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quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Sobre a caixa de Pandora e a esperança vista como o pior dos males

(É bom ter esperança? Ou é mais uma maneira de se imobilizar?)

“Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens”

Nietzsche

Olá!

Entre prós e contras, há os contras e os prós. Embora haja absolutamente de tudo a vinte passos de distância, o centro de São Paulo é um lugar sujo, isso está assente e bem consolidado. O meu lugar de fala é o de quem mora lá, e, com isso, analisa todo aquele universo que lhe afeta diretamente. O primeiro olhar de qualquer pessoa é o de que os responsáveis pela lixeira são os mendigos e catadores, mas esse é um ledo engano. Os porcos somos nós mesmos, auxiliados por um poder público que parece não saber o significado de zeladoria urbana. São nossos legítimos representantes, e, sendo assim, nossas mãos que assinam decretos.

Saindo do geral para o miúdo, nós do centro acabamos nos acostumando a ter um passo de bêbado para fugir da sujeira. Pulo uma casca de fruta à esquerda e já encolho o pé para evitar um saco de lixo à direita e, nesse estranho balé, vou evitando ter que lavar o tênis. Mas, da mesma forma que renomada bailarina, mesmo na prática há passos em falso, e é inevitável cair em alguma armadilha.

Uma delas foi uma caixa de papelão que estava bem na porta do balansarte prédio em que habito, numa das tardes desses domingos pasmacentos. Um treco daqueles bem no meio do caminho da estreita passagem é algo irritante para alguém que já vive irritado, e mandei ela para longe com um chute digno de Nelinho. O problema é que a tal caixa foi lá colocada para encobrir um conteúdo pouco nobre, e, espalhafatoso, cai com o pé do chute em cheio da massa disforme, que se espalhou por toda a realidade circunstante, eu incluso. Como era inevitável, a supernova orgânica chegou ao tapete da entrada e o melecou todo, implantando um cenário caótico. Como ainda tento manter civilidade, contei até dez e não quis deixar a hecatombe para o pobre seo Antônio, o porteiro ocasional dessa bodega de condomínio caro e zeladoria ausente, e lá vim com balde e esfregão para curtir um domingo perfeito. A cada etapa da limpeza, um impropério berrado em alto e bom som, daqueles de rachar um carvalho ao meio e aumentar o léxico de carroceiros. Levando em consideração que é um prédio de senhorinhas católicas conservadoras, virei atração turística por um dia, da pior maneira possível. “Que moço boca suja!” foi a afirmação mais elogiosa, por causa do “moço”.

Momentos impulsivos não trazem belos resultados, como se pode ver. Algumas ações imediatas são necessárias para a própria sobrevivência, como provam os instintos, mas, em geral, elas vão muito além da necessidade, porque são desmedidas. Mas o fato é que muita coisa na humanidade já foi decidida nessa base, a ponto de um dos mais significativos mitos gregos estar associado a eles: a caixa de Pandora. Essa não é só uma explicação para a presença do mal no mundo, mas também como a fraqueza de um ser pode influenciar todo o universo, assim como a inconsequência de um ato impensado encadeia uma série de consequências imprevisíveis.

Mitos são assim mesmo: formalizam uma determinada maneira de pensar, geralmente de um pensamento assentado em uma comunidade, que adotam a voz de um profeta ou outra autoridade para consolidar a narrativa como se fosse única, daquele povo. Os gregos formaram a base filosófica do pensamento ocidental, e, por essa razão, há inúmeros mitos que conhecemos e aplicamos poeticamente. Dentre tantos, a história da jovem Pandora é um dos mais célebres.

A narrativa mais consolidada de Pandora e sua caixa é a seguinte: em um momento em que ainda não existia a humanidade, o universo assistia deuses e titãs se digladiando pelo poder. Como essas lutas incluem desde sempre não somente a força, mas a trairagem, os titãs Prometeu e Epitemeu se bandearam para o lado dos deuses, o que desbalanceou o equilíbrio a favor destes últimos. É dito de Prometeu que ele tinha a capacidade de antever os acontecimentos com base em sua aguçada inteligência, e prevendo a vitória dos deuses, convenceu seu irmão a segui-lo. Como prêmio pela ajuda dos dois, Zeus, o líder dos deuses, não só não os jogou no Tártaro* com os demais titãs derrotados, como também concedeu a ambos o direito de povoarem a terra. Epimeteu, aquele que vê depois, utilizou todos os atributos possíveis para criar todos os animais, restando a Prometeu a criação de características únicas ao homem. Ocorre que este era um animal dentre os outros, um bruto sem nenhum brilho, já que Epimeteu não lhe reservou nada de mais insigne. Prometeu foi a Zeus pleitear o uso do fogo pela humanidade, o que foi prontamente negado, dado ser esta a ferramenta de sabedoria equalizadora aos deuses. Insatisfeito, Prometeu roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens, que, dessa forma, passaram a ter sabedoria equivalente, e, dessa forma, imperar sobre as demais criaturas.

Zeus ficou puto não gostou nada da atitude de Prometeu, e lhe impingiu um castigo eterno: acorrentá-lo em uma pedra do Monte Cáucaso, aonde uma águia viria diariamente para lhe rasgar o ventre e comer seu fígado. Sendo um imortal, todos os dias seu corpo era regenerado, o que o penalizava infinitamente. Mas sobrou também para nós, a criatura do infeliz titã, e o castigo veio na forma de ardil.

Uma vez livre de Prometeu, Zeus criou uma companheira para Epimeteu, a primeira de todas as mulheres, e lhe deu o nome de Pandora, que, em grego, significa algo como “todos os dons”. Ela recebeu a criação de todos os deuses olímpicos, que, de algum modo, deram a ela características: dentre outros dons, de Afrodite, recebeu a beleza; de Atena, recebeu as habilidades artísticas, e recebeu o poder de persuasão de Hermes, bem como a curiosidade de Hera, o que acabou por ser sua desgraça. Foi entregue em casamento para o titã, apaixonadíssimo por sua beleza. Zeus deu-lhes um presente de casamento inusitado: um jarro** a quem foi recomendado a Pandora jamais ser aberto. Conhecer do espírito humano, Zeus sabia que essa proibição era quase uma ordem para que Pandora fizesse o oposto. Movida pela curiosidade, a bela mulher descumpriu a ordem divina (já ouvi essa história em algum lugar) e abriu a tampa do jarro, e o fenômeno aconteceu: lá dentro, estavam contidos todos os males que acometem a humanidade: a fome, as doenças, as guerras, a solidão, a fraqueza, as dores físicas e morais, o sofrimento externo e interior. À abertura do receptáculo, todos eles fugiram e se espalharam incontidamente, por toda parte para onde pudessem ir. Quando Pandora se deu conta do que havia feito, tentou fechar novamente o tampo, mas reteve somente um último item: a esperança. Compreendendo que não fazia sentido mantê-la no recipiente, achou por bem libertá-la também, e ela foi se espalhar pelo universo, como todos os demais conteúdos.

Normalmente, a interpretação da libertação da esperança é vista de forma positiva. Apesar do grande projeto de vingança de Zeus contra a criação de Prometeu, ele ainda tem alguma piedade, e a esperança seria o alimento espiritual que faria com que os homens ainda tivessem alguma forma de encarar o mundo, apesar da dor e do reconhecimento da dor. Não fosse a esperança libertada, a raça humana não teria grandes motivos para permanecer viva.

Entretanto, há quem interprete essa esperança que resta no fundo da caixa de Pandora como um bem entre os males, ou não só um mal entre os outros, mas também como o pior dos males. É de Nietzsche, dentre outros, que eu falo.

A ideia é a seguinte: se eu saio de um estado de felicidade para um mundo assombrado por todas as desgraças possíveis, seria natural pensar que a opção seria sair desse mundo, mesmo que pela via da morte. Imaginar-se como sofredor de um mal eterno é precisamente o expediente das quais as religiões lançam mão para quando querem criar uma atmosfera infernal: a dor eterna. Se isso não ocorre, o que pode explicar o fenômeno? 

Notem, meus amigos, que um mundo sem vida é, também, um mundo sem dor. É preciso que os seres existam para que a dor também exista, já que sofrimento é uma inerência da vida. Não se preocupem com o metal que o ferreiro malha, nem com a pedra que o britador perfura: elas não sentem dor. Sendo assim, a abertura da caixa de Pandora só é efetiva porque a humanidade persiste em sua existência. Seria mais ou menos como um vírus que exterminasse todos os bípedes implumes: ele mesmo se exterminaria junto. Os males, portanto, só existem se a esperança de dias melhores motiva as pessoas a se manterem vivas. E, por isso, a esperança é o mal maior, o mal que nos impede de nos apartar do mal.

A esperança, olhando por um ângulo mais psicológico, é a concretização do instinto de sobrevivência. Ele é muito difícil de explicar, mas sua função biológica grita: manter a existência de uma espécie. Tentamos nos defender mesmo quando é óbvio que não o conseguiremos. Uma pessoa em queda livre tenta se agarrar desesperadamente a qualquer salvaguarda imaginária, e isso é uma das inerências da espécie dos caniços pensantes, mesmo que não haja tempo de pensar. O instinto é isso: uma reação imediata a uma situação que pede solução urgente, mesmo que não haja nenhuma chance racional de sucesso. Nós vamos sempre tentar e isso é algo que ajudou o homo sapiens a chegar onde está, assim como a pulex irritans, o canis lupus e outros mais que ainda povoam o planetinha azul em cuidados paliativos. Por outro lado, todas as espécies têm, de uma forma ou de outra, estratégias de reprodução que visam ampliar a quantidade de indivíduos para mantê-la ou ampliá-la, o que é uma salvaguarda para os fracassos individuais. Não há consciência de que reproduzir perpetua a espécie; há apenas os atos individuais em si, que ocorrem porque são prazerosos. 

É difícil determinar por que temos essa sanha de preservação da espécie? Seleção natural, meus caros. Aqueles indivíduos que, de uma forma ou de outra, estabeleceram estratégias de prevenção acabaram durando mais do que os valentões. Nem sempre a força é sinônimo de longevidade, e, no sentido da perpetuação, melhor ter algum cagaço.

O medo é filho deste instinto de sobrevivência, e, no final das contas, a sua ferramenta prática. Ele é certamente um dos males liberados por Pandora no mito, mas, sem ele, seria mais difícil de estarmos aqui. Viram como o sinal se inverte? Levados ao extremo, os próprios males comprovam ter um lugar nas cadeias consequencialistas dos fenômenos do universo.

No final das contas, a medida está no ponto onde a vida vale a pena, onde o balanço entre dores e prazeres pende irresistivelmente para o primeiro lado, e na insistência que fazemos em ainda ter projetos onde eles não podem prosperar. É aqui onde a assertiva de Nietzsche parece contraditória. Quando lembramos que ele é um defensor da vida levada pelo caminho da tragédia grega, com tudo o que ela carrega em si mesma, fica estranho achar que a esperança, ou seja, a vida vivida em seu limite, seja um mal. Pior ainda, o mal dos males. Na verdade, a questão é outra: Nietzsche se posiciona exatamente contra a ilusão da esperança, o que justamente impede de ver a vida como ela é. O amor fati não pode acontecer se ficar refreado por uma esperança que se fixa a um mundo ideal e infactível. Esse é o grande ponto de Nietzsche contra a esperança.

A própria palavra esperança explica esse sentido. Ela denuncia que ficamos à espera, que aguardamos sentados enquanto os navios passam ao longe, e nisso reside seu mal. É que ficamos muito acostumados às assertivas religiosas de que a esperança é o tempo de aguardar por um mundo eterno mais justo, mas isso acaba ocultando o quanto essa atitude é engessante. Quem espera nunca alcança, deveria ser o ditado popular, porque não se move, não busca, não combate, e, em resumo, não cai no fluxo da vida e a incorpora à sua própria existência. Basicamente, essa é a maneira com a qual Nietzsche encara o mito de Pandora.

Sendo assim, pisar na merda não deixa de ser um mal, e ficar na esperança de que o tempo vai limpar o corredor de entrada do prédio só vai fazer com que o fedor aumente. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como vários outros mitos, o de Pandora está espalhado em diversos escritos e na tradição oral. A obra abaixo é onde ele é tratado com uma versão relativamente bem detalhada.

HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Curitiba: Segesta, 2012.

* O Tártaro é uma espécie de inferno da cultura grega, um submundo onde há dor e punições àqueles que ousaram contra os deuses. Semelhante ao xeol judaico? Muito. Uma mera coincidência? Sei não.

** Ou vaso, ou caixa, dependendo da narrativa. Tem até um termo usado em Portugal que não cabe bem usar no Brasil, para evitar mal-entendidos.

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