(A História é uma ciência humana, e, como tal, precisa de métodos par fazer seu trabalho direitinho)
“Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para”
Cazuza
Olá!
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Contei bastante coisa da minha vida para vocês aqui neste
espaço, porque esse é o mote do meu blog. É evidente que não acontecem coisas
interessantes todo santo dia, então eu busco muita coisa do meu passado para
ilustrar um tema que eu queira desenvolver. Ou, vice-versa, uma sessão de
rememorações traz inspirações filosóficas. Como é possível supor, essas
lembranças não são cem por cento precisas, pela via das distorções esperadas
pelo tempo passado, e não têm o rigor científico esperado por quem quer a realidade
ipsis litteris. As coisas são assim, a vida é essa. O que vamos fazer?
Essa é a mesma base que tem a tradição oral: lembranças que
são passadas de pais para filhos e que vão ganhando incrementos ou decrementos
na medida em que um conta para o outro. Eu tenho histórias dos meus avós que
foram contadas para os meus pais e que eu transmiti para meus filhos, que, se
houverem, também as repassarão para os meus netos. Se confrontadas as primeiras
com as últimas, pode ocorrer de termos uma variação tão fantástica que seriam
irreconhecíveis. Talvez só tenham um quê de intenção original. Quem conta um
conto aumenta um ponto, é o dito popular.
Tudo seria diferente se o nonno tivesse pegado uma
pena e escrito suas aventuras e desventuras. Bastaria, assim sendo, apresentar
a missiva aos descendentes e evitar as discrepâncias. Perderíamos em
saborização? Certamente, mas teríamos uma precisão maior. Desde que o vetusto
parente mantivesse um mínimo de proximidade com os fatos.
E isso mostra que o problema persiste. A escrita do vovô
garante uma persistência do relato, mas não sua veracidade (ou mesmo sua
verossimilhança), e, sendo assim, percebemos bem de leve o grande problema da
História como Ciência. Eu posso medir a potência de um raio, a velocidade de um
fluxo sanguíneo, a distância entre astros, a potência de um veneno, a
profundidade de uma fossa marítima. E a verdade de um fato?
Sim, gregos e romanos já destoavam no que eles consideravam
verdade. Os primeiros gostavam do objeto no olho, mensurável e observável em
sua aletheia, enquanto os últimos preferiam a coerência do relato, o
encadeamento bem-feito e crível na sua veritas. Essas
concepções são diferentes, e as ciências naturais se beneficiam da
observação possível dos objetos presentes, enquanto a História não tem como
prescindir da força do relato, seja direto ou não, porque seu material não está
em cima de nossa mesa.
Já falei neste espaço sobre as diferenças
entre Ciências naturais e Ciências humanas, e o fiz com o intuito de
esclarecer como é possível estabelecer critérios para que consigamos reconhecer
a cientificidade dessas áreas de conhecimento. Nesse bojo, está a História, que
precisou construir todo um método para conduzir suas pesquisas e ganhar
estatuto de estudo científico. Um método apropriado para sua realidade que, por
muitas vezes, precisa lançar mão de expedientes colaterais à observação direta
dos fenômenos, especialmente quando eles são exíguos. Esta metodologia recebe o
nome de Historiografia.
Primeiro, vamos fixar a diferença: a História é a atividade
humana que pretende investigar o passado para estabelecer correlações entre
este e o presente. Já a Historiografia são os meios materiais com os quais se
levam a cabo esses estudos. Ou seja, a Historiografia é uma ferramenta da
História para produzir resultados minimamente confiáveis.
Normalmente, ciências exatas não dão margem a erros, e
ganham um nível de especificidade difícil de desviar. Solva dez gramas de
bicarbonato de sódio em 20 ml de vinagre e veja a espuma se formar. Aplique 20
bar de pressão em uma bexiga com a espessura de 1 micrômetro e veja ela
explodir. Aumente a temperatura de 100 ml de água a 100 graus centígrados por
15 minutos e perceba que o recipiente ficará vazio. É A+B=C, sem furo. Se
houver, procure uma condição para a falha, e certamente você encontrará um motivador
(ou terá em mãos uma
falsificação da teoria).
Nada disso é possível em História, que não é uma ciência
experimental. Se não estamos falando de ocorrências recentes, que possuem
diversos suportes para manter fidedignidade aos relatos, contamos com elementos
muito difusos que são facilmente postos em dúvida. Se formos parar para pensar,
meios de registro são invenções recentes. Internet existe há a 50 anos, imagens
em filme existem desde o finalzinho do século XIX, os primeiros áudios são de
um pouco antes, a imprensa foi inventada no século XVI e, mesmo a escrita, tem
alguma coisa próxima de cinco mil anos, bem pouco para uma espécie que existe
há mais de 300.000. Então registros precisos como as ciências exatas exigem são
impossíveis.
Então vamos colocar a viola no saco e nos conformar com a
impossibilidade da História? Não. O que é preciso é estabelecer métodos que
permitam reconhecer a estrutura mais verossímil possível sobre as realidades
passadas, especialmente as mais remotas.
Em primeiro lugar, é preciso estabelecer que as fontes
históricas não se limitam aos registros escritos, mas a tudo que possa dizer
sobre uma determinada época, e, nesse sentido, a Arqueologia
é uma auxiliar de mão cheia. Desde as antiquíssimas pinturas rupestres das
grutas de Maltravieso, os registros da ação humana são elementos que são
considerados vitais para a tentativa de descrever modos de vida e fatos
quotidianos.
Os registros, quanto mais longínquos se vão no tempo, mais
fragmentados se apresentam. A alegoria do quebra-cabeças é perfeita para a
montagem do painel histórico, e muitos dos claros são suprimidos com suposições
que vão sendo corroboradas através de elementos externos à própria sequência de
fatos. Frequentemente, é preciso adotar uma postura de lateralidade, ou seja,
de olhar para os lados em busca de dados confirmatórios indiretos. Como é comum
termos poucos elementos para dar guarida à veracidade dos relatos obtidos, é
preciso que se olhe ao redor do contexto para obter elementos que ajudem a
explicar, confirmar ou refutar o que se diz. Se eu olhar para a historinha do
nonno, é de bom tom (por amor à veracidade) validar as afirmações, como a
existência de histórias parecidas, de outras fontes que indiquem ser possível o
fato descrito, se faz sentido a temporalidade informada ou se isso tudo somente
comprova a criatividade do macróbio progenitor. Sendo assim, é preciso
estabelecer critérios que orientem a pesquisa historiográfica para além do fato
diretamente descrito.
Um desses critérios, talvez o principal deles, é o de
múltipla atestação. Para cada vez em que encontramos um relato sobre um
determinado acontecimento, dizemos que possuímos uma atestação, ou seja, uma
afirmação sobre um fato que tem a intenção de corresponder à realidade. Contar
uma piada ou cantar uma música, por exemplo, não são atestações, porque, a
princípio, não há aí uma intenção em ser verdadeiro. Quanto mais gente fala
sobre um fato, mais provável é que o mesmo tenha ocorrido. Ainda mais: tendo várias
atestações distintas, é possível filtrar as que possuem maior quantidade de
indicações. Sendo assim, havendo um relato dissidente em meio a dez outros
convergentes, é muito mais provável que o multiplamente atestado seja o real.
Sendo assim, essa é a linha que será primariamente pesquisada, por ser mais
provável. A não ser…
A não ser que sejam observados outros critérios, o que
demonstra a complexidade que há em estabelecer uma metodologia historiográfica.
Um deles é o curioso embaraço. Ele diz que, entre versões dissonantes, a que
causaria maior constrangimento a quem a profere tende a ser a verdadeira. Isso
é fácil de explicar: quando teu time tem uma derrota acachapante, daquelas
traulitadas históricas, normalmente você dirá que a culpa é do juiz mal
intencionado, enquanto teu coleguinha mais sensato dirá, mui simplesmente, que
o time jogou mal. Qual das duas é mais embaraçosa? A segunda, evidentemente.
Temos a tendência de procurar culpados externos quando sofremos decepções, ou a
atribuir heroísmos em atos corriqueiros, e nossa análise fica enviesada, como
prova a psicologia com o efeito
ator-observador. Sendo assim, se confessamos uma condição embaraçosa,
dificilmente será porque estamos mentindo (conscientemente ou não). É a velha
questão da história contada pelos vencedores.
O critério da dissimilaridade é razoavelmente parecido com o
do constrangimento. Ele reza que uma afirmação é tanto mais digna de
confiabilidade, quanto mais estiver afastada de uma prática comum. Trocando em
miúdos: se algum fato histórico está em dessemelhança com uma tradição anterior
ou posterior, ou seja, é “diferentão”, tem mais chances de ser real. Isso
acontece porque é mais esperado que um fato dissonante esteja mais de acordo
com as tradições em voga, justamente para corroborá-las. É em cima deste
critério que surgiu o lectio difficilior potior, termo latino que
significa “a leitura mais difícil é a mais forte”, um princípio da crítica
textual que entende ser o texto de compreensão mais difícil aquele que tem
maiores chances de ser o mais correto, justamente porque os escribas teriam a
tendência de adaptar os textos à sua realidade, ao seu tempo e ao seu espaço
físico, de modo que, na concorrência entre os textos, o mais “estranho” tende a
ter a menor carga cultural daqueles que os transcreveram, e, consequentemente,
menos modificado.
Só que há também o critério da coerência. Mesmo que haja
indicativos de dissimilaridade ou de constrangimento, as narrativas precisam
seguir alguma lógica para ganharem o selo de verossímeis. Não basta um texto
ser antigo: ele não pode ser contraditório, precisa ser semanticamente
interpretável e precisa estabelecer relações lógicas entre as ideias que
exprime. A questão é que nem sempre a coerência é facilmente visível. Digamos,
por exemplo, que as casas de um determinado local foram inundadas após uma chuva
muito forte. A priori, é um fato que pode ser facilmente aceito. Entretanto, o
histórico de inundações daquele lugar somente se iniciou após a construção de
uma represa. Neste caso, relatos de inundações anteriores a essa construção são
incoerentes, mesmo sendo um caso que, na atualidade, seja perfeitamente
factível. Portanto, questões de coerência são uma condição primária para a boa
aceitação de uma fonte.
Outro ponto importante é o critério de linguagem e ambiente,
que trazem boas balizas para consolidar entendimentos. Por exemplo: uma
expressão que nasceu no Brasil em meados da década de 80 é o tal “da lata”. Sua
origem foi a curiosíssima história do pesqueiro Solana Star, que fazia uma
carga ilegal de cannabis da Austrália para os Estados Unidos. Quando estava no
Atlântico Sul, o navio precisou de reparos e, para isso, aproximou-se da costa
brasileira. Ao perceber a aproximação da guarda costeira, a tripulação se
livrou da carga danada, desovando 22 toneladas de latas repletas de maconha no
mar. A Marinha somente conseguiu recuperar três e meia dessas toneladas, o que
significa que a maior parte ficou boiando no oceano, até que as correntes
marítimas as levassem para o litoral de São Paulo e Rio de Janeiro. Como era
produto de primeira linha, muito diferente dos talos de chuchu que se vendiam
nos carrinhos de pipoca, a expressão “da lata” era sinônimo de produto bom:
tênis da lata, música da lata, comida da lata. Como esses fatos todos ocorreram
entre 1987 e 1988 (o “verão da lata”), essa expressão linguística só tem
sentido se ocorrida nesse período ou, no máximo, a posteriori. Nenhum fato pode
ser considerado anterior se calçando nessa expressão. Mesma coisa com tópicos
relacionados aos locais onde se conseguem as informações, que forma o ambiente
onde uma história é narrada. Percebam que não se falam em corvos nas mitologias
tupi-guarani, porque esse interessante bicho não faz parte da fauna brasileira.
Ambientações corretamente definidas em um texto ajudam a enquadrá-lo como mais
confiável, porque muitas vezes os usos e costumes de um determinado local são
os poucos elementos que temos para referendar o que está sendo dito.
Notem como todos esses critérios são como “esquentadores de
palpites”, e não como certificadores da verdade. Eles são indicativos de que
uma assertiva é mais crível, ou, melhor ainda, que é menos provável do que
outras, mas não asseguram a veracidade de modo incontestável. Por exemplo:
Sócrates tem três atestações robustas: a de Platão, a de Xenofonte e a de
Aristófanes. Os três trazem visões substancialmente diferentes sobre a mesma
pessoa. Em Platão, Sócrates é mais filosófico; em Xenofonte, mais prático e, em
Aristófanes, um parlapatão. Essa dissonância, ao contrário do que pode parecer
a princípio, é benéfica para a pesquisa histórica, porque dá mostras de um
indivíduo multifacetado e que desperta diferentes sentimentos, como sói
acontecer com nós mesmos. Mas comprova em definitivo a existência socrática?
Não, mesmo que sejam evidências muito boas. O contrário ocorre com os
evangelhos, por exemplo. A cadeia de semelhanças existentes entre os três
sinóticos, ao contrário de anunciar uma unicidade, denuncia compartilhamento de
fontes, embora todos eles possuam material próprio. Ou seja, embora haja três
fontes, há a hipótese de que elas sejam apenas uma, até porque o Evangelho de
São João é muito mais teológico do que histórico.
Reconhecidas as dificuldades desta metodologia, é necessário
reconhecer como seu espírito é legitimamente científico, primeiro por buscar
caminhos onde eles parecem não existir, e principalmente por reconhecer sua
falibilidade. Quer mais científico que isso? Bons ventos a todos!
Recomendação de canal:
Um lugar e tanto para aprender como funcionam os métodos
historiográficos é o canal do professor Jonathan Matthies, especializado em
antiguidades religiosas, e que sempre evidencia as dificuldades e as soluções
para interpretar textos que são naturalmente cercados de polêmicas. Vale
maratonar.
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