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segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Sobre o destino manifesto e o falso espírito democrático de quem o proclama (Pequeno guia das grandes falácias – 76º tomo: a alegação especial)

(Dá-lhe, tarifaço... E depois são os paladinos da democracia)

“Democracia são dois lobos e uma ovelha decidindo sobre o que comer no jantar”

Benjamin Franklin 

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Meninas e meninos, vivemos tempos insanos, como vocês podem perceber. Na verdade, nunca saímos deles, mas de vez em quando vem uma lufada de vento fresco e parece que vamos ter um pouco mais de sensatez, para logo em seguida tudo voltar ao que era. O mundo gira, a lusitana roda e não há nada de novo debaixo desse sol escaldante do Vale do Paraíba.

A novidade é a guerra comercial que o mandatário estadunidense resolveu empreender contra o mundo. Parte do princípio geral de que os seus cidadãos vêm sendo prejudicados em suas relações de mercado e quer chantagear os demais países na base das imposições tarifárias. Recentemente, lançou seus olhos vorazes contra a pobre Ilha de Vera Cruz, e uniu interesse financeiro com suposta injustiça legal para impor uma alíquota extorsiva. Evidentemente, foram colocadas na mesa outras questões, maquiadas como defesa da liberdade e da democracia (que se foda o livre mercado). Esse é o resumo da ópera, que não preciso levar muito adiante porque todo mundo sabe o que está acontecendo.

Não é de hoje que os poderosos vizinhos fazem valer seu poderio econômico e militar para pressionar outros países. Isso não muda nunca. O fato de termos um desequilibrado no poder ianque atualmente apenas tira a vaselina da relação conosco, terceiro-mundistas, porque ele me faz lembrar daqueles molecões de pouco brilhantismo, mas muito fortes, e que conseguem o que querem na base da porrada. Os democratas no poder são diferentes no sentido cortesia, mas não no resultado. Tem mais tato, mais jeito, oferecem flores, mas te comem dominam as ações ao seu bel-prazer do mesmo jeito.

Isso tudo acontece porque há no substrato ideológico gringo uma ideia de que eles são diferenciados em relação aos demais povos. Eles são os detentores das virtudes mais magnânimas, mais sublimes, mais excelsas, e tem o dever de propagar essas ideias para o mundo todo, especialmente onde for possível ganhar um dinheirinho. Ou dinheirão.

Mas não vamos ficar nesse discurso de esquerda latino-americana, e vamos olhar mais de perto o fenômeno da distinção dos ianques perante todos os outros povos do mundo, América Latina em evidência.

Todas as vezes em que vemos jogos de poder, observamos que há um certo ingrediente religioso por trás dos discursos. Podem até mesmo ser ateíssimos regimes comunistas, mas a autoridade atribuída a um líder tem a mesma característica messiânica que o mais empedernido dos reinados islâmicos: há uma ideologia da missão salvífica por trás das personalidades. Isso funciona muito bem, porque faz perdoar medidas que, na sua estrutura, não são favoráveis às massas populacionais, mas que precisam de algum tipo de argumento para serem aceitas, ou então da necessidade de alguma forma de amálgama que una as opiniões. Nada melhor que um portador do propósito divino.

Isso deveria acontecer nas democracias? Em tese, não, porque ela favorece o Estado laico, abre mais possibilidades para posições divergentes, protege a liberdade religiosa, mas como este regime é mais aberto, não há como impedir que essas teses da missão divina acabem imbuindo seu espírito. Afinal de contas, não é necessário que haja uma declaração explícita de religiosidade, mas um protocolo de benesses, como a confiabilidade das instituições religiosas que apoiam uma causa, ou a ideia de submissão a uma entidade externa doadora de moral. Lembrem-se, crianças: as religiões são elementos culturais, oriundas e formatadas para se adequar às sociedades onde surgem, e não o contrário. Com isso, adequações à religiosidade de uma comunidade correspondem a adequações à moralidade que aquela própria comunidade construiu. Qualquer democracia que se encaixe nesse contexto tem um elemento religioso em seus fundamentos.

E nos Estados Unidos? Bom… eles se autoproclamam como a terra da liberdade, mas os fundamentos religiosos estão lá, até mais fortes do que em Terra Brasilis, que somente mais recentemente vem adotando esse paradigma, especialmente pelo crescimento da população evangélica e da penetração de seus líderes na política. Se hoje os EUA constituem um território imenso, e ainda buscam espalhar seus tentáculos para o mundo que os interessa, é porque suas placas tectônicas se movem à base dos fenômenos ideológicos sustentados pela religião. Falo do Destino Manifesto.

A doutrina do Destino Manifesto (Manifest Destiny) é uma ideologia que aproveita um fundo religioso para justificar a política expansionista dos Estados Unidos no século XIX que dizia, fundamentalmente, que era inevitável que as terras da América estavam divinamente reservadas para os puritanos refugiados da Inglaterra. Por que chegaram a essa conclusão?

Bom, aí tem uma boa dose daquilo que sabemos ser o uso religioso das manipulações de convicções. Os puritanos eram uma corrente dentro do Anglicanismo que visava afastá-lo ainda mais dos ritos católicos. Esta corrente do Cristianismo era uma dissidência do Catolicismo menos pela discordância com seus dogmas e doutrinas, e mais pela questão de comando. A estrutura hierárquica católica era muito semelhante à anglicana, com a diferença crucial de que o mais alto comando nesta última era do rei da Inglaterra, que assume o lugar do papa no topo da hierarquia. Dentro dessa nova realidade, os puritanos surgem com a ideia de um retorno ao Cristianismo primitivo, sem os vícios e desvios derivados dos anos de luta pelo poder e modificações impostas pelo clero, de forma a atingir a purificação dos seus membros. Era uma derivação da vertente calvinista do Protestantismo, que chegava à Grã-Bretanha após seu surgimento na França. É de rigor que tratemos um pouquinho do dogma da predestinação, portanto.

Segundo acreditavam os calvinistas, a realização de boas obras não era o que salvava uma pessoa, como indicava as doutrinas católica, luterana, anglicana e ortodoxa, mas uma livre eleição do próprio Deus. Afinal de contas, a ação humana não poderia suplantar ou ser mais decisiva do que a vontade divina. Sendo assim, a pessoa ser salva ou não, não era um critério dela, mas do seu senhor.

Isso causa um problema. Se tanto fazia ser bom ou não, como seria possível saber se uma pessoa estava na categoria dos salvos ou dos condenados? Deus era indireto, e dava certas indicações aos seus eleitos durante a sua vida. Uma delas eram as provas de resistência na fé, que seriam bem suportadas pelos escolhidos. Um impulso psicológico e tanto. Outra era a prosperidade: Deus não garantia apenas uma vida eterna prolífica, mas o conforto na própria vida terrena. A lógica vinha da ideia de que toda a criação divina era perfeita, e não somente o plano espiritual da eternidade era bom e valoroso para a vida, mas também a própria vida terrena já havia sido construída pela divindade para ser igualmente boa e valiosa. Dessa forma, os eleitos tinham posses e benesses que fugiam da doutrina escapista dos católicos e outras designações protestantes, que criam que esse é um mundo de sofrimento, e que todas as recompensas viriam a posteriori, já passando pelo filtro das boas ações. Dessa forma, os crentes não precisariam ter vergonha de amplas posses e de lucros, porque também esses eram manifestações divinas, em um perfeito casamento com o emergente Capitalismo, como bem notou o sociólogo Max Weber. Vejam mais neste texto.

A migração dos puritanos da Inglaterra para os Estados Unidos pode ser facilmente acomodada à narrativa calvinista. Com a divergência de entendimento bíblico (e uma boa dose de conveniências políticas), os anglicanos viam os puritanos como infiéis ao rei, chefe supremo não só da religião, mas também, e principalmente, da nação. A perseguição ocorrida no âmbito do Anglicanismo é um dos mecanismos de resiliência propostos por Deus aos eleitos, que são obrigados a deixar sua terra para povoar um ambiente novo, incerto e potencialmente inóspito, enquanto o tamanho das terras, a presença de minérios, a fertilidade dos meios são inequívocas demonstrações da prosperidade oferecida, uma nova Israel, uma nova terra prometida. A licença para a ocupação é idêntica: da mesma forma que Deus permite e incentiva a ocupação de Jericó, faz o mesmo com as populações originárias além-Apalaches e com os colonos espanhóis da região da costa oeste. O destino manifesto proclama a dominação legítima por um povo escolhido do Atlântico ao Pacífico.

Não é fácil justificar uma sanha exploratória de um território que já se encontrava habitado por autóctones ou mesmo que já se encontrasse dominado por outros povos sem se usar o argumento da ganância. A conquista do oeste norte-americano não se deu pacificamente, mas à custa de sangue indígena e de guerras contra espanhóis e mexicanos, e isso não é bonito de se assumir unicamente pela riqueza que isso tudo traz. A justificativa divina não dava apenas uma resposta para o mundo, mas para os próprios executores das invasões. A guarida de uma ordem divina é perfeita como licença para avançar sobre terras alheias.

A questão é que o destino manifesto teve derivações que vivem até hoje, como as falas que aquele senhor alaranjado proclama de vez em quando. Ele serviu de justificativa para que a área de influência gringa se estendesse para muito além da imensa faixa de terra que liga os dois oceanos.

Existe a doutrina Monroe, derivada de um dos primeiros presidentes daquela terra, James Monroe. Ela diz que não é aceitável que potências coloniais europeias queiram expandir suas esferas de influência na política dos países da América, e, caso isso aconteça, será considerada como uma ameaça aos próprios Estados Unidos. Ademais, a doutrina procura demonstrar aos demais países americanos a superioridade dos regimes republicanos em relação às monarquias. Até aí, nada demais.

Os dois fenômenos, destino manifesto e doutrina Monroe, foram mais ou menos concomitantes, e acabaram se entrelaçando, naturalmente. O direito divino de se expandir vinha ao encontro do direito político de se defender, ainda que os EUA não fossem ainda potências militares à época. Ocorre que o desenrolar da história assim os tornaram, chegando ao ápice no pós-guerra, fortalecidos pelo fato de estarem do lado vitorioso sem que uma única bomba tenha chegado ao seu território. Com tanto poder nas mãos, eles foram ficando mais e mais “folgados”, e, a partir do corolário Roosevelt, assumiram o papel de polícia do mundo. O intervencionismo estadunidense veio em um crescendo desde então, litigando fronteiras que não são as suas, certificando governos nem sempre legítimos e financiando a oposição a regimes que os desagradam, de maneira nem sempre explícita. O corolário adiciona à doutrina Monroe o direito de intervenção direta onde quer que os EUA achem que exista uma ameaça. O problema é que isso é extremamente aberto, e que muitas vezes avilta a autoafirmação dos povos, a origem da própria doutrina.

A questão é que essa expansão não é somente física ou geográfica, o que já é uma imensa intrusão na vida dos povos, mas também cultural. Não está apenas nas músicas e nos filmes, ou nas roupas que se usam, mas especialmente nos valores. Se fosse só a calça jeans e o rock’n’roll, nada mais seria do que uma cultura que agrada outra gente, mas os estadunidenses acham que sua cultura é superior às outras não só por mera arrogância, mas pelo destino manifesto. Certos valores são, de fato, aplicáveis de modo universal, como o formato republicano e a democracia liberal, mas o problema não é efetivamente esse. Se é verdade que os povos devem ter autoafirmação, então não faz sentido o intervencionismo proclamado pelo corolário Roosevelt. Defender a democracia inclui aceitar o regime alheio, reconhecer o direito de outros países de dar a guia que queiram aos seus destinos e, principalmente, demover-se da ideia de povo escolhido. Não no sentido de se sentirem especiais, eleitos por Deus ou coisa que o valha. O diabo é que, se eu sou um escolhido, o resto é escolho. Se eu sou eleito, todos os outros são condenados, e não é possível arrogar isso a si próprio. Os Estados Unidos são poderosos demais para abrir sua carga pesada contra países claudicantes como o Brasil, que não representam ameaça real à sua existência, principalmente à sua poderosa economia. Eles mesmos são seus principais adversários.

Evidentemente, foi possível perceber pelo exposto até agora que as regras estabelecidas pelos Estados Unidos servem para todos os países, menos para eles mesmos. Como se dizem cobertos pelo destino manifesto na teoria, e tendo os mais poderosos meios de guerra na prática, alegam ser os guardiães de uma democracia que, preto no branco, eles mesmos não praticam. A democracia é fácil de retorcer, justamente por sua maleabilidade, e sempre tem como servir mais a quem tem mais poder, como Benjamin Franklin tão bem detectou na frase da epígrafe. Além de toda a hipocrisia que há por trás disso, há também um uso falacioso da linguagem, distorcida para fazer crer que traz argumentos válidos. É a falácia da alegação especial.

Essa falácia diz que algo que é aplicável para todos não é aplicável para alguém específico, sem que haja algum motivo justificável para a exceção. Essa invocação nunca é voltada para algum ponto desfavorável, mas como justificativa de algum privilégio. Dessa forma, abre-se um desvio apropriado para uma pessoa ou grupo específico sem um imperativo lógico. Se os EUA são defensores exacerbados da democracia e de todos os seus princípios, deveriam, eles mesmo, ser os primeiros a praticá-la, e não evocar ideologias de fundo religioso para justificar sua ação.

Outro exemplo gritante vem das próprias religiões. Alega-se que todas as religiões são mitos, porque são constituídas por deuses e entidades vindas do folclore das diferentes populações, que surgiram de maneira intuitiva e pouco corroborável, e que, portanto, representam modos de formações de culturas, mas não de uma realidade. Nada disso vale quando aplicável à religião adotada por quem profere a alegação: essa, sim, é expressão da verdade, mesmo que seja formada a partir dos mesmíssimos elementos culturais que circunscrevem as demais culturas.

Uma boa parte da explicação vem da intenção da religião em ser expressão da verdade, o que motiva esse fenômeno do nós contra os outros, da mesma forma que as adesões patrióticas seguem lógica semelhante.

Alegações especiais, entretanto, podem ser justas e lógicas, e, obviamente, não falaciosas. Qualquer ação inclusiva, por exemplo, está enquadrada nesse caso: não se pode exigir de alguém que possua alguma limitação que realize ações fora de seu alcance. Nestes casos, a alegação especial é justificativa plenamente válida.

Enquanto isso, crianças, vamos tentando sobreviver com as atitudes pouco republicanas do democrático vizinho poderoso. É uma boa chance de se desvencilhar um pouco mais de sua esfera de influência e, quem sabe, chegarmos a uma independência mais plena. Patriotas deveriam gostar disso. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Um livro e tanto para entender se a democracia nos Estados Unidos é realmente tudo aquilo que eles proclamam:

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Ora (direis), 500 textos e alguma coisa sobre uma referência literária na minha escrita (além de 50 fatos sobre mim)

(Cheguei aos 500. Ora, direis, e daí?)

"A maturidade do homem consiste em haver reencontrado a seriedade que tinha na brincadeira quando era criança"

Nietzsche

Olá!

Números redondos causam uma estranha fascinação em nós, caniços pensantes. Aniversários de dez, vinte, trinta anos são dias iguais aos de 11, 21 ou 31 anos, mas damos uma atenção especial aos arredondamentos do sistema decimal. Talvez seja alguma forma atávica de criar marcos em uma vida que não sabemos ser longa, talvez seja uma necessidade de dar significado para coisas onde eles não têm, talvez seja a facilidade de rememoração, só isso. E o mesmo vai se aplicar não somente a datas, mas a qualquer outra coisa passível de mensuração numérica, como textos. E eu chego agora ao número 500, o que é um número razoável. Como combinei com vocês, vou aproveitar esses momentos para contar um pouco da história da minha escrita, para que vocês entendam um pouco mais dos meus processos de composição, se, por al, isso lhes vier a interessar.


Por mais que queiramos escrever livremente, o fato é que acabamos desenvolvendo uma “cara” na nossa escrita, da mesma forma que desenhamos uma “cara” facial mesmo. Nesse último caso, é comum em mim a barba malfeita, as olheiras pronunciadas e um certo ar blasé. Já na pena, certos usos e expressões dão um ornamento típico à mão que a conduz. Os mais atentos de vocês já devem ter percebido a recorrência de certas expressões, como alguns italianismos, uns truques de enfatização (como expressões tachadas) e algumas cositas más, mas uma das mais frequentes é a “ora (direis)”, que uso em vários e vários lugares deste humilde espaço. Ela não é gratuita, nem minha, mas tem algumas origens e significados. Vamos a eles.

Esse pequeno trechinho me foi inspirado pelo poeta Olavo Bilac, o maior representante do Parnasianismo no Brasil, a vertente lírica do Realismo. Extremamente preocupada com a forma e o resgate da antiguidade clássica*, a corrente deixou de lado o excesso de sentimentalismo do Romantismo, mesmo quando trata de temas afins. Afinal de contas, como sua intenção é o aspecto estético da literatura, uma espécie de arte pela arte, seus conteúdos possuem somenos importância quando confrontados com a forma, razão pela qual não são encontrados grandes tratados filosóficos dentre suas obras. Sua forma canônica é o soneto, uma estrutura composta por dois quartetos e dois tercetos**, utilizada na Itália da Idade Média pelos trovadores em suas pequenas canções (daí o nome soneto, do italiano sonetto, pequeno som). Além disso, possuem uma métrica fixa que busca trazer musicalidade mesmo quando simplesmente recitada. Qualquer soneto bem feito tem rimas extremamente bem colocadas e tamanhos exatos, precisos, como se aplicassem a matemática tão cara ao cientificismo que marcou a época.

Especificamente no meu caso, o poema de onde retiro a introdução é o Soneto XIII, que, por ser curtinho, reproduzo abaixo:

SONETO XIII

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A Via-Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
‘Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

Note que há até mesmo uma certa estranheza na maneira com a qual as palavras são distribuídas nos versos, porque é a forma o que importa, e não as posições. Embora eu não seja exatamente um admirador do estilo, o fato é que sempre que estudamos literatura é precisamente este soneto que nos é apresentado como exemplo do Parnasianismo brasileiro, o que é muito robustecido pela necessidade de reforços para os vestibulares. Desta forma, quem está nessa fase costuma ter esses versos decorados como se fosse o hit da semana na parada de sucessos (ainda existe esse termo?). Passado seu tempo, é esquecido igualmente, como se esquece de uma novela das seis qualquer.

Não foi o meu caso. Modéstia à parte, sou um bom e eclético leitor, pouco me importando a idade do texto. Muito pelo contrário, até gosto de observar maneiras diferentes de expressar um português bem escrito, e isso é visível nos clássicos. Essa é uma das razões pelas quais os vestibulares exigem essas leituras: para além da pseudochatice, aprende-se a língua materna lendo Machado de Assis, Gonçalves Dias, José de Alencar, Aluísio de Azevedo, Olavo Bilac.

A poesia em si não tem nada demais, conforme expliquei logo antes. É uma proclamação do amor como instrumento para aumentar a percepção e a metafísica por trás da aparência material das coisas. As estrelas, misteriosas e distantes, são objeto de visões mais líricas da existência, e a perspectiva mais científica dos realistas de então fazia com que essa espécie de magia estivesse se perdendo. Sendo assim, o ponto de contato deste soneto com o universo no qual eu o aplico vai um pouco mais para o substrato.

Percebam que Bilac dialoga com um sujeito indeterminado, uma espécie de voz geral que se opunha e, de certa forma, ironizava seus costumes e sua abstração, dada a maneira com a qual o considera louco. É um interlocutor inespecífico, uma síntese da voz cientificista de então. Provavelmente não se trata de um sujeito real, que lhe foi perturbar o lirismo, mas de uma instância dialética imaginária, criada para se opor filosoficamente às suas linhas de pensamento. Tendo esse tipo de tese desafiante em vista, transpus a dita cuja para uma boa parte de meus textos, especialmente quando eu mesmo faço esse zigue-zague de oposições ao meu próprio pensamento. 

Acho que é uma boa maneira de pensar. Não só porque é um exercício acerca das dúvidas que os outros podem ter sobre nossas colocações, o que não deixa de ser algo empático, mas também porque levantamos as dúvidas que temos dentro de nós mesmos, o que é essencial em Filosofia. Além disso, é um recurso estético de primeira e não deixa de ser uma bela remissão para a literatura de primeiro nível de Terra Brasilis. Espero sinceramente que a curiosidade atiçada por um fato tão prosaico sirva de estímulo para vocês, jovens leitores, rever os livros que te foram empurrados goela abaixo com um olhar mais livre, mais proveitoso.

Novamente eu coloco a questão aqui. É comum pensarmos que os membros da Academia Brasileira de Letras são nomeados por pura bajulação. Não vou dizer que isso nunca existiu, mas meia dúzia de indicações mais políticas que linguísticas não tiram sua principal função: a de serem guardiães da língua. Não fosse assim, os acordos ortográficos não passariam por seus crivos. Isso significa que depositamos neles a autoridade pelo que é certo ou errado em norma culta, assim como depositamos nas universidades a responsabilidade pelo bom conhecimento.

Ora (direis), justo você, que enche este espaço de gírias, estrangeirismos e neologismos, que defende a liberdade dos recursos linguísticos para trazer a melhor expressão possível de uma ideia vem proclamar a primazia de um certo diante de um errado? Então dizes que há uma hierarquia entre as línguas? Você tem quase razão, interlocutor imaginário, não fosse um detalhe - a comunicação precisa ser balizada quando buscamos sentidos precisos. Numa especificação funcional precisamos de acurácia e sentidos unívocos, sob pena de causarmos ambiguidades, compreende?

Isso significa que não estou hierarquizando, mas colocando cada coisa em seu devido lugar. Não se escreve artigos científicos com poesia, mas com linguagem precisa, a menos contraditória possível, enquanto não se é lírico com números e tabelas, mas com versos. É sobre isso que eu digo.

Fiz a contagem das vezes que utilizei o “ora direis” e cheguei a um número de 55, o que representa 11% do total de 500. Nada mal. Dá para dizer que é um recurso que uso frequentemente, de fato, e que acabo explicando para vocês. Afinal de contas, esse interlocutor imaginário também é um papel que pode ser assumido pelos meus leitores, e é a prova de que sua voz faz parte do momento em que estou escrevendo, razão pela qual reservo meus agradecimentos a todos os que passam por aqui.

Para finalizar, e de maneira completamente aleatória, retomo uma moda que espocou há alguns anos nesses facebooks da vida, aproveitando ainda a paráfrase dos 500, para relacionar 50 fatos sobre mim, que vão logo após a recomendação de leitura.

Até daqui a alguns anos, quando eu chegar no texto 600… Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Obviamente é um livro de Bilac, uma coletânea de suas poesias. Saboreiem o português como a língua bela que é, dispam-se de preconceitos e ganhem mais um campo para exercer seus prazeres.

BILAC, Olavo. Antologia. Via Láctea. São Paulo: Martin Claret, 2002

*O próprio nome do movimento é uma referência ao Monte Parnaso, um dos três mais importantes da mitologia, lar das musas e, por extensão, da poesia.

**Quartetos são estrofes de quatro versos, enquanto tercetos são estrofes de três versos.

Esta é uma pequena lista de fatos os mais aleatórios possíveis sobre mim e minha vida, apenas para cumprir uma moda tardia e provar que não tenho pensamentos filosóficos a todo momento. Uma coisa meio blogueirinha do começo da década passada, que provavelmente ninguém esperaria que eu colocasse por aqui. Foi uma sugestão de uns dez anos atrás, não lembro de qual das minhas afilhadas, que não foi levada a sério na época, mas que ficou adormecida e está saindo agora. É aquela velha história: no banheiro, há dias de pensar em Nietzsche e há dias de pensar em merda mesmo. Como homenagem a esses meus antigos leitores, que foram os primeiros impulsionadores deste espaço, uma juventude do ensino médio, e que adora essas coisas, finalmente solto a lista. Um beijo para vocês todos. Vamos lá!

  1. Eu adoro ficar descalço.  Provavelmente deve estar ligado à infância, mas o fato é que meias e sapatos me incomodam permanentemente;
  2. Sou um cara noturno. Isso não quer dizer necessariamente que eu durma tarde todos os dias, mas sim que eu funciono melhor à noite;
  3. Tive três filhos, mas o mais velho de todos morreu ainda nenê. É um clichê, mas um clichê de verdade: não há dor maior do que enterrar um filho;
  4. Falando em dor, costumo ser acometido anualmente por belas cólicas de rim. Minhas pedras costumam ser pequenas demais para serem implodidas, mas doem do mesmo jeito;
  5. Tenho pouquíssimas restrições alimentares, geralmente mais ligadas a nojo do que a sabores. Não há doce que eu não goste, o que é péssimo para um diabético;
  6. Sou destro, tanto de mão quanto de pé;
  7. Quando eu era muito criança, furei meu tímpano com um palito de fósforo. Desde então, ganhei uma diferença em acuidade auditiva digna de nota;
  8. Embora pareça que eu seja extrovertido, dada à quantidade de textos que escrevo, a verdade é que sou tímido, e luto diariamente contra essa característica; 
  9. Dizem que é uma forma extravagante de vaidade, mas o fato é que sou extremamente largado. Ando na rua como se estivesse andando em casa, exceção feita aos dias de trabalho, por força das chefias que me mandam andar elegante;
  10. Sou descendente de italianos e espanhóis, mas um daqueles testes de ancestralidade acusou uma ascendência armênia que me era completamente desconhecida. Bari aravot!
  11. O primeiro livro estritamente de Filosofia que eu li foi “O Mundo como Vontade e Representação”, de Schopenhauer. Comecei batendo forte!
  12. Não sou fã do uso indiscriminado de anglicismos, mas sou um coffee lover desde criancinha, e passei esse dom para os filhos;
  13. Eu alterno quase que de maneira bipolar meus períodos de paciência e ansiedade. Não tive até hoje capacidade de conseguir interpretar esses momentos. O negócio é procurar um psicólogo;
  14. Qualquer assunto relacionado a gestão, governança, curadoria me provoca sono imediato e irresistível. Não é metafórico, mas patológico;
  15. Comecei a fumar com doze anos, mesma idade que me pus a fazer a barba. Não sei dizer quando parei, mas faz tempo;
  16. Não sou muito para frente em termos de cinema, sendo um autêntico peixe fora d’água quando os colegas comentam sobre os últimos lançamentos. Mas gosto muito de teatro;
  17. Nunca fiz cirurgias. Que permaneça assim;
  18.  Tenho cinco tatuagens, todas relacionadas a música: uma bateria tribal, um baixo minimalista e três trechos de partituras, uma de Stairway to Heaven e duas de músicas minhas;
  19. Eu morei na beira de uma avenida onde se praticavam “rachas”. Uma vez livrei a cara de um desconhecido do baculejo dado pelos hômi, dizendo que era meu irmão. Foi pura compaixão inexplicável;
  20. Embora eu fale de Filosofia, meu trabalho remunerado é na área de Informática, como já falei bastante por aqui. Mas por doze anos militei na área da Contabilidade. Muito louco esse mundo;
  21. Tenho pouquíssimas fotos da minha infância, e menos ainda da minha juventude. Fotografia era um negócio caro, que envolvia não somente uma máquina na mão, mas também filmes, revelações, pilhas e, em alguns casos, flashes descartáveis. Não dava para abusar;
  22. Contei para vocês em várias partes deste espaço que eu tive várias bandas na juventude, algumas delas como baixista, outras como baterista, sempre como vocalista. O que eu não lhes disse é que eu tenho mais de cento e cinquenta músicas prontinhas. Mais da metade delas me dá vergonha hoje em dia;
  23. Passo a maior parte do meu tempo em Taubaté, mas, como meu domicílio eleitoral permanece em São Paulo, tecnicamente ainda moro lá;
  24. Minha preferência musical é por rock progressivo, mas sou absolutamente eclético no quesito música;
  25. É completamente irrelevante para mim, mas ok: sou geminiano. E meu signo chinês é o cachorro;
  26. Tenho quatro modelos de sonhos recorrentes: o mar invadindo a terra e eu me pondo a salvo; eu montando minhas parafernálias para tocar e algo impedindo; eu tentando voltar para casa à noite com todas as luzes do bairro apagadas, e a mais estranha, com uma empresa que trabalhei por pouco tempo, há tempos. Esse é o mais inexplicável deles, porque é o que mais recorre, e não tive nada de especial lá;
  27. Como quase todo mundo, não gosto de trabalhos domésticos. Entretanto, até curto cuidar da louça, meu momento de podcasts e vídeos;
  28. Entre mim e minha patroa, temos uma diferença que é o maior reforçador de estereótipos possível: enquanto eu me arrumo em cinco minutos, esse tempo não dá nem para ela escolher a cor do batom;
  29. Falando nisso, ela tem um apelido interno de Fô, apócope para flor, flor de maracujá. Quem vê aquela fruta toda amarrotada não imagina o quanto a flor é bonita;
  30. Embora eu considere que cante bem, não gosto da minha voz falada, o que é um fator para não gravar vídeos;
  31. Mas o fator principal é mesmo a falta de tempo para contentar meu perfeccionismo;
  32. Não sei por que, mas quando eu era criança eu detestava ficar no meio do que fosse: andando na rua, no banco do carro, no sofá;
  33. Não tenho uma expressão que seja muito característica minha, a não ser os paulistanismos típicos: mano, tá ligado, orra véi, essas coisas;
  34. Gibis: tive uma fase Marvel, onde li a história que mais me chocou: a morte da Fênix. Lembro até hoje de estar com os fones de ouvido escutando Listen to the Music, do Doobie Brothers, quando cheguei no desfecho. Falei mentalmente “pára tudo” e fui imediatamente pegar toda a série, desde o início, para chegar na conclusão calmamente. Foi uma espécie de apoteose para meu costume de quadrinhos;
  35. Isso tudo porque depois que casei eu abandonei o hábito, o que se deu a trinta e cinco anos nesta data;
  36. Nunca me dei bem com óculos escuros. Já me disseram que eu mudo de opinião se fizer um com os graus indicados para meus problemas oculares, mas estou com outras prioridades;
  37. Ouço as pessoas dizerem que gostam do frio ou do valor. Eu coloco as coisas nestes termos: funciono bem na faixa que vai dos 20 aos 30 graus;
  38. O primeiro disco que comprei por livre escolha foi Peter Frampton Special, e o tenho até hoje. Já com meu próprio dinheiro, foi Saints and Sinners, do Whitesnake;
  39. Que eu lembre: primeiro filme no cinema: Star Wars; primeiro circo: Vostok; primeira peça: uma chamada Bolívar. Primeiro jogo ao vivo: um do Desafio ao Galo, torneio de várzea famoso na década de 70; no profissional, Juventus x Guarani na rua Javari, ambos com meu avô;
  40. Aprendi violão praticamente sozinho, muito por conta dos colegas de escola que via fazendo sucesso com a galera;
  41. Doce ou salgado? Ambos;
  42. Não sou um bebedor contumaz. Na verdade, porre de verdade só tive um na vida, em uma daquelas festinhas dançantes dadas nos quintais das periferias, precursoras dos pancadões. Passei tão mal que foi suficiente. Era década de 80, e dada minha já citada falta de talento com a dança, fiquei cuidando do som. Deram a mim três garrafas de batida e sequei todas. Não preciso falar mais nada;
  43. Não sou daqueles malucos aficionados por carros. Talvez o fato de que meu primeiro carro tenha sido um Fiat 147 contribua para isso. Não dá para gostar de carros e ter um 147 na mesma relação;
  44. Minhas duas avós eram Marias: Mariquinha e Mariuccia. Acho que 90% das avós são Marias;
  45. Depois de velho, fiquei com a síndrome do jaleco branco. Ou será que eu estou com a pressão ruim mesmo?
  46. Nem nas tetas da minha mãe eu mamei: detesto leite;
  47. Quando eu era bem criança, um estabilizador caiu na minha cabeça. Isso explica muita coisa;
  48. Nunca viajei para o exterior;
  49. Nunca tive um apelido que tenha pegado. Deve ser porque nunca liguei para isso;
  50. Minha maior virtude é a paciência; pior defeito, a inconveniência.

Tá bom assim, né? Fui!

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (40 - Historiografia)

(A História é uma ciência humana, e, como tal, precisa de métodos par fazer seu trabalho direitinho)

“Eu vejo o futuro repetir o passado

Eu vejo um museu de grandes novidades

O tempo não para”

Cazuza

Olá!

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Contei bastante coisa da minha vida para vocês aqui neste espaço, porque esse é o mote do meu blog. É evidente que não acontecem coisas interessantes todo santo dia, então eu busco muita coisa do meu passado para ilustrar um tema que eu queira desenvolver. Ou, vice-versa, uma sessão de rememorações traz inspirações filosóficas. Como é possível supor, essas lembranças não são cem por cento precisas, pela via das distorções esperadas pelo tempo passado, e não têm o rigor científico esperado por quem quer a realidade ipsis litteris. As coisas são assim, a vida é essa. O que vamos fazer?

Essa é a mesma base que tem a tradição oral: lembranças que são passadas de pais para filhos e que vão ganhando incrementos ou decrementos na medida em que um conta para o outro. Eu tenho histórias dos meus avós que foram contadas para os meus pais e que eu transmiti para meus filhos, que, se houverem, também as repassarão para os meus netos. Se confrontadas as primeiras com as últimas, pode ocorrer de termos uma variação tão fantástica que seriam irreconhecíveis. Talvez só tenham um quê de intenção original. Quem conta um conto aumenta um ponto, é o dito popular.

Tudo seria diferente se o nonno tivesse pegado uma pena e escrito suas aventuras e desventuras. Bastaria, assim sendo, apresentar a missiva aos descendentes e evitar as discrepâncias. Perderíamos em saborização? Certamente, mas teríamos uma precisão maior. Desde que o vetusto parente mantivesse um mínimo de proximidade com os fatos.

E isso mostra que o problema persiste. A escrita do vovô garante uma persistência do relato, mas não sua veracidade (ou mesmo sua verossimilhança), e, sendo assim, percebemos bem de leve o grande problema da História como Ciência. Eu posso medir a potência de um raio, a velocidade de um fluxo sanguíneo, a distância entre astros, a potência de um veneno, a profundidade de uma fossa marítima. E a verdade de um fato?

Sim, gregos e romanos já destoavam no que eles consideravam verdade. Os primeiros gostavam do objeto no olho, mensurável e observável em sua aletheia, enquanto os últimos preferiam a coerência do relato, o encadeamento bem-feito e crível na sua veritas. Essas concepções são diferentes, e as ciências naturais se beneficiam da observação possível dos objetos presentes, enquanto a História não tem como prescindir da força do relato, seja direto ou não, porque seu material não está em cima de nossa mesa.

Já falei neste espaço sobre as diferenças entre Ciências naturais e Ciências humanas, e o fiz com o intuito de esclarecer como é possível estabelecer critérios para que consigamos reconhecer a cientificidade dessas áreas de conhecimento. Nesse bojo, está a História, que precisou construir todo um método para conduzir suas pesquisas e ganhar estatuto de estudo científico. Um método apropriado para sua realidade que, por muitas vezes, precisa lançar mão de expedientes colaterais à observação direta dos fenômenos, especialmente quando eles são exíguos. Esta metodologia recebe o nome de Historiografia.

Primeiro, vamos fixar a diferença: a História é a atividade humana que pretende investigar o passado para estabelecer correlações entre este e o presente. Já a Historiografia são os meios materiais com os quais se levam a cabo esses estudos. Ou seja, a Historiografia é uma ferramenta da História para produzir resultados minimamente confiáveis.

Normalmente, ciências exatas não dão margem a erros, e ganham um nível de especificidade difícil de desviar. Solva dez gramas de bicarbonato de sódio em 20 ml de vinagre e veja a espuma se formar. Aplique 20 bar de pressão em uma bexiga com a espessura de 1 micrômetro e veja ela explodir. Aumente a temperatura de 100 ml de água a 100 graus centígrados por 15 minutos e perceba que o recipiente ficará vazio. É A+B=C, sem furo. Se houver, procure uma condição para a falha, e certamente você encontrará um motivador (ou terá em mãos uma falsificação da teoria).

Nada disso é possível em História, que não é uma ciência experimental. Se não estamos falando de ocorrências recentes, que possuem diversos suportes para manter fidedignidade aos relatos, contamos com elementos muito difusos que são facilmente postos em dúvida. Se formos parar para pensar, meios de registro são invenções recentes. Internet existe há a 50 anos, imagens em filme existem desde o finalzinho do século XIX, os primeiros áudios são de um pouco antes, a imprensa foi inventada no século XVI e, mesmo a escrita, tem alguma coisa próxima de cinco mil anos, bem pouco para uma espécie que existe há mais de 300.000. Então registros precisos como as ciências exatas exigem são impossíveis.

Então vamos colocar a viola no saco e nos conformar com a impossibilidade da História? Não. O que é preciso é estabelecer métodos que permitam reconhecer a estrutura mais verossímil possível sobre as realidades passadas, especialmente as mais remotas.

Em primeiro lugar, é preciso estabelecer que as fontes históricas não se limitam aos registros escritos, mas a tudo que possa dizer sobre uma determinada época, e, nesse sentido, a Arqueologia é uma auxiliar de mão cheia. Desde as antiquíssimas pinturas rupestres das grutas de Maltravieso, os registros da ação humana são elementos que são considerados vitais para a tentativa de descrever modos de vida e fatos quotidianos.

Os registros, quanto mais longínquos se vão no tempo, mais fragmentados se apresentam. A alegoria do quebra-cabeças é perfeita para a montagem do painel histórico, e muitos dos claros são suprimidos com suposições que vão sendo corroboradas através de elementos externos à própria sequência de fatos. Frequentemente, é preciso adotar uma postura de lateralidade, ou seja, de olhar para os lados em busca de dados confirmatórios indiretos. Como é comum termos poucos elementos para dar guarida à veracidade dos relatos obtidos, é preciso que se olhe ao redor do contexto para obter elementos que ajudem a explicar, confirmar ou refutar o que se diz. Se eu olhar para a historinha do nonno, é de bom tom (por amor à veracidade) validar as afirmações, como a existência de histórias parecidas, de outras fontes que indiquem ser possível o fato descrito, se faz sentido a temporalidade informada ou se isso tudo somente comprova a criatividade do macróbio progenitor. Sendo assim, é preciso estabelecer critérios que orientem a pesquisa historiográfica para além do fato diretamente descrito.

Um desses critérios, talvez o principal deles, é o de múltipla atestação. Para cada vez em que encontramos um relato sobre um determinado acontecimento, dizemos que possuímos uma atestação, ou seja, uma afirmação sobre um fato que tem a intenção de corresponder à realidade. Contar uma piada ou cantar uma música, por exemplo, não são atestações, porque, a princípio, não há aí uma intenção em ser verdadeiro. Quanto mais gente fala sobre um fato, mais provável é que o mesmo tenha ocorrido. Ainda mais: tendo várias atestações distintas, é possível filtrar as que possuem maior quantidade de indicações. Sendo assim, havendo um relato dissidente em meio a dez outros convergentes, é muito mais provável que o multiplamente atestado seja o real. Sendo assim, essa é a linha que será primariamente pesquisada, por ser mais provável. A não ser… 

A não ser que sejam observados outros critérios, o que demonstra a complexidade que há em estabelecer uma metodologia historiográfica. Um deles é o curioso embaraço. Ele diz que, entre versões dissonantes, a que causaria maior constrangimento a quem a profere tende a ser a verdadeira. Isso é fácil de explicar: quando teu time tem uma derrota acachapante, daquelas traulitadas históricas, normalmente você dirá que a culpa é do juiz mal intencionado, enquanto teu coleguinha mais sensato dirá, mui simplesmente, que o time jogou mal. Qual das duas é mais embaraçosa? A segunda, evidentemente. Temos a tendência de procurar culpados externos quando sofremos decepções, ou a atribuir heroísmos em atos corriqueiros, e nossa análise fica enviesada, como prova a psicologia com o efeito ator-observador. Sendo assim, se confessamos uma condição embaraçosa, dificilmente será porque estamos mentindo (conscientemente ou não). É a velha questão da história contada pelos vencedores.

O critério da dissimilaridade é razoavelmente parecido com o do constrangimento. Ele reza que uma afirmação é tanto mais digna de confiabilidade, quanto mais estiver afastada de uma prática comum. Trocando em miúdos: se algum fato histórico está em dessemelhança com uma tradição anterior ou posterior, ou seja, é “diferentão”, tem mais chances de ser real. Isso acontece porque é mais esperado que um fato dissonante esteja mais de acordo com as tradições em voga, justamente para corroborá-las. É em cima deste critério que surgiu o lectio difficilior potior, termo latino que significa “a leitura mais difícil é a mais forte”, um princípio da crítica textual que entende ser o texto de compreensão mais difícil aquele que tem maiores chances de ser o mais correto, justamente porque os escribas teriam a tendência de adaptar os textos à sua realidade, ao seu tempo e ao seu espaço físico, de modo que, na concorrência entre os textos, o mais “estranho” tende a ter a menor carga cultural daqueles que os transcreveram, e, consequentemente, menos modificado.

Só que há também o critério da coerência. Mesmo que haja indicativos de dissimilaridade ou de constrangimento, as narrativas precisam seguir alguma lógica para ganharem o selo de verossímeis. Não basta um texto ser antigo: ele não pode ser contraditório, precisa ser semanticamente interpretável e precisa estabelecer relações lógicas entre as ideias que exprime. A questão é que nem sempre a coerência é facilmente visível. Digamos, por exemplo, que as casas de um determinado local foram inundadas após uma chuva muito forte. A priori, é um fato que pode ser facilmente aceito. Entretanto, o histórico de inundações daquele lugar somente se iniciou após a construção de uma represa. Neste caso, relatos de inundações anteriores a essa construção são incoerentes, mesmo sendo um caso que, na atualidade, seja perfeitamente factível. Portanto, questões de coerência são uma condição primária para a boa aceitação de uma fonte.

Outro ponto importante é o critério de linguagem e ambiente, que trazem boas balizas para consolidar entendimentos. Por exemplo: uma expressão que nasceu no Brasil em meados da década de 80 é o tal “da lata”. Sua origem foi a curiosíssima história do pesqueiro Solana Star, que fazia uma carga ilegal de cannabis da Austrália para os Estados Unidos. Quando estava no Atlântico Sul, o navio precisou de reparos e, para isso, aproximou-se da costa brasileira. Ao perceber a aproximação da guarda costeira, a tripulação se livrou da carga danada, desovando 22 toneladas de latas repletas de maconha no mar. A Marinha somente conseguiu recuperar três e meia dessas toneladas, o que significa que a maior parte ficou boiando no oceano, até que as correntes marítimas as levassem para o litoral de São Paulo e Rio de Janeiro. Como era produto de primeira linha, muito diferente dos talos de chuchu que se vendiam nos carrinhos de pipoca, a expressão “da lata” era sinônimo de produto bom: tênis da lata, música da lata, comida da lata. Como esses fatos todos ocorreram entre 1987 e 1988 (o “verão da lata”), essa expressão linguística só tem sentido se ocorrida nesse período ou, no máximo, a posteriori. Nenhum fato pode ser considerado anterior se calçando nessa expressão. Mesma coisa com tópicos relacionados aos locais onde se conseguem as informações, que forma o ambiente onde uma história é narrada. Percebam que não se falam em corvos nas mitologias tupi-guarani, porque esse interessante bicho não faz parte da fauna brasileira. Ambientações corretamente definidas em um texto ajudam a enquadrá-lo como mais confiável, porque muitas vezes os usos e costumes de um determinado local são os poucos elementos que temos para referendar o que está sendo dito.

Notem como todos esses critérios são como “esquentadores de palpites”, e não como certificadores da verdade. Eles são indicativos de que uma assertiva é mais crível, ou, melhor ainda, que é menos provável do que outras, mas não asseguram a veracidade de modo incontestável. Por exemplo: Sócrates tem três atestações robustas: a de Platão, a de Xenofonte e a de Aristófanes. Os três trazem visões substancialmente diferentes sobre a mesma pessoa. Em Platão, Sócrates é mais filosófico; em Xenofonte, mais prático e, em Aristófanes, um parlapatão. Essa dissonância, ao contrário do que pode parecer a princípio, é benéfica para a pesquisa histórica, porque dá mostras de um indivíduo multifacetado e que desperta diferentes sentimentos, como sói acontecer com nós mesmos. Mas comprova em definitivo a existência socrática? Não, mesmo que sejam evidências muito boas. O contrário ocorre com os evangelhos, por exemplo. A cadeia de semelhanças existentes entre os três sinóticos, ao contrário de anunciar uma unicidade, denuncia compartilhamento de fontes, embora todos eles possuam material próprio. Ou seja, embora haja três fontes, há a hipótese de que elas sejam apenas uma, até porque o Evangelho de São João é muito mais teológico do que histórico.

Reconhecidas as dificuldades desta metodologia, é necessário reconhecer como seu espírito é legitimamente científico, primeiro por buscar caminhos onde eles parecem não existir, e principalmente por reconhecer sua falibilidade. Quer mais científico que isso? Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Um lugar e tanto para aprender como funcionam os métodos historiográficos é o canal do professor Jonathan Matthies, especializado em antiguidades religiosas, e que sempre evidencia as dificuldades e as soluções para interpretar textos que são naturalmente cercados de polêmicas. Vale maratonar.

https://www.youtube.com/@Jonathan14734

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Sobre a caixa de Pandora e a esperança vista como o pior dos males

(É bom ter esperança? Ou é mais uma maneira de se imobilizar?)

“Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens”

Nietzsche

Olá!

Entre prós e contras, há os contras e os prós. Embora haja absolutamente de tudo a vinte passos de distância, o centro de São Paulo é um lugar sujo, isso está assente e bem consolidado. O meu lugar de fala é o de quem mora lá, e, com isso, analisa todo aquele universo que lhe afeta diretamente. O primeiro olhar de qualquer pessoa é o de que os responsáveis pela lixeira são os mendigos e catadores, mas esse é um ledo engano. Os porcos somos nós mesmos, auxiliados por um poder público que parece não saber o significado de zeladoria urbana. São nossos legítimos representantes, e, sendo assim, nossas mãos que assinam decretos.

Saindo do geral para o miúdo, nós do centro acabamos nos acostumando a ter um passo de bêbado para fugir da sujeira. Pulo uma casca de fruta à esquerda e já encolho o pé para evitar um saco de lixo à direita e, nesse estranho balé, vou evitando ter que lavar o tênis. Mas, da mesma forma que renomada bailarina, mesmo na prática há passos em falso, e é inevitável cair em alguma armadilha.

Uma delas foi uma caixa de papelão que estava bem na porta do balansarte prédio em que habito, numa das tardes desses domingos pasmacentos. Um treco daqueles bem no meio do caminho da estreita passagem é algo irritante para alguém que já vive irritado, e mandei ela para longe com um chute digno de Nelinho. O problema é que a tal caixa foi lá colocada para encobrir um conteúdo pouco nobre, e, espalhafatoso, cai com o pé do chute em cheio da massa disforme, que se espalhou por toda a realidade circunstante, eu incluso. Como era inevitável, a supernova orgânica chegou ao tapete da entrada e o melecou todo, implantando um cenário caótico. Como ainda tento manter civilidade, contei até dez e não quis deixar a hecatombe para o pobre seo Antônio, o porteiro ocasional dessa bodega de condomínio caro e zeladoria ausente, e lá vim com balde e esfregão para curtir um domingo perfeito. A cada etapa da limpeza, um impropério berrado em alto e bom som, daqueles de rachar um carvalho ao meio e aumentar o léxico de carroceiros. Levando em consideração que é um prédio de senhorinhas católicas conservadoras, virei atração turística por um dia, da pior maneira possível. “Que moço boca suja!” foi a afirmação mais elogiosa, por causa do “moço”.

Momentos impulsivos não trazem belos resultados, como se pode ver. Algumas ações imediatas são necessárias para a própria sobrevivência, como provam os instintos, mas, em geral, elas vão muito além da necessidade, porque são desmedidas. Mas o fato é que muita coisa na humanidade já foi decidida nessa base, a ponto de um dos mais significativos mitos gregos estar associado a eles: a caixa de Pandora. Essa não é só uma explicação para a presença do mal no mundo, mas também como a fraqueza de um ser pode influenciar todo o universo, assim como a inconsequência de um ato impensado encadeia uma série de consequências imprevisíveis.

Mitos são assim mesmo: formalizam uma determinada maneira de pensar, geralmente de um pensamento assentado em uma comunidade, que adotam a voz de um profeta ou outra autoridade para consolidar a narrativa como se fosse única, daquele povo. Os gregos formaram a base filosófica do pensamento ocidental, e, por essa razão, há inúmeros mitos que conhecemos e aplicamos poeticamente. Dentre tantos, a história da jovem Pandora é um dos mais célebres.

A narrativa mais consolidada de Pandora e sua caixa é a seguinte: em um momento em que ainda não existia a humanidade, o universo assistia deuses e titãs se digladiando pelo poder. Como essas lutas incluem desde sempre não somente a força, mas a trairagem, os titãs Prometeu e Epitemeu se bandearam para o lado dos deuses, o que desbalanceou o equilíbrio a favor destes últimos. É dito de Prometeu que ele tinha a capacidade de antever os acontecimentos com base em sua aguçada inteligência, e prevendo a vitória dos deuses, convenceu seu irmão a segui-lo. Como prêmio pela ajuda dos dois, Zeus, o líder dos deuses, não só não os jogou no Tártaro* com os demais titãs derrotados, como também concedeu a ambos o direito de povoarem a terra. Epimeteu, aquele que vê depois, utilizou todos os atributos possíveis para criar todos os animais, restando a Prometeu a criação de características únicas ao homem. Ocorre que este era um animal dentre os outros, um bruto sem nenhum brilho, já que Epimeteu não lhe reservou nada de mais insigne. Prometeu foi a Zeus pleitear o uso do fogo pela humanidade, o que foi prontamente negado, dado ser esta a ferramenta de sabedoria equalizadora aos deuses. Insatisfeito, Prometeu roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens, que, dessa forma, passaram a ter sabedoria equivalente, e, dessa forma, imperar sobre as demais criaturas.

Zeus ficou puto não gostou nada da atitude de Prometeu, e lhe impingiu um castigo eterno: acorrentá-lo em uma pedra do Monte Cáucaso, aonde uma águia viria diariamente para lhe rasgar o ventre e comer seu fígado. Sendo um imortal, todos os dias seu corpo era regenerado, o que o penalizava infinitamente. Mas sobrou também para nós, a criatura do infeliz titã, e o castigo veio na forma de ardil.

Uma vez livre de Prometeu, Zeus criou uma companheira para Epimeteu, a primeira de todas as mulheres, e lhe deu o nome de Pandora, que, em grego, significa algo como “todos os dons”. Ela recebeu a criação de todos os deuses olímpicos, que, de algum modo, deram a ela características: dentre outros dons, de Afrodite, recebeu a beleza; de Atena, recebeu as habilidades artísticas, e recebeu o poder de persuasão de Hermes, bem como a curiosidade de Hera, o que acabou por ser sua desgraça. Foi entregue em casamento para o titã, apaixonadíssimo por sua beleza. Zeus deu-lhes um presente de casamento inusitado: um jarro** a quem foi recomendado a Pandora jamais ser aberto. Conhecer do espírito humano, Zeus sabia que essa proibição era quase uma ordem para que Pandora fizesse o oposto. Movida pela curiosidade, a bela mulher descumpriu a ordem divina (já ouvi essa história em algum lugar) e abriu a tampa do jarro, e o fenômeno aconteceu: lá dentro, estavam contidos todos os males que acometem a humanidade: a fome, as doenças, as guerras, a solidão, a fraqueza, as dores físicas e morais, o sofrimento externo e interior. À abertura do receptáculo, todos eles fugiram e se espalharam incontidamente, por toda parte para onde pudessem ir. Quando Pandora se deu conta do que havia feito, tentou fechar novamente o tampo, mas reteve somente um último item: a esperança. Compreendendo que não fazia sentido mantê-la no recipiente, achou por bem libertá-la também, e ela foi se espalhar pelo universo, como todos os demais conteúdos.

Normalmente, a interpretação da libertação da esperança é vista de forma positiva. Apesar do grande projeto de vingança de Zeus contra a criação de Prometeu, ele ainda tem alguma piedade, e a esperança seria o alimento espiritual que faria com que os homens ainda tivessem alguma forma de encarar o mundo, apesar da dor e do reconhecimento da dor. Não fosse a esperança libertada, a raça humana não teria grandes motivos para permanecer viva.

Entretanto, há quem interprete essa esperança que resta no fundo da caixa de Pandora como um bem entre os males, ou não só um mal entre os outros, mas também como o pior dos males. É de Nietzsche, dentre outros, que eu falo.

A ideia é a seguinte: se eu saio de um estado de felicidade para um mundo assombrado por todas as desgraças possíveis, seria natural pensar que a opção seria sair desse mundo, mesmo que pela via da morte. Imaginar-se como sofredor de um mal eterno é precisamente o expediente das quais as religiões lançam mão para quando querem criar uma atmosfera infernal: a dor eterna. Se isso não ocorre, o que pode explicar o fenômeno? 

Notem, meus amigos, que um mundo sem vida é, também, um mundo sem dor. É preciso que os seres existam para que a dor também exista, já que sofrimento é uma inerência da vida. Não se preocupem com o metal que o ferreiro malha, nem com a pedra que o britador perfura: elas não sentem dor. Sendo assim, a abertura da caixa de Pandora só é efetiva porque a humanidade persiste em sua existência. Seria mais ou menos como um vírus que exterminasse todos os bípedes implumes: ele mesmo se exterminaria junto. Os males, portanto, só existem se a esperança de dias melhores motiva as pessoas a se manterem vivas. E, por isso, a esperança é o mal maior, o mal que nos impede de nos apartar do mal.

A esperança, olhando por um ângulo mais psicológico, é a concretização do instinto de sobrevivência. Ele é muito difícil de explicar, mas sua função biológica grita: manter a existência de uma espécie. Tentamos nos defender mesmo quando é óbvio que não o conseguiremos. Uma pessoa em queda livre tenta se agarrar desesperadamente a qualquer salvaguarda imaginária, e isso é uma das inerências da espécie dos caniços pensantes, mesmo que não haja tempo de pensar. O instinto é isso: uma reação imediata a uma situação que pede solução urgente, mesmo que não haja nenhuma chance racional de sucesso. Nós vamos sempre tentar e isso é algo que ajudou o homo sapiens a chegar onde está, assim como a pulex irritans, o canis lupus e outros mais que ainda povoam o planetinha azul em cuidados paliativos. Por outro lado, todas as espécies têm, de uma forma ou de outra, estratégias de reprodução que visam ampliar a quantidade de indivíduos para mantê-la ou ampliá-la, o que é uma salvaguarda para os fracassos individuais. Não há consciência de que reproduzir perpetua a espécie; há apenas os atos individuais em si, que ocorrem porque são prazerosos. 

É difícil determinar por que temos essa sanha de preservação da espécie? Seleção natural, meus caros. Aqueles indivíduos que, de uma forma ou de outra, estabeleceram estratégias de prevenção acabaram durando mais do que os valentões. Nem sempre a força é sinônimo de longevidade, e, no sentido da perpetuação, melhor ter algum cagaço.

O medo é filho deste instinto de sobrevivência, e, no final das contas, a sua ferramenta prática. Ele é certamente um dos males liberados por Pandora no mito, mas, sem ele, seria mais difícil de estarmos aqui. Viram como o sinal se inverte? Levados ao extremo, os próprios males comprovam ter um lugar nas cadeias consequencialistas dos fenômenos do universo.

No final das contas, a medida está no ponto onde a vida vale a pena, onde o balanço entre dores e prazeres pende irresistivelmente para o primeiro lado, e na insistência que fazemos em ainda ter projetos onde eles não podem prosperar. É aqui onde a assertiva de Nietzsche parece contraditória. Quando lembramos que ele é um defensor da vida levada pelo caminho da tragédia grega, com tudo o que ela carrega em si mesma, fica estranho achar que a esperança, ou seja, a vida vivida em seu limite, seja um mal. Pior ainda, o mal dos males. Na verdade, a questão é outra: Nietzsche se posiciona exatamente contra a ilusão da esperança, o que justamente impede de ver a vida como ela é. O amor fati não pode acontecer se ficar refreado por uma esperança que se fixa a um mundo ideal e infactível. Esse é o grande ponto de Nietzsche contra a esperança.

A própria palavra esperança explica esse sentido. Ela denuncia que ficamos à espera, que aguardamos sentados enquanto os navios passam ao longe, e nisso reside seu mal. É que ficamos muito acostumados às assertivas religiosas de que a esperança é o tempo de aguardar por um mundo eterno mais justo, mas isso acaba ocultando o quanto essa atitude é engessante. Quem espera nunca alcança, deveria ser o ditado popular, porque não se move, não busca, não combate, e, em resumo, não cai no fluxo da vida e a incorpora à sua própria existência. Basicamente, essa é a maneira com a qual Nietzsche encara o mito de Pandora.

Sendo assim, pisar na merda não deixa de ser um mal, e ficar na esperança de que o tempo vai limpar o corredor de entrada do prédio só vai fazer com que o fedor aumente. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como vários outros mitos, o de Pandora está espalhado em diversos escritos e na tradição oral. A obra abaixo é onde ele é tratado com uma versão relativamente bem detalhada.

HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Curitiba: Segesta, 2012.

* O Tártaro é uma espécie de inferno da cultura grega, um submundo onde há dor e punições àqueles que ousaram contra os deuses. Semelhante ao xeol judaico? Muito. Uma mera coincidência? Sei não.

** Ou vaso, ou caixa, dependendo da narrativa. Tem até um termo usado em Portugal que não cabe bem usar no Brasil, para evitar mal-entendidos.

terça-feira, 22 de julho de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: a injustiçada Portuguesa e os símbolos deixados de lado

(É bom se atualizar, mas sem que isso apague nossas origens)

“O senhor afasta muitos homens da velha tripulação para embarcar outros na outra margem: tenha cuidado para que não lhe aconteça perder os velhos sem encontrar os novos”.

Giovanni Guareschi

Olá!

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Quando eu era pequeno, morei por um brevíssimo tempo na vila do Manito, um imigrante português que veio para o Brasil em fuga da pobreza e das peripécias de Salazar, lá pela década de 40, em uma dessas travessas perdidas pela então semi-agrícola Vila Ema. Era um lugar curioso, porque não se tratava de um cortiço, mas de um beco sem saída em forma de “S”, todo feito de casinhas de cômodo e cozinha, iniciando pela venda do Manolo (outro português, ora pois), e terminando em uma pracinha onde ficava a casa maior, do próprio Manito. Uma passagem pela lateral garantia acesso à chácara do seo João, lindeira ao Córrego da Mooca, onde hoje reina o asfalto precário da Anhaia Melo. Bem ao fundo, havia um galpãozinho encimado por um tabique onde nosso herói criava pombos, e tudo isso ficava ao lado de uma fábrica de brinquedos, a Bandeirante. Acho que todo mundo já teve um brinquedinho de plástico dessa fábrica. Era evidente que sua intenção era ter uma vila de casas operárias com aluguel de baixo custo, para abastecer a tal fábrica.

Eu ainda era beeeeem criança, e, desse tempo, não lembro de quase nada. A questão é que minha nonna morava na rua paralela, e da laje de onde ela criava suas codornas e estendia suas roupas dava para ver todo o complexo do Manito, e, mais tarde, lá eu praticava uma rara atividade contemplativa: as revoadas dos pombos do nosso caro senhorio lusitano. Eles ficavam circulando toda a área que ia da fábrica à beira do córrego, por cima das chácaras. Faziam traçados que incluíam curvas suaves e repentinas, subidas e descidas, trocas de lideranças, em uma coreografia que me deixava dúvidas de seus motivos, mas que me encantava pela orquestração, que terminava com o pouso no barracão, todos juntos, como se fosse a esquadrilha da fumaça (sem fumaça). Ali, logo ao lado, um puxadinho permitia à dona Rosa, esposa do Manito, estender suas roupas, e daí ambos provavam suas origens e predileções: os coletes e bombachas do bailarico que participavam e as camisas da Portuguesa, a sua grande paixão.


A Portuguesa era, então, um dos grandes times de São Paulo. Uma mistura folclórica de azares inexplicáveis e má vontade arbitral fazia com que os títulos fossem raros, mas a Lusa estava sempre no topo das tabelas, formando esquadrões respeitáveis e, principalmente, disponibilizando muitos jogadores para o futebol brasileiro. Seus jogos contra os papa-títulos eram considerados clássicos, ou seja, a Portuguesa era um deles, um dos grandes, capaz de fornecer jogadores para a Seleção Brasileira e conquistar títulos mundiais, embora fosse atribuída a ela uma espécie de síndrome de Robin Hood: roubar pontos dos maiores para entregar aos pequenos. São pequenas coisas de um grande futebol, já diria Ary Silva.

Estranhamente, entretanto, as camisas que eu via nos varais do Manito não eram comuns de se ver por aí. Nos botecos que meu pai frequentava não se viam, nem na escola, nem nas ruas em que eu brincava. Nos jogos que meu avô me levava no Canindé, a torcida era sempre pequena, muitas vezes superada pelo adversário que a visitava. No Pacaembu, onde meu pai me levava, ela sumia, restrita a um cantinho do tobogã. E isso foi uma das perguntas que eu me fazia nos meus primórdios futebolísticos: por que ninguém gosta da Portuguesa?

Na verdade, a pergunta pós maturidade mudou um pouco, até mesmo porque eu gosto da Portuguesa, sempre fui bastante frequente em seus jogos, e vi gerações diferentes de ótimos jogadores, como Enéas, Toninho, Edu Marangon e outros, até mesmo em sua fase de derrocada, ocorrida após 2013. E, sim, já escrevi sobre ela. A pergunta passa a ser: por que a torcida lusa é tão pequena?

Eu tenho minhas teorias, muitas delas já pensadas por outras pessoas (poucos títulos, concorrência com times maiores, nicho imigratório), mas a principal delas diz respeito a uma contradição de identidade: ao mesmo tempo em que há um vínculo evidente com uma colônia específica, há também uma perda de tradições que faziam sua magia. Vamos detalhar.

As coisas são únicas não apenas porque se distinguem das demais, mas porque se mantêm assim ao longo do tempo. Mais: embora possa se compreender que a identidade é uma relação que se tem consigo mesmo, ela é rigorosamente necessária para que se estabeleça relações com os outros. Aquele que é único carrega consigo a característica de ser distinguível entre os demais, e oferecer justamente isso em suas relações. Afinal de contas, a maneira com a qual eu me apresento em uma relação já diz sobre mim. Pois bem.

A Portuguesa tem símbolos pesados, como as cores da bandeira portuguesa e seu próprio nome, mas que, volta e meia, pensa-se em mexer neles. Houve algumas vezes em que se pensou em mudar seu nome, ideia cretina na opinião deste pouco humilde escriba. Acabou não acontecendo, mas algo teria que sofrer respingos da tentativa de popularizar a equipe. A Lusa tinha como um de seus principais símbolos a Severa, sua mascote humana, coisa rara neste mundo que adota bichos e mais bichos para esta função. É uma dançarina de vira* com todos os trajes típicos, como o lenço na cabeça, o xale, o avental com o distintivo e as tamancas. Representa, portanto, uma das manifestações culturais mais típicas da comunidade portuguesa e mais distinguíveis dentre tantas etnias que temos em Terra Brasilis. Sempre que você for a uma festa das nações, é dessa forma que a comunidade portuguesa se apresentará, indefectivelmente. Sendo assim, a Severa é indubitável.

Acontece que a Portuguesa resolveu mudar sua mascote, passando a utilizar um prosaico, ordinário, trivial, corriqueiro, consueto, banal, comezinho leão, mais um dentre tantos. Há incontáveis times cuja mascote é um leão: Sport, Vitória, Fortaleza, Jabaquara, Remo, Bragantino, Mirassol, Avaí, Inter de Limeira, Cianorte, Comercial de Ribeirão, Villa Nova, Nacional de Manaus, Peñarol de Manaus, Baraúnas, Jacuipense, Hercílio Luz, Potyguar, Capivariano, Bandeirante, Taquaritinga, Inter de Lages, União Barbarense, entre tantos outros que não tive paciência para pesquisar. Fora os estrangeiros, como o Chelsea, Estudiantes, Bologna, dentre muitos outros. Nada contra os simpáticos leõezinhos, que representam força, reinado e tantos outros atributos associáveis ao futebol, até mesmo porque os motivos para a doação são diferentes para cada um deles, mas é que a Portuguesa trocou um elemento forte de identificação por outro muito menos concatenado às suas origens. A dançarina compartilhava unicamente seus dotes com sua coirmã do litoral, a Cachopa da Briosa, o que fazia todo o sentido do mundo. Com o leão, é um entre outros.

A ideia parece dupla: criar uma mascote popular e puxar o saco homenagear sua principal torcida, a Leões da Fabulosa. Essa organizada tem fama de ser pequena (quando comparada a uma Gaviões da Fiel da vida), mas extremamente engajada e, às vezes, meio brusca nas cobranças. Na verdade, conversando no miúdo, a ideia é tripla. Há também um fator muito mais doloroso, que já debati no texto sobre a coirmã santista. A Severa não é reconhecida por este nome pelas demais torcida, mas como “burra”, fruto do preconceito arraigado e tão conhecido contra os portugueses. Ou seja, o terceiro sentido está em uma ocultação, o que, se for verdade, é um erro desditoso. Mas vamos partir da premissa dupla, para não gerar polêmicas.

Ora (direis), símbolo é símbolo. O que resta de efetivo é o concreto, então é lícito que os símbolos sejam mudados e adequados a uma realidade distinta. Certo, interlocutor imaginário, símbolos mudam como a própria vida, mas a questão é que se mira a cabeça e não se acerta nem o pé se a escolha não for ponderada. Vemos milhares de leõezinhos tatuados em braços e pernas hoje em dia, demonstrando o quanto o símbolo de realeza e força é potente e popular**. Perguntado sobre o assunto, o tatuador que me traça rabiscos disse ser, de longe, a mais pedida de todas as figuras contemporâneas, a quilômetros de distância da segunda colocada. Portanto, leões são símbolos bem acolhidos sob vários aspectos. Mas o mascote não é um mero símbolo, e sim uma representação de uma marca com valor intrínseco, o que traz uma espécie de “promessa” fundamental, de que há algo nela que a distingue das demais. A marca marca, e é um elemento tão forte que, por vezes, é o ativo mais valioso que uma empresa possui. Pergunte à fábrica dos Sucrilhos© se você pode usar o tigre dela para fazer sua publicidade – você terá um sonoro “não” sucedendo uma gostosa gargalhada, ou, no mínimo, um orçamento impagável. Mascotes não são objetos que se trocam, como os bibelôs das estantes, porque carregam significados inapagáveis para quem os adota. A não ser em casos especialíssimos. E este não me parece um deles.

A mascote é um símbolo, e, como tal, traslada um sentido abstrato através de sua materialidade. Em outras palavras, seu valor concreto deixa provisoriamente de ser o que é para adquirir um novo significado. E nós não somos só nosso corpo material, mas também tudo o que nós queremos transmitir aos outros e a nós mesmos. Sentimos orgulho em vestir a camisa de nosso time e incorporar em nós toda a chuva de significados que ela nos traz, e dizer ao mundo que aqueles valores são nossos. Dizemos muito através dos símbolos, como a cruz pendurada no pescoço, o círculo pacifista dos hippies, as camisas pretas dos rockeiros. Tudo isso transmite uma mensagem ao mundo que nos rodeia, dizendo como gostaríamos de ser reconhecidos, e sua escolha, mesmo que feita de modo espontâneo, precisa de uma carga de intencionalidade. Até mesmo uma cruz gamada diz muito sobre o que alguém pensa.

É bem verdade que a Portuguesa vem tentando resgatar a Severa, mas não sei até que ponto pode ser tarde. Já há bastante problemas a resolver, embora a recente adoção do modelo SAF possa ser o sopro esperado para resolver o que parecia insanável. Eu faria fortes campanhas de reparação nesse aspecto simbólico também. Deixem o leão para a torcida, onde ele está em bom lugar.

Sendo assim, embora eu não me considere um conservador, tenho reservas a guinadas que, por um lado não conduzem a nada, por outro abandonam o que tínhamos de mais importante. A um mascote, é atribuído um poder semelhante ao de um talismã, ou seja, a atribuição de se trazer boas energias, de atrair sorte, e isso vai além da mera crendice. É o resumo de um sistema de valores e, sendo assim, não se troca assim como se muda de camisa. Não se muda de camisa de um time.

Mas, pensando aqui, um talismã, se atrai boa sorte, não atrairá seu oposto se abandonado? A se pensar***.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Esse eu tenho autografado. É um livro de rememoração da maior campanha dos tempos recentes da Portuguesa, que chegou à final do campeonato brasileiro de 1996, que levou consigo toda a torcida da cidade. Comprei em uma feira de camisas na estação São Bento, antes da pandemia, diretamente com o autor, colunista do site www.netlusa.com.br. Nem sei se fazem esses eventos ainda.

ZORZI, André Carlos. Para Nós és Sempre o Time Campeão. A Portuguesa de Desportos no Ano de 1996. São Paulo: Edição do Autor, 2017.

* Ao lado do fado, o vira é uma das expressões musicais mais típicas de Portugal. São como duas faces da mesma moeda: enquanto o fado é mais introspectivo, o vira é mais comemorativo, evocando as chegadas das épocas de colheita e abundância.

** E o quanto temos de evangélicos hoje em dia, especialmente com uma certa flexibilização do lastro moral que norteia a vaidade. A figura do Leão de Judá, uma das designações mais populares para Jesus nos meios cristãos, cresceu na mesma medida em que as referências explícitas à religiosidade do contribuinte se tornaram mais importantes. Quem sabe eu não escreva mais sobre isso?

*** Mera brincadeirinha. Não acredito em poderes metafísicos, mas não quis perder a oportunidade.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

O café filosófico do quotidiano – sobre não compensar mais ter filhos

(Ainda faz sentido ter filhos neste mundo cada vez mais ameaçado?)

“Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

Machado de Assis 

Olá!

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Esse episódio da minha “carreira” de barista já tem um tempinho, mas era inevitável que ele acontecesse. Eu posso me considerar experiente em passar um bom cafezinho, mas na hora do espresso eu não tinha lá muitos recursos. É bem verdade que eu tenho uma mini, mas é um brinquedinho quando comparado aos grandes conjuntos profissionais, e aproveitei uma belíssima promoção para fazer um treinamento e aprender como lidar com essas maravilhas da tecnologia a serviço da estética palatável.

Não foi exatamente perto, e sim na municipalidade de Itupeva. Ora (direis), moras em São Paulo e precisas ir longe assim? É que o preço valia a viagem, com todo o programa que estava incluso, e Itupeva está a uma hora de São Paulo. Então fui, vá cuidar de sua vida, interlocutor chato. O curso foi todo em uma cafeteira grande, uma Astoria, daquelas de dois grupos, e incluiu pesagem, moagem, descarte, limpeza do equipamento, regulagem de pressão, tudo o que é preciso para dominar o mundo dos baristas. Faltou só a experiência, mas isso fica para um dia qualquer.

É óbvio que esses cursos não vendem apenas o conhecimento, e não vejo nada de errado nisso quando o propósito não é apenas e tão-somente vender produtos. Havia grãos e utensílios também lá, para quem se interessasse em partir para aprofundamentos. Além disso, havia também a divulgação de artesanato temático, e me interessei por um método de filtragem, esse aí embaixo:


Ele tem uma cara meio industrial, meio laboratorial, por motivos óbvios: um bloco de cimento fundido em seção circular recebe um conjuntinho hidráulico, e neste, um funil de vidro faz as vezes de porta-filtro. Bastante simples e semelhante com a solução que montei para fazer cold brew, o trabalho pode ser posto para girar com a adição de um filtro V60 pequeno.

Daí para frente, é só colocar o pó e iniciar a percolação. Como não nasceu com o fim específico de ser um método pensado para a melhor extração possível, é preciso passar a água aos poucos, sob pena de transbordar a preparação. Usar um pó mais grosso ajuda na tarefa.

Nome do utensílio: Porta-filtro artesanal

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Grossa

Dinâmica: Como qualquer método de percolação. Cuidado com a carga de água, já que o funil tem bojo pequeno

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio

Vendo os últimos pingos cair no decanter, surge a pergunta na cabeça: evidentemente, vou criar um texto para este método também. Mas até quando isso vai se seguir? Todo santo dia surge alguma novidade, então minha tarefa será infinita. Se a cada cor de porta-filtro, ou a cada formato de bocal eu for criar um texto novo, nunca pararei de escrever. É contraditória essa nuvem pessimista sobre o que não é negativo, por vários motivos. Essa não é mesmo uma série finita, e eu escrevo sob inspiração, e não obrigação. O dia que eu não quiser escrever, eu não escrevo e pronto – não sou pago para isso. Mas fiquei pensando na multiplicação infinita e fiz um vínculo meio afetivo, meio consequencialista de que cada coisa que eu escrevo tem uma metaforização filial, o velho chavão de que pari cada um deles e que não sou só seu responsável, mas também seu admirador. Parece estranho tratar um texto como um filho.

Lembro das discussões na mesa da família sobre as quantidades adequadas de filhos, e de como o vinho e a idade tornavam as opiniões mais radicais. Hoje em dia, essa discussão traspassa a mera janta do sábado à noite e vai permear correntes filosóficas que dizem ser errado ter filhos. Fiquei com vontade de explorar esse tema. 

Primeiríssima coisa é fazer um disclaimer*. Não vamos tratar aqui da velha assertiva do senso comum de que os pobres se multiplicam como ratos. Ela é, em primeiro lugar, falaciosa, e também não cabe a mim discutir o que cada um faz de sua vida. Também não quero falar de uma modinha que tem por objeto uma ênfase nas desvantagens em ter filhos, que atrasam carreiras, desmancham corpos, detonam orçamentos, porque isso passa e, dialeticamente, vem uma corrente dizendo que devemos povoar o mundo. Minha ideia é falar de filosofia.

Em primeiro lugar, só conseguimos falar de vida quando passamos pelo rito iniciático do nascimento. É um momento que já carrega consigo uma simbologia, mas, em termos práticos, é traumático para o neonato: uma transição de um meio líquido, escuro e com temperatura controlada para o inverso disso. Seu próprio organismo passa a ter que dar conta de muitas das funções outrora exclusivas de sua mãe. O momento de sua primeira respiração é decisivo e não se processa sem dor, além de iniciar um processo de fome e sede. O próprio ato do nascimento consiste em uma passagem por uma fenda estreita somente possível dada a flexibilidade de suas articulações. A vida começa com o sofrimento.

Daí por diante, temos aquela velha certeza da morte, que pode ser próxima ou não. A segunda certeza vem deste intervalo – ele sempre será povoado de dores. Só não as temos vivas na memória cem por cento do tempo porque nossa própria sobrevivência psíquica depende de não estar permanentemente em sua expectativa.

Aí surge uma grande questão. O confronto entre a quantidade de momentos felizes e as dores e sofrimentos compõem uma equação em desequilíbrio. Em tese, nossa prole é aquela a quem mais amamos, a quem mais nos entregamos. Há inúmeras figurinhas de feicebuque enaltecendo a entrega das mães, que tiram da própria boca para dar aos filhos e que, tirando toda a pieguice, refletem uma verdade bastante abrangente – é rara a mãe que não dá o melhor que possui para seus filhos. E a eles que, ao dar a vida, damos a dor. Não seria essa uma atitude antiética?

A ideia de que a vida é ruim em si mesma não é nova. Jesus mesmo é um daqueles que diz não ser seu reino deste mundo, e que somente uma vida futura traria conforto aos que sofrem. É óbvio que o Cristianismo carrega em si a ideia ambígua de que a vida é sagrada, mas que necessita de muitas restrições para se chegar à vida autêntica, razão pela qual é somente com Schopenhauer que passamos a ter uma visão mais consagrada do desequilíbrio entre prazer e dor. Ele pontua a vontade como objeto metafísico do mundo (sintetizado no instinto de preservação) e a escravização que gera sua contínua ação. Dá algumas opções para solucionar a questão, como a ascese e a apreciação artística, mas deixa em aberto o valor de se preservar a existência como um fenômeno coletivo.

Uma das soluções que poderíamos pensar tem aquela famosa frase dos jovens rebelados contra os pais: “eu não pedi para nascer”. É uma assertiva que normalmente ocorre naqueles confrontos de gerações, mas que pode ir além do desabafo. Não pede para nascer porque pode sofrer e causar sofrimento e, sendo assim, torna-se questionável aquilo que é tomado como bênção. Será que é melhor não procriar? Não perpetuar a miséria, como diz o Machado da epígrafe?

Eu fui atrás dos argumentos antinatalistas e encontrei os principais fundamentos contemporâneos em dois autores: David Benatar e Júlio Cabrera, mas os pontos que o segundo levanta são bem mais complexos e intrigantes, razão pela qual vou tocar em sua filosofia em um segundo momento.

A questão encarada pelo filósofo sul-africano David Benatar é uma pergunta desafiadora. Não é crueldade perpetuar a vida pela via da procriação? É uma opção confortável hoje em dia, com tantos métodos contraceptivos. Ele trabalha a questão da vida que vale a pena através do valor que o prazer e a dor tem quando colocadas em uma balança. Desta forma, constrói uma tabela semelhante à que Pascal montou em sua famosa aposta, combinada com o pensamento agostiniano de ausência e presença. Ela funciona mais ou menos assim:

O prazer é bom;

O sofrimento é ruim;

A ausência de sofrimento é boa;

A ausência de prazer não é ruim

Percebam que a mancadinha desse argumento está no último item. Poderíamos raciocinar que a ausência de prazer é ruim, mas, de fato, não nos é mais doloroso passar o domingo sem a picanha do que com ela. Na verdade, é uma questão de expectativa: se eu nem espero ter a picanha, não me dói nem um pouco não a ter. Por isso, não faz sentido equiparar ausência de prazer com sofrimento. O mesmo não pode ser aplicado à equivalência adjacente. Não sofrer é sempre bom, sem a indiferença que pode ser causada pela ausência de prazer. Uma vez colocada em um esquema tabelado, temos a seguinte correlação:


Existência

Ausência

Sofrimento (ruim)

Sofrimento (bom)

Prazer (bom)

Prazer (não é ruim)

A conclusão é que existe um descompasso entre ambos, e Benatar deu a essa constatação o nome de assimetria do sofrimento. E ele caiu como uma luva para justificar uma causa contrária à procriação. Se nós nos propomos a amar nossos filhos, a melhor maneira de manifestar esse amor é não os ter, fadados à dor. Ter filhos é, essencialmente, um ato de egoísmo e de crueldade com quem mais deveríamos nos preocupar. É o antinatalismo pelo prisma filosófico.

Mas não parece muito simplista esse argumento? Benatar subdivide suas assimetrias em outras mais específicas para dar mais sustentação a ele. A primeira é a assimetria dos deveres procriativos, que diz ser eticamente obrigatório não criar pessoas infelizes, enquanto essa obrigatoriedade não se aplica a não criar pessoas felizes. Ou seja, quando temos filhos, é dever procurar a felicidade para eles, o que não é aplicável quando eles não existem. O segundo ponto é a assimetria da beneficência prospectiva, que consiste no seguinte: não há nenhuma questão moral na potencialidade de uma criança ser feliz, enquanto a potencialidade de que ela seja sofredora é um bom motivo para não a criar. O terceiro item é a assimetria retrospectiva da beneficência, que, trocada em miúdos, diz que podemos nos arrepender pelo sofrimento de uma pessoa que existe em função de uma decisão nossa, enquanto isso não acontecerá se esta pessoa nunca existir. E, por fim, a quarta assimetria é o sofrimento distante e as pessoas felizes ausentes, que se resume na tristeza que sentimos quando alguém existe e sofre, e sabemos que, se não tivessem existido, não teriam sofrido. A ausência de dor é boa mesmo quando existe a ausência de vida. Dessa forma, procura consolidar seu argumento e dar mais substância a ele. O antinatalismo conserta a assimetria pela abstenção de prazeres possíveis em confronto com sofrimentos certos. Melhor que remediar, é prevenir, parece nos dizer o pensador.

Eu, pessoalmente, parto de uma perspectiva meio nietzscheana para não ser aderente a esse conjunto de ideias. Penso que os grandes arrependimentos, quando estivermos em tempo de avaliar o frigir de ovos da nossa vida, são mais do que aquilo que não se fez, e não do que se fez. Tive três filhos, dois ainda com vida, e espero pelos netos com aquele mesmo espírito de reparação que tantos avós têm para viver com eles uma relação mais ilimitada, que o serviço pela educação dos filhos não permitiu. Entendo o posicionamento dos antinatalistas, e acho mesmo que são válidos seus argumentos, mas há limites em impor a cultura sobre a natureza. Ter filhos é natural do ser humano, ainda que tenhamos consciência de que a balança possa estar em desequilíbrio, numa posição que passa de qualquer fronteira pragmática. Benatar pode até acertar quando diz que há mais momentos de dor do que de prazer, mas a intensidade desses menores momentos aprazíveis pode superar os inúmeros pequenos momentos sofridos, e isso não está em sua balança.

No final, tudo isso me parece mais medo do que qualquer outra coisa. Paranoia? Talvez. Temos um mundo à beira de um colapso ambiental, e isso é um motivo aparentemente justo para não prolongar sofrimentos. Só que há lições que nos ensinam que o dia é feito para ser colhido, e o mesmo Nietzsche que citei tem uma assertiva que considero definitiva: a vida é um pacote que compramos pronto, sem controle de como virá a ser, e se preocupar com tanto excesso tolhe mais o que podemos ter de bom que o que podemos ter de ruim. Eu prefiro morrer afogado a morrer de sede.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não tem em português ainda. Melhor: exercitei meu italiano, que andava meio parado.

BENATAR, David. Meglio non essere mai nati. Il dolore di venire al mondo. Milão: Carbonio, 2018.

*Disclaimer do disclaimer: é bom dar uma posicionada sobre essas questões de anglicismos. Existem certos termos que, embora haja correspondentes na língua natal, traduzem tão bem o que se quer dizer que sou favorável ao seu uso. Neste caso específico, o termo disclaimer traz uma ideia de “deschamado” que inexiste em português. E antes de ser chamado de anglicismo, é preciso saber que o próprio termo é um galicismo dentro da língua inglesa, o que comprova que é preciso cuidado ao se considerar um purista, porque esse órgão chamado linguagem é uma das coisas mais complexas que temos na cultura humana.