa não é reconhecida por este nome pelas demais torcida, mas como “burra”, fruto do preconceito arraigado e tão conhecido contra os portugueses. Ou seja, o terceiro sentido está em uma ocultação, o que, se for verdade, é um erro desditoso. Mas vamos partir da premissa dupla, para não gerar polêmicas.

Ora (direis), símbolo é símbolo. O que resta de efetivo é o concreto, então é lícito que os símbolos sejam mudados e adequados a uma realidade distinta. Certo, interlocutor imaginário, símbolos mudam como a própria vida, mas a questão é que se mira a cabeça e não se acerta nem o pé se a escolha não for ponderada. Vemos milhares de leõezinhos tatuados em braços e pernas hoje em dia, demonstrando o quanto o símbolo de realeza e força é potente e popular**. Perguntado sobre o assunto, o tatuador que me traça rabiscos disse ser, de longe, a mais pedida de todas as figuras contemporâneas, a quilômetros de distância da segunda colocada. Portanto, leões são símbolos bem acolhidos sob vários aspectos. Mas o mascote não é um mero símbolo, e sim uma representação de uma marca com valor intrínseco, o que traz uma espécie de “promessa” fundamental, de que há algo nela que a distingue das demais. A marca marca, e é um elemento tão forte que, por vezes, é o ativo mais valioso que uma empresa possui. Pergunte à fábrica dos Sucrilhos© se você pode usar o tigre dela para fazer sua publicidade – você terá um sonoro “não” sucedendo uma gostosa gargalhada, ou, no mínimo, um orçamento impagável. Mascotes não são objetos que se trocam, como os bibelôs das estantes, porque carregam significados inapagáveis para quem os adota. A não ser em casos especialíssimos. E este não me parece um deles.

A mascote é um símbolo, e, como tal, traslada um sentido abstrato através de sua materialidade. Em outras palavras, seu valor concreto deixa provisoriamente de ser o que é para adquirir um novo significado. E nós não somos só nosso corpo material, mas também tudo o que nós queremos transmitir aos outros e a nós mesmos. Sentimos orgulho em vestir a camisa de nosso time e incorporar em nós toda a chuva de significados que ela nos traz, e dizer ao mundo que aqueles valores são nossos. Dizemos muito através dos símbolos, como a cruz pendurada no pescoço, o círculo pacifista dos hippies, as camisas pretas dos rockeiros. Tudo isso transmite uma mensagem ao mundo que nos rodeia, dizendo como gostaríamos de ser reconhecidos, e sua escolha, mesmo que feita de modo espontâneo, precisa de uma carga de intencionalidade. Até mesmo uma cruz gamada diz muito sobre o que alguém pensa.

É bem verdade que a Portuguesa vem tentando resgatar a Severa, mas não sei até que ponto pode ser tarde. Já há bastante problemas a resolver, embora a recente adoção do modelo SAF possa ser o sopro esperado para resolver o que parecia insanável. Eu faria fortes campanhas de reparação nesse aspecto simbólico também. Deixem o leão para a torcida, onde ele está em bom lugar.

Sendo assim, embora eu não me considere um conservador, tenho reservas a guinadas que, por um lado não conduzem a nada, por outro abandonam o que tínhamos de mais importante. A um mascote, é atribuído um poder semelhante ao de um talismã, ou seja, a atribuição de se trazer boas energias, de atrair sorte, e isso vai além da mera crendice. É o resumo de um sistema de valores e, sendo assim, não se troca assim como se muda de camisa. Não se muda de camisa de um time.

Mas, pensando aqui, um talismã, se atrai boa sorte, não atrairá seu oposto se abandonado? A se pensar***.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Esse eu tenho autografado. É um livro de rememoração da maior campanha dos tempos recentes da Portuguesa, que chegou à final do campeonato brasileiro de 1996, que levou consigo toda a torcida da cidade. Comprei em uma feira de camisas na estação São Bento, antes da pandemia, diretamente com o autor, colunista do site www.netlusa.com.br. Nem sei se fazem esses eventos ainda.

ZORZI, André Carlos. Para Nós és Sempre o Time Campeão. A Portuguesa de Desportos no Ano de 1996. São Paulo: Edição do Autor, 2017.

* Ao lado do fado, o vira é uma das expressões musicais mais típicas de Portugal. São como duas faces da mesma moeda: enquanto o fado é mais introspectivo, o vira é mais comemorativo, evocando as chegadas das épocas de colheita e abundância.

** E o quanto temos de evangélicos hoje em dia, especialmente com uma certa flexibilização do lastro moral que norteia a vaidade. A figura do Leão de Judá, uma das designações mais populares para Jesus nos meios cristãos, cresceu na mesma medida em que as referências explícitas à religiosidade do contribuinte se tornaram mais importantes. Quem sabe eu não escreva mais sobre isso?

*** Mera brincadeirinha. Não acredito em poderes metafísicos, mas não quis perder a oportunidade.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

O café filosófico do quotidiano – sobre não compensar mais ter filhos

(Ainda faz sentido ter filhos neste mundo cada vez mais ameaçado?)

“Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

Machado de Assis 

Olá!

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Esse episódio da minha “carreira” de barista já tem um tempinho, mas era inevitável que ele acontecesse. Eu posso me considerar experiente em passar um bom cafezinho, mas na hora do espresso eu não tinha lá muitos recursos. É bem verdade que eu tenho uma mini, mas é um brinquedinho quando comparado aos grandes conjuntos profissionais, e aproveitei uma belíssima promoção para fazer um treinamento e aprender como lidar com essas maravilhas da tecnologia a serviço da estética palatável.

Não foi exatamente perto, e sim na municipalidade de Itupeva. Ora (direis), moras em São Paulo e precisas ir longe assim? É que o preço valia a viagem, com todo o programa que estava incluso, e Itupeva está a uma hora de São Paulo. Então fui, vá cuidar de sua vida, interlocutor chato. O curso foi todo em uma cafeteira grande, uma Astoria, daquelas de dois grupos, e incluiu pesagem, moagem, descarte, limpeza do equipamento, regulagem de pressão, tudo o que é preciso para dominar o mundo dos baristas. Faltou só a experiência, mas isso fica para um dia qualquer.

É óbvio que esses cursos não vendem apenas o conhecimento, e não vejo nada de errado nisso quando o propósito não é apenas e tão-somente vender produtos. Havia grãos e utensílios também lá, para quem se interessasse em partir para aprofundamentos. Além disso, havia também a divulgação de artesanato temático, e me interessei por um método de filtragem, esse aí embaixo:


Ele tem uma cara meio industrial, meio laboratorial, por motivos óbvios: um bloco de cimento fundido em seção circular recebe um conjuntinho hidráulico, e neste, um funil de vidro faz as vezes de porta-filtro. Bastante simples e semelhante com a solução que montei para fazer cold brew, o trabalho pode ser posto para girar com a adição de um filtro V60 pequeno.

Daí para frente, é só colocar o pó e iniciar a percolação. Como não nasceu com o fim específico de ser um método pensado para a melhor extração possível, é preciso passar a água aos poucos, sob pena de transbordar a preparação. Usar um pó mais grosso ajuda na tarefa.

Nome do utensílio: Porta-filtro artesanal

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Grossa

Dinâmica: Como qualquer método de percolação. Cuidado com a carga de água, já que o funil tem bojo pequeno

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio

Vendo os últimos pingos cair no decanter, surge a pergunta na cabeça: evidentemente, vou criar um texto para este método também. Mas até quando isso vai se seguir? Todo santo dia surge alguma novidade, então minha tarefa será infinita. Se a cada cor de porta-filtro, ou a cada formato de bocal eu for criar um texto novo, nunca pararei de escrever. É contraditória essa nuvem pessimista sobre o que não é negativo, por vários motivos. Essa não é mesmo uma série finita, e eu escrevo sob inspiração, e não obrigação. O dia que eu não quiser escrever, eu não escrevo e pronto – não sou pago para isso. Mas fiquei pensando na multiplicação infinita e fiz um vínculo meio afetivo, meio consequencialista de que cada coisa que eu escrevo tem uma metaforização filial, o velho chavão de que pari cada um deles e que não sou só seu responsável, mas também seu admirador. Parece estranho tratar um texto como um filho.

Lembro das discussões na mesa da família sobre as quantidades adequadas de filhos, e de como o vinho e a idade tornavam as opiniões mais radicais. Hoje em dia, essa discussão traspassa a mera janta do sábado à noite e vai permear correntes filosóficas que dizem ser errado ter filhos. Fiquei com vontade de explorar esse tema. 

Primeiríssima coisa é fazer um disclaimer*. Não vamos tratar aqui da velha assertiva do senso comum de que os pobres se multiplicam como ratos. Ela é, em primeiro lugar, falaciosa, e também não cabe a mim discutir o que cada um faz de sua vida. Também não quero falar de uma modinha que tem por objeto uma ênfase nas desvantagens em ter filhos, que atrasam carreiras, desmancham corpos, detonam orçamentos, porque isso passa e, dialeticamente, vem uma corrente dizendo que devemos povoar o mundo. Minha ideia é falar de filosofia.

Em primeiro lugar, só conseguimos falar de vida quando passamos pelo rito iniciático do nascimento. É um momento que já carrega consigo uma simbologia, mas, em termos práticos, é traumático para o neonato: uma transição de um meio líquido, escuro e com temperatura controlada para o inverso disso. Seu próprio organismo passa a ter que dar conta de muitas das funções outrora exclusivas de sua mãe. O momento de sua primeira respiração é decisivo e não se processa sem dor, além de iniciar um processo de fome e sede. O próprio ato do nascimento consiste em uma passagem por uma fenda estreita somente possível dada a flexibilidade de suas articulações. A vida começa com o sofrimento.

Daí por diante, temos aquela velha certeza da morte, que pode ser próxima ou não. A segunda certeza vem deste intervalo – ele sempre será povoado de dores. Só não as temos vivas na memória cem por cento do tempo porque nossa própria sobrevivência psíquica depende de não estar permanentemente em sua expectativa.

Aí surge uma grande questão. O confronto entre a quantidade de momentos felizes e as dores e sofrimentos compõem uma equação em desequilíbrio. Em tese, nossa prole é aquela a quem mais amamos, a quem mais nos entregamos. Há inúmeras figurinhas de feicebuque enaltecendo a entrega das mães, que tiram da própria boca para dar aos filhos e que, tirando toda a pieguice, refletem uma verdade bastante abrangente – é rara a mãe que não dá o melhor que possui para seus filhos. E a eles que, ao dar a vida, damos a dor. Não seria essa uma atitude antiética?

A ideia de que a vida é ruim em si mesma não é nova. Jesus mesmo é um daqueles que diz não ser seu reino deste mundo, e que somente uma vida futura traria conforto aos que sofrem. É óbvio que o Cristianismo carrega em si a ideia ambígua de que a vida é sagrada, mas que necessita de muitas restrições para se chegar à vida autêntica, razão pela qual é somente com Schopenhauer que passamos a ter uma visão mais consagrada do desequilíbrio entre prazer e dor. Ele pontua a vontade como objeto metafísico do mundo (sintetizado no instinto de preservação) e a escravização que gera sua contínua ação. Dá algumas opções para solucionar a questão, como a ascese e a apreciação artística, mas deixa em aberto o valor de se preservar a existência como um fenômeno coletivo.

Uma das soluções que poderíamos pensar tem aquela famosa frase dos jovens rebelados contra os pais: “eu não pedi para nascer”. É uma assertiva que normalmente ocorre naqueles confrontos de gerações, mas que pode ir além do desabafo. Não pede para nascer porque pode sofrer e causar sofrimento e, sendo assim, torna-se questionável aquilo que é tomado como bênção. Será que é melhor não procriar? Não perpetuar a miséria, como diz o Machado da epígrafe?

Eu fui atrás dos argumentos antinatalistas e encontrei os principais fundamentos contemporâneos em dois autores: David Benatar e Júlio Cabrera, mas os pontos que o segundo levanta são bem mais complexos e intrigantes, razão pela qual vou tocar em sua filosofia em um segundo momento.

A questão encarada pelo filósofo sul-africano David Benatar é uma pergunta desafiadora. Não é crueldade perpetuar a vida pela via da procriação? É uma opção confortável hoje em dia, com tantos métodos contraceptivos. Ele trabalha a questão da vida que vale a pena através do valor que o prazer e a dor tem quando colocadas em uma balança. Desta forma, constrói uma tabela semelhante à que Pascal montou em sua famosa aposta, combinada com o pensamento agostiniano de ausência e presença. Ela funciona mais ou menos assim:

O prazer é bom;

O sofrimento é ruim;

A ausência de sofrimento é boa;

A ausência de prazer não é ruim

Percebam que a mancadinha desse argumento está no último item. Poderíamos raciocinar que a ausência de prazer é ruim, mas, de fato, não nos é mais doloroso passar o domingo sem a picanha do que com ela. Na verdade, é uma questão de expectativa: se eu nem espero ter a picanha, não me dói nem um pouco não a ter. Por isso, não faz sentido equiparar ausência de prazer com sofrimento. O mesmo não pode ser aplicado à equivalência adjacente. Não sofrer é sempre bom, sem a indiferença que pode ser causada pela ausência de prazer. Uma vez colocada em um esquema tabelado, temos a seguinte correlação:


Existência

Ausência

Sofrimento (ruim)

Sofrimento (bom)

Prazer (bom)

Prazer (não é ruim)

A conclusão é que existe um descompasso entre ambos, e Benatar deu a essa constatação o nome de assimetria do sofrimento. E ele caiu como uma luva para justificar uma causa contrária à procriação. Se nós nos propomos a amar nossos filhos, a melhor maneira de manifestar esse amor é não os ter, fadados à dor. Ter filhos é, essencialmente, um ato de egoísmo e de crueldade com quem mais deveríamos nos preocupar. É o antinatalismo pelo prisma filosófico.

Mas não parece muito simplista esse argumento? Benatar subdivide suas assimetrias em outras mais específicas para dar mais sustentação a ele. A primeira é a assimetria dos deveres procriativos, que diz ser eticamente obrigatório não criar pessoas infelizes, enquanto essa obrigatoriedade não se aplica a não criar pessoas felizes. Ou seja, quando temos filhos, é dever procurar a felicidade para eles, o que não é aplicável quando eles não existem. O segundo ponto é a assimetria da beneficência prospectiva, que consiste no seguinte: não há nenhuma questão moral na potencialidade de uma criança ser feliz, enquanto a potencialidade de que ela seja sofredora é um bom motivo para não a criar. O terceiro item é a assimetria retrospectiva da beneficência, que, trocada em miúdos, diz que podemos nos arrepender pelo sofrimento de uma pessoa que existe em função de uma decisão nossa, enquanto isso não acontecerá se esta pessoa nunca existir. E, por fim, a quarta assimetria é o sofrimento distante e as pessoas felizes ausentes, que se resume na tristeza que sentimos quando alguém existe e sofre, e sabemos que, se não tivessem existido, não teriam sofrido. A ausência de dor é boa mesmo quando existe a ausência de vida. Dessa forma, procura consolidar seu argumento e dar mais substância a ele. O antinatalismo conserta a assimetria pela abstenção de prazeres possíveis em confronto com sofrimentos certos. Melhor que remediar, é prevenir, parece nos dizer o pensador.

Eu, pessoalmente, parto de uma perspectiva meio nietzscheana para não ser aderente a esse conjunto de ideias. Penso que os grandes arrependimentos, quando estivermos em tempo de avaliar o frigir de ovos da nossa vida, são mais do que aquilo que não se fez, e não do que se fez. Tive três filhos, dois ainda com vida, e espero pelos netos com aquele mesmo espírito de reparação que tantos avós têm para viver com eles uma relação mais ilimitada, que o serviço pela educação dos filhos não permitiu. Entendo o posicionamento dos antinatalistas, e acho mesmo que são válidos seus argumentos, mas há limites em impor a cultura sobre a natureza. Ter filhos é natural do ser humano, ainda que tenhamos consciência de que a balança possa estar em desequilíbrio, numa posição que passa de qualquer fronteira pragmática. Benatar pode até acertar quando diz que há mais momentos de dor do que de prazer, mas a intensidade desses menores momentos aprazíveis pode superar os inúmeros pequenos momentos sofridos, e isso não está em sua balança.

No final, tudo isso me parece mais medo do que qualquer outra coisa. Paranoia? Talvez. Temos um mundo à beira de um colapso ambiental, e isso é um motivo aparentemente justo para não prolongar sofrimentos. Só que há lições que nos ensinam que o dia é feito para ser colhido, e o mesmo Nietzsche que citei tem uma assertiva que considero definitiva: a vida é um pacote que compramos pronto, sem controle de como virá a ser, e se preocupar com tanto excesso tolhe mais o que podemos ter de bom que o que podemos ter de ruim. Eu prefiro morrer afogado a morrer de sede.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não tem em português ainda. Melhor: exercitei meu italiano, que andava meio parado.

BENATAR, David. Meglio non essere mai nati. Il dolore di venire al mondo. Milão: Carbonio, 2018.

*Disclaimer do disclaimer: é bom dar uma posicionada sobre essas questões de anglicismos. Existem certos termos que, embora haja correspondentes na língua natal, traduzem tão bem o que se quer dizer que sou favorável ao seu uso. Neste caso específico, o termo disclaimer traz uma ideia de “deschamado” que inexiste em português. E antes de ser chamado de anglicismo, é preciso saber que o próprio termo é um galicismo dentro da língua inglesa, o que comprova que é preciso cuidado ao se considerar um purista, porque esse órgão chamado linguagem é uma das coisas mais complexas que temos na cultura humana.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

O café filosófico do quotidiano – uma frase não é o texto todo

(Às vezes pegamos uma pedra e esquecemos de olhar para a montanha inteira)

“Em política, os alemães pensam o que os outros povos fazem. A Alemanha era sua consciência teórica. A abstração e a arrogância de seu pensamento corriam sempre em parelha com a limitação e a mesquinhez de sua realidade”.

Karl Marx

Olá!

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Eu falo muito de café por essas bandas, mas a patroa é igualmente aficionada pelos derivados da rubiácea. Normalmente, trabalhamos em tabelinha, onde eu me fixo mais nos métodos, enquanto ela fica antenada nos grãos em si, achando aqui e ali algumas preciosidades. Acontece que o mundo não é assim tão rígido, razão pela qual ela também curte umas variaçõezinhas no preparo, o que vai desembocar em métodos diferentes. Com isso, também fica de olho nas novidades e faz acréscimos em nossa pequena coleção. Ela acabou trazendo uma peça curiosa, que mistura características de um filtro metálico com uma Clever. Seu nome é Handy Brew.

É um método mais declaradamente para chá, mas que é aplicável a café também, segundo as impressões de alguns baristas que acompanhamos. De fato, ele se acomoda muito bem a esse propósito, mas funciona, como eu já disse, com sistemas aplicáveis confortavelmente a café. Ele se assemelha muito à Clever, que permite reter a água antes da percolação, mas, no lugar de um filtro de papel, aqui se encontra um filtro metálico que faz o mesmo serviço, com a vantagem de coar mais óleos, mas com o deslize de deixar passar mais resíduos.

O resultado é que é possível obter mais de pós renitentes, pelo simples motivo de deixar mais tempo de contato com a água.

O escoamento é feito pelo seu fundo móvel, que libera a percolação assim que se pousa o conjunto em um decanter e ocorre o shut off, nome tucano para escoamento da água.

Nome do utensílio: Bule infusor

Tipo de técnica: infusão

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: De média para grossa

Dinâmica: O pó é depositado no fundo do utensílio, onde será preenchido com água fervente. Após o tempo desejado, o bule será colocado em um decanter para que ocorra o escoamento do líquido

Resíduos: Médios

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio

Eis um exemplo de uso diverso que acaba sendo distinguido em contextos específicos. A própria caixinha em que o objeto é comercializado indica seu uso para chá, mas nunca o utilizamos dessa forma em casa, sendo, para nós, um método de extração dentre outros. E, sim, gostamos também de chá.

Não é incomum, vou pensando enquanto aguardo meu café, que nossos usos e costumes tergiversem propósitos originais, com o proveito que achemos melhor, mas tem vezes que, de fato, miramos o pé e acertamos o olho.

Desta mesma forma, os usos mais evidentes de obras de filosofia nem sempre são aqueles para os quais elas nasceram. Às vezes a gente pinça uma simples frase e a consagra, e esquece de tudo o mais que foi dito pelo pensador. É exatamente o caso da obra “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, escrita por Karl Marx. Eu mesmo fiz esse exercício, porque quis elucidar o sentido da frase “a religião é o ópio do povo”, neste texto, e não comentei mais nada sobre o livro em questão. Aliás, provavelmente por ser um livro da primeira fase de Marx, publicado postumamente, houve aprimoramento de suas ideias em obras posteriores, o que explica bem ser relegado a um plano inferior, e que termina por ser mais lembrado pela frase famosa (e nem sempre bem compreendida).

Mas sempre há tempo, e eu vou dar um leve repassada nesta obra, que não é tão imatura ou desinteressante quanto pode parecer pelo fato de se ter tornado célebre por uma frase que, além de tudo, fica meio fora do contexto geral. Dispa-se de seus preconceitos e me acompanhe.

Hegel colocou toda a história em uma espiral dialética, como já expliquei aqui, em que a contraposição de um oposto fazia com que a realidade presente se encaminhasse para uma espécie de ponto de equilíbrio, o que consistia em uma nova instância da realidade. Esses ciclos eram contínuos, e sempre uma situação oposta à atual fazia um confronto, até ser resolvida através de uma nova síntese. Assim, do confronto da tirania com a liberdade, surgia uma monarquia constitucional. Só que, como a roda nunca parava de girar, a nova monarquia também é colocada contra uma oposição, e dela surgia uma democracia. Ocorre que, ao se atingir a sociedade burguesa, o ciclo se encerra, plenamente realizada no cume da racionalidade que conduz a história. Hegel considerava esse modelo de sociedade civil como a mais perfeita síntese desta racionalidade, e, com esse estatuto atingido, não há como caminhar para nada mais racional. 

Com o fim da espiral dialética, a sociedade teria atingido o Espírito Absoluto, que, no dizer de Hegel, é o momento de estabilidade em que não se justifica mais que as tensões entre tese e antítese venham a produzir novas sínteses. Tudo isso falando bem por cima.

Sabemos que Hegel usava e abusava do termo “Espírito”, que não tem o sentido místico de alma atribuído pelas religiões, mas do flutuar lógico que espelha as relações entre a consciência e a natureza. Além de difícil, Hegel é extremamente abstrato, distante da natureza própria, o que causa urticárias em um materialista como Marx, que concorda com essa mecânica em um único ponto – há um motor para a realidade. Ele não trata do assunto nessa obra, mas, no seu ponto de vista, este motor é completamente material: a luta de classes, como já discorri aqui, o que fixa o distanciamento sobre ambos os pensadores.

Sendo assim, tudo o que Hegel considerava como o ápice da civilização era, para Marx, resultado de condições históricas contingenciais. Prova disso é como o sistema de garantias constitucionais tão caro à burguesia poderia ser suspenso de acordo com os sabores das circunstâncias que se apresentavam no momento, mas vamos com calma nessa hora.

A sociedade burguesa emerge da falência dos absolutismos, os regimes onde reis (e o clero) governam de acordo com suas vontades, encontrando seu auge intelectual no Iluminismo. Seus ideais pregavam, essencialmente, a liberdade, o que garantiria um progresso maior para as sociedades. Em linhas bem gerais, os regimes absolutos se caracterizam por restrições que atendem interesses daqueles que estão sentados nos tronos, tanto reais, quanto clericais. Como a determinação dos ocupantes do poder se dava essencialmente por linhas sucessórias hereditárias ou colegiadas, tínhamos ferido um dos principais sustentáculos contratualistas, o consentimento dos governados, o que era um permanente fumante sentado no barril de gasolina. Isso acontece porque a concordância no estabelecimento do reinado vai se perdendo com o decorrer do tempo, e o mesmo não se renova com o suceder de gerações. Sendo assim, os conflitos vão se tornando inevitáveis, até que se estabeleça um sistema de garantias constitucionais que evitem a vontade exclusiva de um monarca, mas dos próprios governados: direitos humanos, liberdade de manifestação, laicidade do Estado, tolerância religiosa e política, dentre outros. Essa construção política atende perfeitamente os anseios da classe burguesa e é sob esse contexto que ela chega ao poder. Essa classe, formada especialmente pelos comerciantes que emergem do renascimento das cidades após o feudalismo medieval, passa a dominar cada vez mais os mercados e, para isso, cai como uma luva a ampla liberdade e manutenção de recursos em suas posses. Com o tempo, mais e mais desses meios ficam em suas mãos.

É esse estado de realidade social que Hegel enquadra como chegada ao ápice do Espírito, e que vai, daí por diante, se perpetuar no meio social como sistema perfeito. Contudo, é aqui que Marx aponta seus canhões. Marx define que a filosofia de Hegel nada mais faz do que inverter sujeito e predicado. Ele interpreta que Hegel, ao criar uma entidade mística como o Espírito Absoluto e derivar dele uma teoria de Estado, nada mais está fazendo do que interpretar a sociedade prussiana da época. A chegada da burguesia ao poder é uma das tantas instâncias da realidade dentre outras, regidas pelas circunstâncias históricas e sujeita a mudanças em novos processos dialéticos, porque seu motor continua em funcionamento. Não há um Espírito, há condições sociais.

Com a ascensão da burguesia, antes submetida à monarquia, surge uma nova classe, antes oculta – o proletariado. Eles têm menos meios, já que ao menos os burgueses tinhas recursos financeiros, mas são muito numerosos. Com o crescimento da indústria, os proletários vão se tornando cada vez mais necessários, mas cada vez menos valorizados, sendo que somente através de sua união se consegue construir uma ferramenta da resistência.

E o que temos aqui? Todo o sistema de garantias que os burgueses edificam para sua própria proteção é suspenso quando sua aplicação se volta ao proletariado. Aqui não vale mais a livre associação, quando os operários e camponeses tentam fundar sindicatos; não vale mais a liberdade de manifestação, quando os proletários querem distribuir panfletos; não valem mais os direitos humanos, quando as massas querem melhores condições de vida e trabalho. Se esta é a sociedade ideal hegeliana, qual é o lugar do operariado e do campesinato? Que estabilidade se pode esperar, ou que sociedade sem tensão se tenta conseguir com tal volume de descontentes? O próprio Hegel reconhece que é muito difícil uma solução via Estado moderno para os problemas do proletariado, incluindo a pobreza extrema. Por isso, Marx define que a teoria de Estado de Hegel é uma grande furada, uma tese fundada por e para burgueses.

Baseado na visão do Espírito, Hegel, segundo Marx, trata o Direito como uma entidade abstrata, que tem vida própria e independente da realidade histórica a quem deveria legislar. Mas é a sociedade civil, aquela que existe, que se move, que produz, que constitui a base do Estado e, por consequência, do Direito. Hegel propõe que toda massa proletária faça parte de um Estado alijado, sem direito a participação na sua própria defesa de interesses, um não-Estado dentro de um Estado que, no final das contas, nada tem de diferente com relação à monarquia. Eu lembro de um vizinho nosso que, conformista, sempre dizia que seja no Capitalismo, no Comunismo, na ditadura e fora dela sempre resta ao povo trabalhar, e pouco mais do que isso. Parece mesmo ser essa a ideologia defendida por Hegel, e que Marx tão duramente combate.

Quem está acostumado com a escrita marxista pode estranhar um pouco está obra. Isso se justifica pelo fato de ser um escrito de sua juventude, guardado por anos em uma caixa, e que só foi levado à publicação postumamente. Embora já esteja em acordo com seu ideário consolidado, ainda não tem um conjunto já tão bem apurado, como seria de se esperar em um jovem estudante. Ele vai retomar a temática em livros como A Ideologia Alemã e 18 Brumário de Luís Bonaparte, onde já temos um formato mais próximo ao pensamento final de Marx.

Ao fim e ao cabo, é um livro que perdeu sua força por conta das obras posteriores, mais completas e menos fragmentarias, mas que não deixa de ser um documento histórico digno de registro, que fala mais para nós do que apenas ficar perturbando a religião com uma frase de efeito. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como eu já citei este livro de Marx em outros textos, achei melhor indicar a obra criticada, do nada fácil Hegel:

HEGEL, Georg. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

O café filosófico do quotidiano – o agnosticismo que se combina com qualquer modo de crença

(Crer ou não crer, eis a questão) 

“O agnosticismo puro é impossível. O único agnosticismo verdadeiro é a ignorância. Porque para nos radicarmos no agnosticismo é-nos preciso um argumento para nos persuadir que a razão tem certos limites. Ora, quem observa pode parar; quem raciocina não pode parar.”

Fernando Pessoa

Olá!

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Dizem que os mineiros são desconfiados. Eu não sou mineiro, mas desconfiado eu sou. Então tudo o que é apresentado a mim como novidade, eu coloco entre parênteses. Não se trata de uma atitude fenomenológica, afinal, epoché não é coisa para o quotidiano, mas eu sou feito desse material. Então, paciência.

Algumas coisas, no entanto, acendem o desconfiômetro mesmo quando comezinhas. Eu vejo como são as coisas no universo dos meus sogros, casal típico do interior que ainda acredita em lobisomem, e percebo o acerto da minha atitude. Eles são daqueles que dão mais ouvidos aos curiosos que aos especialistas, aos inquilinos que aos advogados e, risco dos riscos, aos vizinhos que aos médicos, dado o grau de proximidade e consequente confiança. Certo: os circunstantes não fazem propriamente por mal, mas é preciso ter um mínimo de bom senso, o que não ocorre quando a recomendação vem de mim ou da patroa. Dizemos que alguém passa a vida inteira estudando para te receitar o remédio certo, enquanto o vizinho só sabe daquele chazinho mágico e daquela episódica melhora. Se o chazinho tiver propriedades curativas, deixe que o médico o diga. Nesses quesitos, eu sou muitíssimo bem disciplinado.

Mas admito que tem vezes que eu exagero, especialmente em coisas que me são caras, mas que não giram a roda universal. Algumas novidades que me são exibidas fazem com que eu acenda todos os alertas, externalizados por um muxoxo retorcido e uma única sobrancelha soerguida. Mas há no meu interior um diabinho experimental que combate meu anjinho conservador, e acabo me convencendo de que devo ao menos fazer um teste. Refiro-me a café. No caso, aos relativamente novos drip coffees.

Trata-se de uma dose individual já acondicionada em um elemento filtrante, mormente fabricado em TNT, o curioso tecido não-tecido, e que só precisa de água quente e recipiente para ser preparado.


O método evidentemente já vem com os grãos moídos e depositados em um envelope que necessita ser destacado para fazer o encaixe e possibilitar o acréscimo de água quente.

Ele também vem com aletas de papel cartão destacáveis que, sendo flexíveis, se encaixam em uma gama razoável de bocais.

 

Nome do utensílio: Drip coffee

Tipo de técnica: Percolação 

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: de acordo com o envelope adquirido

Dinâmica: Envelope de TNT pronto. Destaca-se a parte superior e estende-se as aletas até a borda da xícara, percolando água fervente

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: baixo

Mas por que a desconfiança? Quem está acostumado com o mundo de cafés especiais sabe que há um certo cuidado no preparo da bebida que vai além daquele dedicado a cafés de boteco. Alguns desses cuidados não são aplicáveis a esse modelo de extração, o que liga os filtros de quem demora mais do que cinco minutos para fazer um bom café: a primeira coisa é que não dá para fazer o escalde do filtro, que garante três coisas. A saturação do material impede que o filtro “roube” óleos do líquido, a água quente aquece o sistema como um todo e remove resíduos que influenciam no sabor da bebida final. Outro fator é que o café já vem moído, o que favorece a oxidação do pó e diminui sua qualidade. Por fim, a espessura já determinada diminui o espaço por onde a criatividade do barista anda; é aquela receita e punto, finito.

Isso tudo me faz pensar em balizamento de limites que, como vocês já viram nesta série, não são do meu agrado. Mas ser ponderado implica em observar os vários lados de uma questão, e, neste caso, é preciso primeiro pensar nas vantagens e, a posteriori, experimentar, por evidente. No primeiro exercício, temos a praticidade de poder carregar o café no bolso, o que é útil em momentos em que você não tem a seu dispor mais do que uma xícara e um pouco de água quente. Além disso, um bom café é um bom café mesmo quando não obtido em suas melhores condições, superando a zurrapa que conseguiríamos por aí. O negócio é passar para o segundo exercício crítico, que é pegar um envelopinho desses e preparar. Uma vez escoado, o café prova-se digno, com sabor preservado, embora não chegando ao ideal. 

Então, sopesados prós e contras, percebemos o quanto a alternativa é válida, e notamos que o preconceito acaba quando olhamos mais acuradamente a realidade. Às vezes perdemos coisas boas e boas oportunidades por bobagens

Pois então não devemos ser desconfiados? Claro que não se trata disso. Existe um nível natural e saudável de desconfiança, que, como em tudo na vida, é prejudicial quando excessivo. O grande ponto é quando você firma convicções que vão se provando infidedignas, e aí é visgo de jaca mole: nunca mais desgruda da pele. A não ser após um looooooongo processo de reflexão.

Mas há que se fazer distinções. Há níveis de criticidade diferentes entre modelos de ponto de vista, e isso faz toda a diferença do mundo no momento de estabelecer certezas. Há coisas que cremos, há coisas que sabemos. E nem sempre elas são possíveis, mesmo sendo cômodas.

O exemplo mais farto vem das religiões. Boa parte da confiança que temos em uma divindade não está no âmbito do provável, mas de uma crença que pode se basear nos mais diferentes motivos. Você pode não ter tido um único contato que se materialize, mas ainda assim acreditar piamente. E, por mais que você diga o contrário, o fato é que você crê, mas você não sabe.

Como assim? É que crer e saber são coisas distintas. Crer é baseado em confiança, enquanto saber é sinônimo de conhecer, de ter comprovações e absolutas certezas.

Então, só podemos dizer que quem sabe é o ateu? Não, a sua condição é exatamente igual à do religioso. Também o ateu tem uma crença - a de que não existem divindades. Normalmente adquire isso pela via de quem não alcança provas, e, não as havendo, conclui pela inexistência, assim como creio que não tem açúcar em casa quando não o acho no armário. Mas também aí não se pode enquadrar uma certeza, já que não existe completude de conhecimento nesse mundão de meu deus. E, ok, pode ser que uma deidade não faça manifestações físicas, mas ainda assim ele está lá, guiando os caminhos do universo, por mais tortuosos que pareçam. Também aqui se crê, mas não se sabe.

Então, o que resta? Talvez, reconhecer que não há como se desvencilhar da crença. Ou, mais simplesmente, entender que há certas coisas em que não conseguiremos colocar nosso conhecimento. E isso é muito comum.

A posição tem um nome, que é agnosticismo. Seu surgimento tem algumas curiosidades, e nós vamos a elas.

Sabemos que a posição filosófica preponderante incluiu, por muito tempo, a existência de divindades. No ocidente, a teologia cristã traz um deus único, onipotente, onipresente e onisciente, todo-poderoso. Por muito tempo, não houve ânimo em se contrapor a essa tendência, seja por seu consenso, seja pelo risco de assumir o contrário. Ocorre que o transcurso histórico veio, paulatinamente, trazendo novidades ao pensamento, de modo a diminuir a importância das deidades e aumentar a confiança na ciência.

Isso tudo demarca uma divisória, onde de um lado estão aqueles que buscam conciliar os desenvolvimentos científicos com a obra divina, e do outro estão os que passam a entender que a natureza se explica por si só, sem necessidades de intervenções. Excluídos os negacionistas, resta uma terceira via, a via dos que não conseguem chegar a uma conclusão, ou seja, que não chegam a invalidar as teses do deus presente na natureza, nem deixam de concordar com sua autossuficiência. Entre ambos, estão os agnósticos.

Por que entre ambos? Porque é possível tanto ser religioso e agnóstico, quanto ateu e agnóstico, ao mesmo tempo. Sendo coisas diferentes, podem ser concomitantes.

Vamos falar um pouco do termo, primeiramente. Ele surge em fins do século XIX, no auge das discussões que mencionei, especialmente no âmbito da fervilhante teoria da Evolução, que batia muito dolorosamente nos dogmas de criação até então preponderantes, por colocá-los muito claramente na condição de mitos*. Teístas e ateus se defrontam através das apresentações de evidências e de suas contestações, embora a questão fosse mais delicada do que uma dicotomia cruzada entre ser favorável à tese da evolução e ser ateu versus ser contrário à mesma e ser religioso. Entre as duas posições baseadas em crença, surge a suspeita pela via do conhecimento. Thomas Huxley, intelectual inglês partidário das ideias darwinianas, era conhecido como “Buldogue de Darwin”. Por um lado, o afamado cientista era um homem relativamente recluso, pouco dado ao debate, e mais concentrado em realizar seus estudos do que os discutir em praça pública. Por outro, encontrou no filósofo o debatedor ideal de seus princípios. Eloquente e em plena adesão ao ideário evolucionista, tomou a frente do confronto público com os detratores dos novos princípios, e, segundo se conta, com bastante êxito.

Sendo um opositor dos criacionismos, era natural que se lhe fosse questionada a posição religiosa, mas não havia uma resposta rápida, resumida em uma única palavra que a sintetizasse. Era sempre aquele longo desfiar de “não acredito, nem desacredito”. Para tanto, cunhou o termo “agnóstico”. Sua origem se dava no gnosticismo, uma seita que funde filosofia platônica e religiosidade cristã que afirmava ser o mundo material uma emanação imperfeita de um demiurgo, uma espécie de divindade menor coligada ao mal, o que explicaria tantos defeitos no universo criado. Entretanto, existe uma participação na divindade superior em cada ser vivo, na forma de espírito, e é pelo conhecimento da existência desse deus superior que se consegue a libertação do mundo material, o que explica o nome da corrente. Gnóstico, portanto, é aquele que crê porque conhece.

Se o gnosticismo diz que é pelo conhecimento que se chega a deus, é pela assunção de sua impossibilidade que Huxley trouxe o seu termo, o agnosticismo. Gnose, em grego, significa “conhecer”, o termo a é sua inversão de sinal, sua negação. Portanto, agnóstico é aquele que afirma ser impossível saber se existem divindades ou não.

Isso tudo se deve à impossibilidade de colocar deidades em tubos de ensaio. Sempre é possível imaginar que há um deus por trás de qualquer movimento do universo, e é impossível negar. E aí você crê ou não nisso, mas saber… não se sabe. Por isso, a resposta pode ser cética, de suspender o juízo; pode ser de confiança, de fé, de crença na existência, ou de descrença, sendo tudo processos naturais independentes de vontades, mas saber… é isso que Huxley chamou de agnosticismo, sua posição epistemológica diante da presença ou não de uma divindade nos processos evolutivos.

A questão é que temos um confronto entre lógica e epistemologia nesse tema. Isso se deve ao fato de que podemos ter doxa e episteme, ou seja, opinião e conhecimento. Há inúmeras coisas que podemos não saber, mas que podemos formar uma opinião e acreditar nela. Quando pensamos em termos científicos, a opinião é um problema, porque dela parte inúmeros desvios e vieses, mas o fato concreto e inevitável é que ela existe e muito, mas muito mais presente em nossos quotidianos do que um conhecimento sintetizado e consagrado. Mais ainda, por vezes confundimos ambos, e assumimos opiniões com verdades. Aí, a porca torce o rabo.

Por essa razão, é possível ser ateu e agnóstico ao mesmo tempo, assim como é possível ser religioso e agnóstico também. Porque ainda que não saibamos se uma divindade existe ou não, podemos acreditar que sim ou que não, diante do que é possível ter de evidências. E, neste sentido, pouco importa se são tratados científicos ou evidências anedóticas. O que importa aqui é a sensação pessoal, um convencimento que se faz aos poucos ou uma experiência repentina.

E isso nos possibilita pensar em graduações de crença. Eu, assim como Huxley, posso ter um padrão de desconhecimento assumido, mas analisar a credibilidade de cada divindade que me é apresentada, bem como da lógica interna de seus aspectos, como as exigências que faz, a moralidade que sustenta e assim por diante. Religiões abraâmicas, por exemplo, são montanhas de contradições, e, para que eu volte a crer nelas, precisarei de evidências muito fortes. Já crenças budistas ou religiões com deuses mais difusos tem uma coerência interna mais sofisticada e com menos argumentos autoritários, o que é um convite para uma aceitação maior. Aplicados a um percentual de crença, dá para dizer que os primeiros se aproximam de zero, enquanto os segundos são mais dignos de consideração, até porque eles são desnecessários na construção da realidade. E é isso: quanto mais necessário um deus, menos crível ele é.

Repetindo algo que já falei por esses textos, a partir do momento que eu coloquei o ceticismo ao serviço do meu conhecimento, percebi que tudo se acomodava melhor sem divindades. Mortes ocorrem porque doenças existem, e não porque Deus quer. Terremotos devastam porque são desequilíbrios naturais, e não castigos impostos para populações inteiras. As espécies se transformam porque sofrem pressões seletivas, e não pelo capricho da deidade de plantão. Tudo fica mais coerente, mais factível, mais compreensível sem a explicação divina. Mesmo que não se consiga obter esclarecimentos pela via da ciência, colocar a divindade na lacuna não ajuda nada, só cria uma narrativa que continua sem comprovação.

No final das contas, tendo a acreditar (vejam vocês) que somos todos agnósticos. Costumam dizer que não existe ateu em um avião caindo, assim como um religioso enfartando procura um hospital, e não um templo. A contradição está em apelar para uma entidade em que não se acredita, ou em desprezá-la no momento em que mais se precisa. Desculpem-me ambos, mas em momentos de desespero não há espaço nem para a racionalidade, nem para a fé. Há aquilo que temos de melhor ao nosso alcance.

É a maneira como penso, e não quero ofender ninguém com isso. Assim como diante da novidade de um café já moído e pronto para a água, também tenho muita dificuldade em absorver coisas que não posso experimentar. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Textinho rápido sobre o tema, interessante por se tratar da primeira utilização do termo.

HUXLEY, Thomas. Agnosticismo. Blumenau: Kindle, 2023. E-book.


quarta-feira, 4 de junho de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: o diferenciado Juventus e a inexplicável força da identidade

(Bairrismo é legal? Depende)

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”

Fernando Pessoa, sob o heterônimo Alberto Caeiro

 

Olá!

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Meus filhos nasceram na Aclimação. A patroa não é de São Paulo, nasceu na mesma São Caetano que meu filho mais velho, falecido ainda criança. Do pessoal do serviço, um é do Tatuapé e outra de Itaquera, os outros são de outras cidades. Nenhum deles tece loas ao lugar onde nasceu, nem mesmo onde mora. Não é costume nesta cidade arrotar com gosto ser do Cambuci, ou da Vila Penteado, ou ainda do Rio Pequeno. Essas coisas passam praticamente batidas, e você convive anos com uma pessoa sem saber bem de onde ela é. Mas eu sou da Mooca. Eu nasci na Mooca, na Rua Sebastião Preto, e tenho minha certidão no cartório que fica bem na frente da igreja do Bom Conselho. A parentegem estava lá em peso: a Tia Maria morava na Rua do Acre; o Tio Chico, na Rua Javari, e o Tio Rafa na Capitães-Mores. Já meu avô percorreu o bairro todo com sua casa e com sua oficina: Tamarataca, Madre de Deus, Caetano Pinto, Campineiros e terminando seus dias na Rua do Oratório, onde alugava o salão da Kathy, uma senhora alemã que mandava pacotes de doces divinos, melados a ponto de dar diabetes mentais. Sou da Mooca, e todo mundo que lá nasceu ou mora proclama o fato a alta voz.

Alguns moradores de Santa Cecília, Vila Madalena e Ipiranga se ufanam dos bairros em que nasceram. Um pouco pela tradição, muito pelo que representam, são lugares que carregam uma espécie de distintivo dos que lá habitam, como os apartamentos com chão de tacos, os becos grafitados e a vista para o Museu, respectivamente. Mas quando pensamos em São Paulo, e disso falamos de mais de doze milhões de habitantes, nenhum bairro é mais bairrista do que a Mooca.

Esse é o tipo de fenômeno que é difícil de explicar. De fato, a Mooca é um bairro ainda aprazível, com bons remanescentes dos seus tempos operários, como as casinhas da Rua do Hipódromo, as insistentes fábricas ao longo da ferrovia, os casarões da Paes de Barros e até mesmo dos cortiços da parte baixa, para onde a maior parte dos imigrantes acorreu em sua chegada ao Brasil. Mas que não é assim tão diferente de outros bairros para virar um distintivo tão peculiar.

A Mooca tem suas personalidades, seus edifícios, seus abundantes restaurantes, cantinas, pizzarias, trattorias, botecos, suas mazelas e suas venturas. Tudo isso há em outros lugares, mas a Mooca tem um time. A Mooca tem o Juventus.

A história do Juventus se mistura à própria história do bairro, e é um pequeno compêndio do que é a Mooca. A origem italiana dos proprietários do Cotonifício Crespi é o único ponto em comum com os operários que por lá fundaram um time com o beneplácito de seus patrões. Ainda hoje quem passa pelas bandas do pequeno estádio da Rua Javari vê os testemunhos das pequenas casinhas que ladeavam a imensa fábrica têxtil. A indústria, as casas e o campo eram o resumo da vida de uma população muito pobre, que ainda trabalhava praticamente sem legislação trabalhista e pouca proteção prática em serviços extenuantes e perigosos. Lembro de muitos dos meus velhos parentes que exibiam cicatrizes com um certo orgulho, porque eram, na verdade, sinais de sobrevivência, um certo heroísmo frente àqueles que sucumbiram, de quem contam fartas histórias. Isso ocorria em todos os bairros operários, mas a Mooca tinha essa espécie de comunhão de comunidades que a tornou singular.

O campo do cotonifício virou um tipo de refúgio único de lazer para onde desembocavam todos esses trabalhadores, e lá criaram um movimento forte de identidade. Havia outros campos, é verdade, mas o clube resultante, uma fusão dos times de Turim, com as cores de um e o nome do outro, virou um amálgama para as classes sociais que giravam em torno da fábrica. Afinal de contas, a Mooca é lembrada como bairro de italianos, mas lá havia os espanhóis, os armênios, os portugueses, os gregos, os alemães, os russos, os libaneses. Tudo isso porque lá estava a Hospedaria dos Imigrantes, hoje transformada em espaço cultural, primeiro abrigo daqueles que vinham do mundo todo para tentar sua sorte nos trópicos. Não encontraram o bairro vazio, entretanto, já que lá havia várias comunidades afrodescendentes que cercavam o centro e os nordestinos que habitavam cortiços “especializados” na beira do Tamanduateí.

Isso tem a ver com criação de identidades. Uma boa parte vem da nossa busca por distintivos pessoais, e outra por símbolos que nos moldam como somos. Um mooquense dificilmente é torcedor do Juventus como time principal, mas também dificilmente deixa de adotá-lo como uma referência à sua procedência. E por quê?

É que não somos unívocos. Temos uma identidade genética, mas também temos uma identidade adquirida. Da primeira, em geral não temos muito o que mudar, porque está em nossa constituição física, com hereditariedades imperativas. É aquela história de que não adianta comer fermento; o baixinho é baixinho e pronto. Já com relação ao ambiente que nos cerca, ele nos torna boa parte do que somos porque é desejável, ou mesmo necessário, ter conformidade. E isso faz com que tenhamos orgulho ou vergonha de acordo com que o consenso estabelece.

Quando você vem no domingo de manhã para a região da Javari, vê uma multidão de grená se encaminhando para o antiquíssimo estádio, com sua área coberta sui generis e arquibancada em concreto armado. É uma estrutura simples, que os apaixonados não querem modificar de jeito algum, embora fosse desejável que se tornasse mais hodierno, caso se queira evolução. Mas as faixas da torcida dizem “ódio eterno ao futebol moderno”, não porque não se queira que o time cresça, mas porque é o grande catalisador dessa identidade. É muito diferente estar lá, porque os adversários não são chamados para a briga. Pelo contrário até, nos botequins próximos juventinos se misturam a nacionalinos, lusos, interioranos dos mais diferentes locais e bebem seus gorós antes e depois das contendas, sem que isso vire um campo de batalha como acontece com torcidas maiores, e sem que isso represente ser menos aguerrido. É um diferencial que demonstra hospitalidade do clube e do bairro, e isso agrega. Os frequentadores observam isso e tomam como valor, de modo a arraigar mais e mais tal comportamento.

A torcida é como uma tropa de um exército de Brancaleone, aquele de quem pouco se espera, mas que muito entrega. O apelido do Juventus é Moleque Travesso não à toa. Não foi uma mascote forçada, como os leões espalhados Brasil afora, mas ganho pela torcida e pela imprensa, por aprontar suas artes contra os grandes e perturbar sua paz, principalmente no seu grund da Rua Paulo, a Rua Javari, o pequenino campo do cotonifício.

Minha identificação com a Mooca não poderia ser mais vinculada ao Juventus do que já é. Da rua em que nasci, são dez minutos a pé até o clube social, construído no antigo varjão conhecido como Tchipum. Já do campo, duas casas à direita e se chega ao lar do Zio Chico e da prima Nélide, onde volta e meia caem bolas chutadas pelos beques fazendeiros. Nos últimos tempos, enquanto o pessoal procurava lugares cada vez mais longe para estacionar, eu colocava o possante espertamente na porta da garagem da prima, quase zombeteiro, para depois pegar um macarrão com polpetta com a veneranda parenta. É certamente o estádio onde eu mais assisti futebol na vida, favorecido por todos esses fatores.

Dizem que a Mooca tem um time, mas também o Juventus tem um bairro, fenômeno raro nas terras de Pindorama. Um tem orgulho do outro, mesmo nos momentos de baixa, porque não é preciso sair da Mooca para encontrar o símbolo de guerra daquela gente. O Corinthians não é do Tatuapé, o Palmeiras não é da Água Branca, o São Paulo não é do Morumbi. Eles são da cidade, do país, quiçá do mundo, mas só o Juventus é da Mooca, e ela, coincidência ou não, é o bairro mais bairrista de São Paulo.

Há um porém oculto, que precisa ser tratado com cuidado. O bairrismo é uma aldeia que fica no meio do caminho que leva à xenofobia, e a estrada se alarga após passar pelo seu acesso. Isso porque o sentimento de identidade, por si só, não é ruim. O problema é quando adquirimos a sensação de que ninguém que vem de fora é digno de compartilhar o nosso espaço. A Mooca, assim como todo o Brasil, foi construída não só pelos imigrantes italianos, mas pelos índios que lá já estavam e pelos negros que foram trazidos na marra, assim como por outros europeus e pelos asiáticos, especialmente do Oriente Médio. Quem vem de fora, não percebe tanta diferença com relação a outros bairros tradicionais, então é na história e nas tradições que a Mooca se torna quem é. E ela se escreve nos ciclos de gente que vem e que vai, comprovando o dinamismo da existência humana, seja no plano individual, seja no âmbito das coletividades. Se o bairrismo do mooquense se mantiver nos limites identitários, teremos um povo que se orgulha, que é farrista, que fala alto e gosta de onde vive, que cuida de suas ruas e de sua vizinhança; se passar disso, será perdida toda aura de empatia que desemboca até mesmo no Juventus.

Tomados esses cuidados, e tirando o discurso passional tão típico dos italianos, algumas coisas nos fazem desconfiar dos elementos motivadores para o bairrismo deste local. A Mooca é muito antiga, com seus primeiros registros históricos surgindo apenas dois anos após a fundação de São Paulo. É povoada de fábricas e suas consequentes vilas operárias, o que dá um certo fechamento nas comunidades que se formam. Esse é um fato que se deu em outros bairros também, como o Brás e o Bom Retiro, mas, por diferentes motivos, as coletividades desses locais foram se esgarçando, modificando e dispersando, com remanescentes diferentes daqueles que lá estavam no processo de industrialização. Na Mooca, que se manteve fabril por mais tempo, e que não teve nenhum evento causador de diásporas (como a construção do metrô ou de alguma rodoviária inútil), as mesmas comunidades se mantiveram mais intocadas, e, com isso, aquele clima mais familiar, de todo mundo se conhecer há gerações. Além disso, e mais uma vez pela origem industrial do bairro, foi aqui que movimentos anarquistas e sindicalistas chegaram com mais força, o que reforça o sentimento de pertencimento que nasceu das células e se espraiou para os botequins e praças; para os pontos de convívio, em suma – indo parar no futebolzinho sagrado do fim de semana. E isso causa a sensação de um mundo à parte, de cidade dentro da cidade. Quem é da Mooca se considera mooquense antes de ser paulistano. Para os mais exaltados, antes de ser brasileiro. O Moleque subsiste porque agrega todos esses valores, é a bandeira grená que esse povo carrega para gritar “orra, meu” pela cidade toda.

Inclusive eu. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Publicação oficial patrocinada pelo clube:

AGARELLI, Ângelo; GALLUPPO, Fernando; ROMANO NETTO, Vicente. Glórias de um Moleque Travesso. São Paulo: BB Editora, 2012.