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segunda-feira, 5 de maio de 2025

O café filosófico do quotidiano – a Ciência que procura a utilidade

(Procurar essências e realidades últimas é muito bom, mas é melhor ainda quando essa busca traz algo de prático para nós)

“Nós pensamos quando nos defrontamos com um problema”

John Dewey 

Olá!

Clique aqui para ler mais cafezinhos de minha lavra

Mais de uma vez, eu assemelhei a extração de café a um rito religioso, com todas as suas passagens e cerimoniais. Também já a comparei às obras de arte, colocando o barista amador na condição de um pintor que trabalha carinhosamente com seus pinceis. E também já defrontei a atividade com os trabalhos dos laboratoristas, que usam suas vidrarias para o bem do ofício culinário. Já mostrei, inclusive, alguns casos onde a origem do método é realmente laboratorial, como a charmosa Chemex. Mas eu extrapolei dessa vez.

Como já contei para vocês em alguns textos, moro no centro de São Paulo, exatamente na rua onde está o mais amplo sortimento de casas de essências. Elas não se limitam a vender o produto, mas toda a parafernália necessária à produção de perfumes e derivados, incluindo, ora vejam, material de laboratório. A grande vantagem é que esses artigos estão ao alcance da minha mão, nem precisando recorrer às modernidades da internet para consegui-los, e a um preço MUITO mais em conta. Juntando isso à minha nova febre por produzir o cold brew (vide), resultou na montagem de uma station completa de extração. Olhem que belezinha:

A ideia geral é reproduzir uma cafeteira Yama, caríssima e elegantérrima, mas muito longe da minha inteligência orçamentária. O que importa é a lógica da coisa, e essa é a mesma: um depósito de água gelada libera o líquido aos poucos, que recai em um filtro contendo pó moído grosso, que desemboca em um recipiente.

O conjunto todo inclui uma ampola de decantação, onde eu coloco a água gelada ou o gelo e regulo seu escoamento para uma gota a cada dois segundos. O processo é lento mesmo.

A peça que vai ao centro é um funil de haste longa, onde eu coloco um filtro de papel para a saída e onde acomodo o pó. Também tenho recoberto o pó com mais um filtro, para evitar impurezas que por ventura estejam na água. Utilizo um dos filtros planos de Aeropress, que casam bem com o tamanho.

Para receber o líquido pronto, um recipiente do tipo Erlenmeyer graduado, onde a ponta do funil vai encaixada, evitando que a mistura se contamine, já que o processo demora um bocado de tempo.

Tudo isso vai encaixado em um suporte universal de laboratório, que me permite não somente regular as distâncias necessárias, como também utilizar outros materiais que eventualmente eu queira.

 

Nome do utensílio: Station de cold brew

Tipo de técnica: Percolação de liquído frio 

Dificuldade: Alta

Espessura do pó: grossa

Dinâmica: É inserido gelo em uma ampola de decantação regulada para escoamento lento, que deve recair sobre um funil filtrado contendo pó de espessura grossa, para extração a frio em um recipiente Erlenmeyer na base

Resíduos: Dependendo do elemento filtrante utilizado

Temperatura de saída: Baixa

Nível de ritual: alto

Como eu disse, o produto final é um cold brew, o café gelado que tenho produzido cada vez mais, dada sua versatilidade. Este processo, apesar de lento, acaba sendo mais rápido do que as doze horas mínimas do método mizudashi, razão pela qual, vejam vocês, acaba por se constituir em uma extração rápida. Não é surpreendente?

Essa parafernália toda ocupa um bom lugar no meu armário, e somente a monto quando vou usar, o que nem é tão frequente. Mas é uma forma de colocar para fora meu espírito científico, de experimentação e de novas soluções. Talvez essa seja uma resposta bastante abrangente para os problemas da vida.

Isso também é um motivador para falar várias vezes sobre filosofia da ciência. É que causa incômodo quando a gente vai assistir um videozinho e vê afirmações sobre as maravilhas do óleo de ozônio, ou vai a um veterinário que jura loas aos florais de Bach. Eu não teria nada contra se não fossem promessas de solução para condições de saúde, mas são. Não há problemas em se acreditar nisso ou aquilo no âmbito religioso ou filosófico, mas na ciência é preciso exatidão. Então eu insisto.

Muitas discussões existiram sobre métodos que melhor poderiam garantir os acertos científicos, mas talvez poucos fossem os substratos dos impulsos para tanto. É óbvio que sempre poderemos pensar na curiosidade inerente à espécie humana, ou na possibilidade de ganhar dinheiro, mas em ambas temos alguns problemas. Na primeira, podemos colocar qualquer coisa no lugar apenas para termos uma explicação, enquanto na outra teríamos favorecimentos a poucos afortunados. Mas há um grande motivador que justifica toda a produção científica: a sua utilidade.

O nome da corrente é pragmatismo, e já falei sobre ela no âmbito filosófico (aqui) e científico (aqui), mas há pensadores que trataram do tema de maneira a descobrir com maior apuro como o processo científico se constrói a partir do dia-a-dia e segue para a solução desses problemas práticos. Vou falar sobre John Dewey.

Vamos começar pensando no seguinte. Grandes questões universais podem não ter nenhum sentido prático. Quando colocamos uma questão de ordem metafísica, por exemplo, podemos levar anos e anos para chegar a uma conclusão que, no final das contas, não nos diz nada. A discussão sobre o sexo dos anjos não foi só uma metáfora para ilustrar isso, mas um evento histórico que não mudou um único centavo no preço do dólar, ou, melhor dizendo, não se derramou uma única gota de sangue a mais ou a menos nas batalhas pela tomada de Constantinopla, enquanto os excelsos teólogos discutiam se os anjos tinham alguma forma de sexação.

Por mais sofisticada que possa ser uma discussão dessa natureza, o que ela nos traz de fato? Nada. Muito mais proveitoso é discutir se manga com leite faz mal, uma informação que pode ser relevante para quem tem esses dois ingredientes na geladeira. Enfim, ainda que você estude e especule se a realidade última da natureza provém de deus, ou de uma substância específica, abstrata como a pitagórica, concreta como a dos atomistas, ainda assim o que muda a sua vida é compreender se uma mera manga misturada a um prosaico leite pode te causar uma congestão.

Na visão do pragmatismo de Dewey, é do senso comum que vem o combustível do conhecimento. O senso comum, como bem sabemos, não significa conhecimento inválido, mas formas irrefletidas de encarar a realidade. A cada vez que refletimos sobre nosso próprio universo, retiramos um recorte acrítico e passamos a problematizá-lo, que é a mecânica que conduz o conhecimento e tudo o que deriva dele, como a educação e a ciência. A problematização induz a investigação, ou seja, as pesquisas que permitirão trazer uma resposta à questão levantada. Para seguir aos princípios pragmáticos, não faz sentido procurar respostas metafísicas a questões concretas. A especulação não é a matéria-prima dessa corrente, mas a investigação extraída da experimentação, da interação com o mundo existente. Percebam que os pragmáticos não negam instâncias transcendentais, apenas as isolam das soluções científicas. Mesmo quando pensam na filosofia, querem que ela se volte para a resolução de problemas práticos. O pensamento metafísico sempre desfalecerá em conclusões indefinidas. Portanto, o grande objetivo do pragmatismo em geral, e em Dewey em particular, não é descobrir o fim último da realidade, mas a trazer elementos que levem a atuar de maneira prática no mundo, a resolver problemas de fato, do quotidiano.

A base para essa direção está na característica natural do ser humano de interagir permanentemente com o ambiente onde vive. Como o mundo onde o ser humano habita é composto não somente pelos meios necessários à sobrevivência, mas também por outros humanos, tal interação não é somente natural, mas cultural também. Como viver significa resolver conflitos, é por esse caminho que o processo empírico funciona.

Dewey passa então do senso comum ao conhecimento científico ao pinçar uma situação que se torna um problema. Após a problematização, passa-se à investigação para se desembocar em uma conclusão. Como manda o bom espírito científico, essa conclusão não é definitiva, mas uma proposta de resposta ao problema baseado na observação dos processos que lhe dizem respeito. Vou dar um exemplo com um estudo de caso: minha sogra. Acompanhem.

A veneranda senhora vinha há tempos reclamando dos tratamentos que lhe eram recomendados no posto de saúde, que lhe traziam mais problemas que soluções, como veremos. Começou a reclamar de palpitações e piora na pressão, casos que costumam surgir quando há hipercolesterolemia, o famoso colesterol alto. A patroa, que nessas coisas de cardiologia é bastante preocupada, achou melhor levá-la a um médico pago, para obter um veredicto mais acurado, frente a insistência de sua mãe. Marcou a consulta e lá se foram as duas, expor as aflições ao especialista. A questão era uma pressão alta que demandava um cuidado com os índices de colesterol, cujos remédios vinham provocando os eufêmicos desconfortos. Explicado tudo o que foi receitado e relatados os efeitos, a pergunta do médico veio cortante: são os remédios que fizeram mal ou é a senhora que está comendo comida estragada?

Dito assim tão rude, alinhei-me inicialmente à indignação da patroa e de sua macrobia mãe, senhora minha sogra. Mas, abstraindo a moldura da cena, o que poderíamos extrair do retrato? O quanto, no final das contas, não assistia de razão ao réprobo médico? Vamos ver, e é na geladeira.

Creme de leite: vencido e aberto há mais de sete dias. Manteiga: mais de trinta dias aberta. Queijo fresco: já meio amarelado, denunciando o tempo de abertura. Leite: em um recipiente de plástico avulso, incerto e não sabido. Verduras: devidamente murchas. Em adição, a caixinha de remédios apresentava uma série deles já vencidos, inclusive colírios. Diante do quadro, parece que a razão faltou ao médico somente pela maneira de expressar sua opinião. Quanto ao resto, acertou na mosca, fácil, fácil.

Pois então temos que ocorreu diante de nós uma situação corriqueira transformada em problema, algo do quotidiano extraído de seu lugar comum e colocado perante um cérebro, capaz de transformar interações casuais em causais. A situação de senso comum vinha da barriga da sogrona - tomar remédio de colesterol dá caganeira. Por que essa é uma situação colhida do dia-a-dia? Primeiro porque causa sofrimento, segundo porque é uma condição surpreendente. Eu mesmo tomo remédios para colesterol todos os dias e nem quando eu comecei, tive algum revertério. Com isso, há uma situação mal resolvida que clama por ser ajustada: um problema. A problematização, palavra tão utilizada hoje em dia é isso: Colocar em evidência um fenômeno que precise ser resolvido.

O próximo passo deweyiano é a investigação, e, nesse exemplo, temos a realidade sendo observada: a geladeira e os alimentos nela conservados. A experiência de ver esse ambiente de todo impróprio é o grande material que permite verificar, experienciar, investigar aquilo que explica uma situação antes impensada.

Por fim, a conclusão. Ainda que a resposta abrigue outras possibilidades, um fato é inegável e, no mínimo, precisa ser tirado da frente: a inadvertida sogra, precisa, sim, melhorar as condições do cardápio. Por mais que vivam em condições de aposentados, o veterano casal tem algumas rendinhas extras e dá para comer alimentos frescos. A questão é mais da mania de estocar do que da sua necessidade, que pode ter sido real outrora, mas que, hodiernamente, não faz mais sentido.

Percebem como o pensamento racional fez com que investigássemos um problema e trouxéssemos uma resposta prática para ele? Dewey ensina que o problema colhido do senso comum retorna a ele na forma de resposta, ou seja, de conhecimento racional. Ele volta ao senso comum e às interações humanas internalizadas ou destes com o ambiente onde vivem, já agora desfazendo o problema inicial. Dessa forma, temos a característica mais desejável do conhecimento, que é ser útil.

O conhecimento desconexo com a realidade é um problema cognitivo. Basta que se recorde das nossas aulas de matemática. Eu até hoje, e sou sincero, não sei onde são aplicáveis os logaritmos e equações, embora tenha aprendido a desenvolvê-los. Isso traz a mim um conhecimento olvidável, incongruente, desvinculado da realidade de sua aplicação e, no limite, inútil. Eu precisaria observar onde esse conhecimento se conecta à realidade e, talvez aí, dominasse, lembrasse, aplicasse e (quiçá) gostasse dele. Tem cara de processo educativo? Tem, mas as ideias de Dewey para a educação precisam ser analisadas em um texto à parte, o que farei oportunamente.

Café mais fraco, mais encorpado, que intercambia melhor com marotas trançagens alcoólicas são alguns dos pequenos problemas que pedem por investigações mais detalhadas para o gáudio deste escriba, e deweyanamente agindo, vou tirando minhas conclusões e enriquecendo meu acervo gastronômico, enquanto aproveito para refletir sobre conhecimento e ciência. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O texto abaixo é um artigo de Dewey onde ele fala mais especificamente sobre o roteiro que tracei acima.

DEWEY, John. Lógica: a Teoria da Inquirição. In: Experiência e Natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Col. Os Pensadores.

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