(Procurar essências e realidades últimas é muito bom, mas é melhor ainda quando essa busca traz algo de prático para nós)
“Nós pensamos quando nos defrontamos com um problema”
John Dewey
Olá!
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Mais de uma vez, eu assemelhei a extração de café a um rito
religioso, com todas as suas passagens e cerimoniais. Também já a comparei às
obras de arte, colocando o barista amador na condição de um pintor que trabalha
carinhosamente com seus pinceis. E também já defrontei a atividade com os
trabalhos dos laboratoristas, que usam suas vidrarias para o bem do ofício
culinário. Já mostrei, inclusive, alguns casos onde a origem do método é
realmente laboratorial, como a charmosa Chemex.
Mas eu extrapolei dessa vez.
Como já contei para vocês em alguns textos, moro no centro
de São Paulo, exatamente na rua onde está o mais amplo sortimento de casas de
essências. Elas não se limitam a vender o produto, mas toda a parafernália
necessária à produção de perfumes e derivados, incluindo, ora vejam, material
de laboratório. A grande vantagem é que esses artigos estão ao alcance da minha
mão, nem precisando recorrer às modernidades da internet para consegui-los, e a
um preço MUITO mais em conta. Juntando isso à minha nova febre por produzir o cold
brew (vide),
resultou na montagem de uma station completa de extração. Olhem que belezinha:
A ideia geral é reproduzir uma cafeteira Yama, caríssima e
elegantérrima, mas muito longe da minha inteligência orçamentária. O que
importa é a lógica da coisa, e essa é a mesma: um depósito de água gelada
libera o líquido aos poucos, que recai em um filtro contendo pó moído grosso,
que desemboca em um recipiente.
O conjunto todo inclui uma ampola de decantação, onde eu
coloco a água gelada ou o gelo e regulo seu escoamento para uma gota a cada
dois segundos. O processo é lento mesmo.
A peça que vai ao centro é um funil de haste longa, onde eu
coloco um filtro de papel para a saída e onde acomodo o pó. Também tenho
recoberto o pó com mais um filtro, para evitar impurezas que por ventura
estejam na água. Utilizo um dos filtros planos de Aeropress,
que casam bem com o tamanho.
Para receber o líquido pronto, um recipiente do tipo
Erlenmeyer graduado, onde a ponta do funil vai encaixada, evitando que a
mistura se contamine, já que o processo demora um bocado de tempo.
Tudo isso vai encaixado em um suporte universal de
laboratório, que me permite não somente regular as distâncias necessárias, como
também utilizar outros materiais que eventualmente eu queira.
Nome do utensílio: Station de cold brew
Tipo de técnica: Percolação de liquído frio
Dificuldade: Alta
Espessura do pó: grossa
Dinâmica: É inserido gelo em uma ampola de decantação regulada para escoamento lento, que deve recair sobre um funil filtrado contendo pó de espessura grossa, para extração a frio em um recipiente Erlenmeyer na base
Resíduos: Dependendo do elemento filtrante utilizado
Temperatura de saída: Baixa
Nível de ritual: alto
Como eu disse, o produto final é um cold brew, o café gelado que tenho produzido cada vez mais, dada sua versatilidade. Este processo, apesar de lento, acaba sendo mais rápido do que as doze horas mínimas do método mizudashi, razão pela qual, vejam vocês, acaba por se constituir em uma extração rápida. Não é surpreendente?
Essa parafernália toda ocupa um bom lugar no meu armário, e
somente a monto quando vou usar, o que nem é tão frequente. Mas é uma forma de
colocar para fora meu espírito científico, de experimentação e de novas
soluções. Talvez essa seja uma resposta bastante abrangente para os problemas
da vida.
Isso também é um motivador para falar várias vezes sobre
filosofia da ciência. É que causa incômodo quando a gente vai assistir um
videozinho e vê afirmações sobre as maravilhas do óleo de ozônio, ou vai a um
veterinário que jura loas aos florais de Bach. Eu não teria nada contra se não
fossem promessas de solução para condições de saúde, mas são. Não há problemas
em se acreditar nisso ou aquilo no âmbito religioso ou filosófico, mas na
ciência é preciso exatidão. Então eu insisto.
Muitas discussões existiram sobre métodos que melhor
poderiam garantir os acertos científicos, mas talvez poucos fossem os
substratos dos impulsos para tanto. É óbvio que sempre poderemos pensar na
curiosidade inerente à espécie humana, ou na possibilidade de ganhar dinheiro,
mas em ambas temos alguns problemas. Na primeira, podemos colocar qualquer
coisa no lugar apenas para termos uma explicação, enquanto na outra teríamos
favorecimentos a poucos afortunados. Mas há um grande motivador que justifica toda
a produção científica: a sua utilidade.
O nome da corrente é pragmatismo, e já falei sobre
ela no âmbito filosófico (aqui)
e científico (aqui),
mas há pensadores que trataram do tema de maneira a descobrir com maior apuro
como o processo científico se constrói a partir do dia-a-dia e segue para a
solução desses problemas práticos. Vou falar sobre John Dewey.
Vamos começar pensando no seguinte. Grandes questões
universais podem não ter nenhum sentido prático. Quando colocamos uma questão
de ordem metafísica, por exemplo, podemos levar anos e anos para chegar a uma
conclusão que, no final das contas, não nos diz nada. A discussão sobre o sexo
dos anjos não foi só uma metáfora para ilustrar isso, mas um evento histórico
que não mudou um único centavo no preço do dólar, ou, melhor dizendo, não se
derramou uma única gota de sangue a mais ou a menos nas batalhas pela tomada de
Constantinopla, enquanto os excelsos teólogos discutiam se os anjos tinham
alguma forma de sexação.
Por mais sofisticada que possa ser uma discussão dessa
natureza, o que ela nos traz de fato? Nada. Muito mais proveitoso é discutir se
manga com leite faz mal, uma informação que pode ser relevante para quem tem
esses dois ingredientes na geladeira. Enfim, ainda que você estude e especule
se a realidade última da natureza provém de deus, ou de uma substância
específica, abstrata como a pitagórica,
concreta como a dos atomistas,
ainda assim o que muda a sua vida é compreender se uma mera manga misturada a
um prosaico leite pode te causar uma congestão.
Na visão do pragmatismo de Dewey, é do senso comum que vem o
combustível do conhecimento. O senso comum, como bem sabemos, não significa
conhecimento inválido, mas formas irrefletidas de encarar a realidade. A cada
vez que refletimos sobre nosso próprio universo, retiramos um recorte acrítico
e passamos a problematizá-lo, que é a mecânica que conduz o conhecimento e tudo
o que deriva dele, como a educação e a ciência. A problematização induz a
investigação, ou seja, as pesquisas que permitirão trazer uma resposta à
questão levantada. Para seguir aos princípios pragmáticos, não faz sentido
procurar respostas metafísicas a questões concretas. A especulação não é a
matéria-prima dessa corrente, mas a investigação extraída da experimentação, da
interação com o mundo existente. Percebam que os pragmáticos não negam
instâncias transcendentais, apenas as isolam das soluções científicas. Mesmo
quando pensam na filosofia, querem que ela se volte para a resolução de
problemas práticos. O pensamento metafísico sempre desfalecerá em conclusões
indefinidas. Portanto, o grande objetivo do pragmatismo em geral, e em Dewey em
particular, não é descobrir o fim último da realidade, mas a trazer elementos
que levem a atuar de maneira prática no mundo, a resolver problemas de fato, do
quotidiano.
A base para essa direção está na característica natural do
ser humano de interagir permanentemente com o ambiente onde vive. Como o mundo
onde o ser humano habita é composto não somente pelos meios necessários à
sobrevivência, mas também por outros humanos, tal interação não é somente
natural, mas cultural também. Como viver significa resolver conflitos, é por
esse caminho que o processo empírico funciona.
Dewey passa então do senso comum ao conhecimento científico
ao pinçar uma situação que se torna um problema. Após a problematização,
passa-se à investigação para se desembocar em uma conclusão. Como manda o bom
espírito científico, essa conclusão não é definitiva, mas uma proposta de
resposta ao problema baseado na observação dos processos que lhe dizem
respeito. Vou dar um exemplo com um estudo de caso: minha sogra. Acompanhem.
A veneranda senhora vinha há tempos reclamando dos
tratamentos que lhe eram recomendados no posto de saúde, que lhe traziam mais
problemas que soluções, como veremos. Começou a reclamar de palpitações e piora
na pressão, casos que costumam surgir quando há hipercolesterolemia, o famoso
colesterol alto. A patroa, que nessas coisas de cardiologia é bastante
preocupada, achou melhor levá-la a um médico pago, para obter um veredicto mais
acurado, frente a insistência de sua mãe. Marcou a consulta e lá se foram as
duas, expor as aflições ao especialista. A questão era uma pressão alta que
demandava um cuidado com os índices de colesterol, cujos remédios vinham
provocando os eufêmicos desconfortos. Explicado tudo o que foi receitado e
relatados os efeitos, a pergunta do médico veio cortante: são os remédios que
fizeram mal ou é a senhora que está comendo comida estragada?
Dito assim tão rude, alinhei-me inicialmente à indignação da
patroa e de sua macrobia mãe, senhora minha sogra. Mas, abstraindo a moldura da
cena, o que poderíamos extrair do retrato? O quanto, no final das contas, não
assistia de razão ao réprobo médico? Vamos ver, e é na geladeira.
Creme de leite: vencido e aberto há mais de sete dias.
Manteiga: mais de trinta dias aberta. Queijo fresco: já meio amarelado,
denunciando o tempo de abertura. Leite: em um recipiente de plástico avulso,
incerto e não sabido. Verduras: devidamente murchas. Em adição, a caixinha de
remédios apresentava uma série deles já vencidos, inclusive colírios. Diante do
quadro, parece que a razão faltou ao médico somente pela maneira de expressar
sua opinião. Quanto ao resto, acertou na mosca, fácil, fácil.
Pois então temos que ocorreu diante de nós uma situação
corriqueira transformada em problema, algo do quotidiano extraído de seu lugar
comum e colocado perante um cérebro, capaz de transformar interações casuais em
causais. A situação de senso comum vinha da barriga da sogrona - tomar remédio
de colesterol dá caganeira. Por que essa é uma situação colhida do dia-a-dia?
Primeiro porque causa sofrimento, segundo porque é uma condição surpreendente.
Eu mesmo tomo remédios para colesterol todos os dias e nem quando eu comecei,
tive algum revertério. Com isso, há uma situação mal resolvida que clama por
ser ajustada: um problema. A problematização, palavra tão utilizada hoje em dia
é isso: Colocar em evidência um fenômeno que precise ser resolvido.
O próximo passo deweyiano é a investigação, e, nesse
exemplo, temos a realidade sendo observada: a geladeira e os alimentos nela
conservados. A experiência de ver esse ambiente de todo impróprio é o grande
material que permite verificar, experienciar, investigar aquilo que explica uma
situação antes impensada.
Por fim, a conclusão. Ainda que a resposta abrigue outras
possibilidades, um fato é inegável e, no mínimo, precisa ser tirado da frente:
a inadvertida sogra, precisa, sim, melhorar as condições do cardápio. Por mais
que vivam em condições de aposentados, o veterano casal tem algumas rendinhas
extras e dá para comer alimentos frescos. A questão é mais da mania de estocar
do que da sua necessidade, que pode ter sido real outrora, mas que,
hodiernamente, não faz mais sentido.
Percebem como o pensamento racional fez com que investigássemos
um problema e trouxéssemos uma resposta prática para ele? Dewey ensina que o
problema colhido do senso comum retorna a ele na forma de resposta, ou seja, de
conhecimento racional. Ele volta ao senso comum e às interações humanas
internalizadas ou destes com o ambiente onde vivem, já agora desfazendo o
problema inicial. Dessa forma, temos a característica mais desejável do
conhecimento, que é ser útil.
O conhecimento desconexo com a realidade é um problema
cognitivo. Basta que se recorde das nossas aulas de matemática. Eu até hoje, e
sou sincero, não sei onde são aplicáveis os logaritmos e equações, embora tenha
aprendido a desenvolvê-los. Isso traz a mim um conhecimento olvidável,
incongruente, desvinculado da realidade de sua aplicação e, no limite, inútil.
Eu precisaria observar onde esse conhecimento se conecta à realidade e, talvez
aí, dominasse, lembrasse, aplicasse e (quiçá) gostasse dele. Tem cara de
processo educativo? Tem, mas as ideias de Dewey para a educação precisam ser
analisadas em um texto à parte, o que farei oportunamente.
Café mais fraco, mais encorpado, que intercambia melhor com
marotas trançagens alcoólicas são alguns dos pequenos problemas que pedem por
investigações mais detalhadas para o gáudio deste escriba, e deweyanamente
agindo, vou tirando minhas conclusões e enriquecendo meu acervo gastronômico,
enquanto aproveito para refletir sobre conhecimento e ciência. Bons ventos a
todos!
Recomendação de leitura:
O texto abaixo é um artigo de Dewey onde ele fala mais
especificamente sobre o roteiro que tracei acima.
DEWEY, John. Lógica: a Teoria da Inquirição. In: Experiência
e Natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Col. Os Pensadores.
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